Nós e o Reino Unido no século do Twitter

22 out 2022, 09:30
Liz Truss

Quando os mercados obrigaram Liz Truss a recuar na redução de impostos e aumento de despesa, o seu fim político estava escrito nas estrelas. Não porque o Reino Unido tema Bruxelas, mas porque nenhum britânico admite o vexame da queda da sua moeda, que sente como parte da sua glória e mérito.

Tenho para mim que só é possível começar a perceber o Reino Unido quando se entende a sua insularidade como a principal razão de ser das suas idiossincrasias.

Quando no século I a.C. os romanos chegaram por via marítima às Ilhas Britânicas, baptizaram-nas de “Albion” - do latim “albus”, ou “branco”: à sua chegada, a ilha fez-se anunciar pelas famosas falésias de giz branco que se erguem altaneiras no sudeste de Inglaterra. Para um britânico, a insularidade não é uma fatalidade, antes pelo contrário: uma ilha só é uma ilha se vista de fora, Albion só é alba se vista de fora. Quem tem presente as viscerais reacções à abertura do Túnel Ferroviário da Mancha em 1994, mais de dois mil anos depois, perceberá o quanto o sentido de identidade britânico está intimamente ligado à necessidade de protecção a que a sua geografia o obrigou. Somos portugueses e percebemos isso: a geografia marca, e muito.

Às vezes liberal, outras vezes conservador, quase sempre excêntrico e “sui generis”, o imaginário coletivo britânico é transversalmente atravessado pela tumultuosa e bélica relação com o exterior e pela luta pela preservação da sua identidade contra “o invasor”: imaginário ou real.

Seja contra os romanos, os vikings, os franceses, o Terceiro Reich ou o Banco Central Europeu, a mais antiga democracia do mundo só se sente segura quando unida contra um “alvo comum”, para o melhor e para o pior. Foi assim na heróica e comovente resistência ao “blitzkrieg” (com quarenta mil civis mortos em cinquenta e sete noites de bombardeamentos consecutivos), e foi assim na patética vitória da demagogia pró-Brexit, um caso clássico de propaganda construída sobre o deliberado equívoco entre causas e efeitos.

O “Brexit” tirou o Reino Unido de uma Europa onde nunca entrou; a factura está a chegar, e vem em nome do Partido Conservador. Quando nos últimos dias os mercados obrigaram Liz Truss a recuar no seu plano de redução de impostos e aumento de despesa, o seu fim político estava escrito nas estrelas. Não porque o Reino Unido tema Bruxelas  - a quem não consente a menor ingerência - mas porque nenhum britânico admite o vexame da queda da sua moeda, que sente como parte da sua glória e mérito. Daí a Libra, ainda e sempre.

Duração de mandatos de primeiros-ministros recentes

Sabemos da História da Europa que foram sempre as decepções que conduziram ao sufoco da Democracia pela demagogia; sabemos, também, que foi uma crise inflacionista que conduziu à eleição de (quase) todos os líderes que fizeram o Autoritarismo e a Guerra. Até hoje, temos contado com a qualidade das instituições - muito mais do que com as ideologias - para defender as democracias, e com as lideranças, para manter a união fulcral entre o Estado e os Cidadãos.  Só que Liz Truss não é Churchill nem Henrique V, nem tão pouco Isabel II: estamos órfãos muito porque os regimes hiper-mediatizados e privados de real substância política em que vivemos hoje não podem, sequer, gerar líderes dessa tarimba - é o custo da primazia da forma sobre a substância, que tantas vezes confundimos com liberdade individual.

A rainha Isabel II e Winston Churchill, numa foto de arquivo (Getty Images)

Desengane-se quem pensa que o que se passa naquelas ilhas é problema exclusivo daquele território: vejam-se os números da pobreza em Portugal, cruze-se isso com a sensação mediática de sucesso económico propagandeada nos últimos anos, e facilmente se percebe que é “lá como cá”: quem governa não governa, publicita. Os líderes europeus - incluindo os portugueses - abraçaram de corpo e alma o “Século do Twitter”, e a Europa está a tratar com os pés aquilo que foram séculos de prudência e lições seminais.

Por este caminho, não nos restará mais do que culpar os “populistas” e enfiarmos a cabeça na areia, para não vermos que eles não visam nem Esquerda, nem Direita - visam, justamente, as instituições. O Populismo não é uma causa, é um efeito; um efeito que se vê bem quando nos olhamos no espelho.

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