Na tradicional cerimónia cheia de pompa e circunstância a inaugurar o novo Parlamento britânico, o Rei Carlos III leu o programa do governo na íntegra. São 40 as propostas legislativas, incluindo várias integradas numa reforma do setor laboral que prometem ser o primeiro teste ao primeiro executivo trabalhista em décadas
“Agora é a hora de tirar os travões à Grã-Bretanha. Estou determinado em criar riqueza para as pessoas de todo o país.” Assim prometeu o recém-eleito primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, na inauguração da nova legislatura que, se não houver surpresas, ficará em funções até 2029.
Vestido com um longo manto púrpura e com a coroa imperial no cocuruto, foi, como manda a tradição, o Rei Carlos III e não Starmer a apresentar o programa do novo governo, no costumeiro “Discurso do Rei”, no qual delineou as 40 propostas legislativas do executivo, que prevê grandes reformas, do setor laboral ao setor energético, para “melhorar as condições de vida de todos nas nações e regiões do Reino Unido”. Foi a primeira vez desde 1950 que o Parlamento testemunhou o discurso real sob um governo trabalhista.
O grande objetivo, como definido por Starmer na agenda legislativa e lido pelo monarca em Westminster, é inaugurar “uma década de renovação” no país. E entre as várias promessas dos trabalhistas, as primeiras a ser postas a teste nos debates e votações no Parlamento – onde o partido detém agora uma maioria de 411 assentos, contra 121 para o Partido Conservador – serão os projetos-lei relacionados com o Trabalho.
Entre as medidas propostas por Starmer contam-se proibir contratos “de exploração” de zero horas, acabar com as práticas de “despedimento e recontratação”, melhorar o acesso de recém-empregados a licenças de parentalidade e baixas médicas, reforçar o subsídio por doença e garantir “flexibilidade” a todos os trabalhadores.
O governo também pretende eliminar uma medida aprovada pelos conservadores que, diz, na última década impôs “restrições desnecessárias à atividade dos sindicatos” – para Paul Nowak, secretário-geral da confederação Trades Union Congress, “uma séria declaração de interesses” para começar a “reparar e a reconstruir a Grã-Bretanha”.
Ainda no capítulo “Crescimento e estabilidade económica”, Starmer propõe um projeto-lei sobre o regime de pensões com impacto em 15 milhões de reformados “do setor privado”, para que obtenham “melhores resultados com os ativos das suas pensões”, o que libertará mais dinheiro para investir no programa económico.
“Nenhuma surpresa no Discurso do Rei (raramente as já)”, escreveu o jornalista Lewis Goodall na rede social X quando o programa acabou de ser apresentado. “Enfatizo duas coisas: a) este governo vai viver ou morrer sob a teoria de que as medidas do lado da oferta podem impulsionar rapidamente o crescimento económico; b) que temos o governo mais reflexivamente intervencionista das últimas décadas.”
Outras propostas – e o que ficou de fora
Entre outras apostas do executivo, o manifesto trabalhista propõe um projeto-lei para limitar os obstáculos a nova construção em áreas designadas, ou seja, planear o setor através do “envolvimento democrático sobre como, e não se, as casas e as infraestruturas devem ser construídas. Promete ainda regulamentar a Inteligência Artificial com aposta num processo de consulta que imponha “requisitos aos que trabalham para desenvolver os mais poderosos modelos de IA”, sem definir para já como pretende fazê-lo.
No plano ambiental, propõe a criação de um grupo estatal no setor energético para apostar na transição verde e maior controlo e sanções a empresas poluentes. Também promete devolver poderes económicos a cada região, reforçar os poderes do Gabinete de Responsabilidade Orçamental (entidade reguladora das contas públicas) e expulsar da Câmara dos Lordes os derradeiros 92 “pares por hereditariedade” do total de 775 que compõem a câmara alta do Parlamento.
No plano da Defesa, Starmer promete há muito aumentar o investimento do Reino Unido para 2,5% do PIB, à medida que aumentam as pressões sobre os aliados da NATO para reforçarem a despesa face à situação da Ucrânia e à invasão russa ainda em curso. Ainda assim, não foi para já que o governo definiu um calendário para cumprir essa promessa, que ficou fora do manifesto lido pelo rei, onde é feita apenas uma breve referência a “uma Defesa forte baseada nos valores” da aliança.
De fora do programa hoje apresentado ficou também a promessa de alargar o direito ao voto a todos os jovens de 16 e 17 anos, bem como a prometida “modernização, simplificação e reforma” do processo atualmente “obsoleto” para reconhecer pessoas transgénero.
Mais notória foi uma outra ausência que deixa todos os europeístas britânicos remetidos ao sonho de um retorno à União Europeia. Sondagens recentes mostram que trabalhistas de topo, como o autarca de Londres, Sadiq Khan, que defendem que o Reino Unido deve, no mínimo, debater a hipótese de assinar um acordo para voltar a integrar o mercado único europeu ou a união aduaneira, não estão sozinhas. Mas com toda a sua retórica de aproximação à UE, Starmer ainda não está preparado para dar esse passo. Como leu Carlos III: “O governo quer restabelecer as relações com os parceiros europeus e trabalhar para melhorar as relações comerciais e de investimento do Reino Unido com a UE”. Foi a única menção à UE em todo o Discurso do Rei.