“É a Ucrânia que está a chorar mas ela é forte e vai resistir". As crianças que esperam pelo fim da guerra em Portugal, enquanto os pais lutam na linha frente

6 mai 2022, 18:07

Desde o início da invasão da Rússia à Ucrânia, Portugal acolheu 500 crianças sem os pais. A maioria chega com familiares, ma há 15 crianças que chegaram totalmente sozinhas.

Chegaram a Portugal há duas semanas. Os pais tomaram a difícil decisão de enviar os filhos para longe enquanto estão na linha da frente da resistência ucraniana. As mães são médicas ou enfermeiras num hospital militar em Kiev que presta cuidados médicos sobretudo a militares, veteranos e familiares. Alguns pais são seguranças. Outros, trabalham nas companhias ferroviárias.  

Entregaram os filhos a uma tutora. “Estavam à procura de um pessoa de confiança, a quem pudessem confiar os seus filhos, um conhecido em comum, as crianças já se conheciam. Os meus filhos conhecem as mães destas crianças, por isso sugeriram-me a mim. Todos votaram a favor e eu fiquei à frente desta equipa de dez pessoas”, explica Halyna Rohova, reformada militar.

“Havia uma Divisão de Mísseis e o meu marido era o responsável pelo serviço médico. Eu estava na divisão secreta”. É tudo o que revela dos 22 anos que serviu no exército da Ucrânia.

“Retiraram-nos para os nossos pais não se preocuparem connosco”, diz Misha Pilipenko, de 15 anos

Acolhidos em Mafra

“Deram-me os documentos, entregaram-me as crianças, sentámo-nos no autocarro, chegámos até à Polónia. De Lublin, voámos até Lisboa”, explica a tutora. Vieram para Portugal no quinto voo humanitário da Associação Ukrainian Refugees UAPT. Foram acolhidos num palácio transformado numa pousada, em Mafra, cedido à associação.

Algumas crianças jogam voleibol. Outras dançam ao som da música de um telemóvel. Conversam, riem e brincam como qualquer criança. Sentamo-nos a conversar à volta de uma mesa de madeira no jardim. 

“Retiraram-nos para os nossos pais não se preocuparem connosco. Para estarmos mais protegidos, com saúde, alimentados e hidratados…” diz Misha Pilipenko, de 15 anos. Todos parecem muito conscientes. Os pais falaram com eles sobre a situação. “Ainda em casa, já sabíamos que íamos para Mafra. Por isso não houve problemas nenhuns. As crianças sentem-se bem aqui. Adaptaram-se completamente”, explica Halyna Rohova.

Ainda assim, as saudades são mais difíceis de controlar. “Nem sempre posso ligar porque a minha mãe trabalha no hospital militar. Ela cuida das pessoas e nem sempre tem tempo para falar”, diz Nazar Yakymenko, de 15 anos. Com mesma idade, Sofia Pilipenko desabafa: “Estou muito preocupada. É um stress muito grande. Eles estão lá e eu estou cá…”

“Gosto muito de estar neste país mas também quero o meu”, desabafa Marina Khodakivska, com 15 anos

Sonhos marcados pela guerra

“Em Portugal eu quero… fazer… pensar sobre algo positivo. Não na guerra”, confessa Zachar Yakymenko. Com 10 anos, é o mais novo do grupo, composto quase todo por pares de irmãos. “Quero muito regressar para perto dos meus pais e para a minha terra natal, a Ucrânia” diz Viktor Khodakivskuy, de 12 anos.

“Eu também quero muito regressar para perto dos meus pais. Ajudá-los em casa, ajudar na distribuição da ajuda humanitária. Cá, eu quero muito aprender português, quero ir ao oceano, quero muito! Também quero inscrever-me no hip-hop. Quero desenvolver-me neste país e quero muito voltar ao meu país. Gosto muito de estar neste país mas também quero o meu.” Quem fala é Marina Khodakivska. Com 15 anos, diz que a sua casa ainda está de pé mas é perigoso regressar porque “neste momento estão a acontecer ações militares por lá”. 

É difícil retirar a guerra do pensamento destas crianças. Os desenhos remetem invariavelmente para a Ucrânia. O mapa com as cores da bandeira desenhado dentro de um coração. Uma menina rodeada de flores a chorar. “É a Ucrânia que está a chorar mas ela é forte e vai resistir”, diz Sofia. Várias kalynas, o símbolo nacional da Ucrânia, conhecida por rosa de gueldres em Portugal, eternizada na marcha patriótica Oy U Luzi Chervona Kalyna, cantada na linha da frente pelo cantor ucraniano Andriy Khlyvnyuk da banda BoomBox e ao qual se juntaram várias vozes por todo o mundo. Um girassol, o símbolo mais recente da resistência não violenta depois de uma mulher ter sido filmada a confrontar um militar russo armado oferecendo-lhe sementes de girassol para que nascessem flores quando morresse em solo ucraniano.

Há também quem desenhe a mãe, médica. E a casa, para onde sonham voltar. Pelo meio, oferecem-nos desenhos do Brasão de Armas da Ucrânia, decorado com motivos folclóricos do país.

A vida continua em Portugal

Acordam às seis da manhã, oito na Ucrânia, para começar as aulas que mantêm online. O resto do dia é preenchido com atividades proporcionadas pela associação e empresas parceiras. Enquanto conversávamos, um cinema da cidade convidou o grupo para uma sessão para celebrar o Dia da Mãe na Ucrânia.

Todos os que os rodeiam fazem os possíveis para tentar encurtar a distância. O jantar já está pronto. Feito por uma refugiada ucraniana que chegou no mesmo voo. Mas logo chega uma ucraniana a viver em Mafra há vinte anos para fazer uma sobremesa típica: gelatina com doce de leite e natas. “Ontem fiz mousse e acabou tudo. Hoje também vai acabar. São crianças, comem muito”, diz-nos, alegre. 

Tentam continuar a vida apesar da realidade dura que os assombra. “Nenhuma pessoa normal conseguia imaginar isto. Nunca, nunca. Quando acordas de manhã em casa, olhas pela janela, pensas que é tudo um pesadelo. Nem consigo encaixar isto na cabeça, de todo”, diz Halyna Rohova. “As pessoas estavam a viver, a sonhar, a fazer os seus planos, as crianças estavam a acabar a escola, alguns queriam viajar, descansar, e tudo isso acabou num dia…”

A Ucrânia está sempre presente, mesmo nos desenhos. O Brasão de Armas da Ucrânia, decorado com motivos folclóricos do país

 

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