"É tudo muito apertadinho. Se sobra peixe, junto um ovo e farinha e faço uma omelete". Assim se vive com a reforma mínima

5 mai, 07:00
Idosos

SEGURANÇA SOCIAL || Francisco e Maria vivem com as reformas mínimas, resultado dos poucos anos de descontos para a Segurança Social. José, recebe um pouco mais, mas, depois de pagar a casa e a prótese auditiva, sobra muito pouco para comer e tratar da saúde. Vale-lhe Sofia, uma médica que é "um anjo", que até já foi à farmácia comprar-lhe os medicamentos e levar-lhos a casa. Em Portugal, em 2023, 13% dos pensionistas tinham de continuar a trabalhar para conseguir um complemento à sua pensão

Ali para os lados de Alenquer, Francisco (nome fictício) conhece toda a gente e toda a gente o conhece. Por isso é que pede o anonimato. “Vê lá! Não te enganes, depois a escrever! Não é vergonha, olha! É porque ninguém precisa de saber da minha vida”.

É com a serra de Montejunto como cenário que faz as contas à vida: “Descontei uns 15 ou 16 anos para a Casa do Povo. A Maria descontou ainda menos. Trazemos para casa os dois uns 700 euros. E ela tem muitos problemas de saúde. Só um frasco de medicamentos dela custa 50 euros e só dá para um mês. Na farmácia, ficam 100 ou 120 euros por mês só para ela. Eu também sou diabético…”.

Francisco tem 69, mas ninguém lhe dava quase sete décadas. Entre anedotas, trocadilhos (alguns impossíveis de reproduzir) e conselhos de mezinhas para tudo e mais alguma coisa, admite que o que lhes vale é o que vai semeando na horta. “Nós aqui não compramos uma couve, uma cenoura, uma batata. Tenho umas cinco galinhas e uns dois coelhos, que vamos criando. Vamos ali ao Intermarché, só para comprar uma massa, um arroz, um azeite…”, conta.

Francisco está preocupado com a sementeira das batatas, que a chuva está a atrasar. (CNN/Manuela Micael)

Maria acrescenta: “Aqui é tudo muito apertadinho. Cá em casa nunca se estraga uma comida. Se sobra um bocadinho de peixe, no dia a seguir, misturo com um ovo um bocadinho de farinha e faço uma omelete”.

“Nunca pensei em grandes descontos. Primeiro, porque antigamente não se falava disso. E depois porque nunca pensei passar dos 50”, justifica Francisco.

“Então porquê, senhor Francisco? Achava que ia morrer novo?!”

“Oh rapariga… eu sei lá! Eu via-os para aí a cair que nem tordos… Se soubesse o que sei hoje, a coisa piava de outra forma.”

O “rapazola” que ganhou a lotaria e comprou um trator

Francisco recua no tempo mais de 50 anos, para se lembrar do dia em que começou a trabalhar. “Fiz 11 anos e o meu pai disse-me ‘tenho uma prenda para ti’. Eu fiquei logo desconfiado, porque as ‘prendas’ dele eram quase sempre chibatadas pelas costas abaixo. Quando eu fiz 11 anos deu-me uma junta de bois para eu ir trabalhar e disse-me ‘amanhã, levantas-te às 04:30, dás de comida aos animais, que não podem ir para o campo de barriga vazia e vais trabalhar para a vinha’”, conta.

Conta que muitos dos “pedregulhos” das vinhas da região demarcada do Oeste foram tirados por ele e pelo par de bovinos que o pai lhe ofereceu de aniversário. “À noite, chegava a casa, e tinha de dar comida aos animais todos. Cozinhar a lavagem para os porcos, para os cães…”, conta.

A irmã, mais nova tinha problemas de saúde e, por recomendação médica, os pais foram viver com ela para perto da praia. Francisco ainda não tinha uma dúzia de anos, mas ficou sozinho ali na aldeia, a “sustentar a casa”. Não havia eletricidade, não havia relógios… “o meu pai fez-me umas marcas no chão e disse-me: ‘olha, quando o luar estiver a bater aqui, é hora de te levantares’. Eram 04:30 e eu tinha de estar a pé”.

Com 14 anos, foi trabalhar para o avô, mas tinha de entregar o soldo ao pai. Valia-lhe os recados extras que fazia ao avô que lhe dava 20 escudos e lhe dizia ‘Estes guardas para ti! Não lhos dás!’.

Um dia, foi ao mercado da terra fazer um recado à mãe e estava um cauteleiro a vender lotarias. “Ninguém lhas queria comprar e eu disse-lhe, dê cá essas três!”, conta.

“Um dia, lá o homem do mercado vem-me dizer ‘oh rapazola! Olha que o cauteleiro anda aí à tua procura!’”, lembra.

Uma das lotarias estava premiada com “uns cento e tal contos”. “Fui ali a Almeirim e comprei um trator. Mais uma vez, tive de dar o braço a torcer ao meu pai, porque, como era menor, o trator ficou em nome do meu pai. Eu paguei 90 contos e o trator ficou em nome do meu pai. Mas eu queria era ver-me livre da enxada e livrei!”, resume.

Passou a trabalhar com o trator nos terrenos do avô, nos terrenos do pai e ainda fazia “uns trabalhitos por fora”.

Casamento "antes do 20"

Francisco e Maria casaram ainda antes dos 20 anos completos. “Aos 27, já tinha três filhos, sabes?!”, contabiliza Francisco. “Criar três filhos só a viver do campo não é fácil, sabes? Nunca faltou cá nada, mas não tenho vergonha de dizer que às vezes ia à farmácia ou ao mercado e ficava lá assente e depois ia pagar ao fim da semana”.

Maria nunca trabalhou fora de casa. Cuidou dos três filhos, dos pais, dos sogros, da avó… “Foi uma mártir”, resume Francisco.

“E da minha mãe foi muito difícil, porque ela tinha um problema de saúde mental”, recorda Maria, que é de poucas falas.

A “coluna e os ossos” ressentiram-se cedo dos esforços de lidar com corpos com mais peso do que o seu próprio. “Aos 35 anos, o médico disse-me que ia ficar numa cadeira de rodas. Olhe, devagarinho, mas ainda aqui ando de pé”, sublinha.

A cumplicidade entre Francisco e Maria, fruto dos quase 50 anos de casamento, é notória. (CNN/Manuela Micael

“Às vezes, digo-lhe ‘um dia destes, troco-te por uma mais nova’. Sabes o que é que ela me responde, rapariga? ‘Não arranjas não! Que aqui quem comeu a carne, tem de chupar os ossos’. Olha… já viste? Ainda por cima os ossos já não são grande coisa”. Rieem os dois numa cumplicidade que se percebe antiga. “Estamos quase a fazer 50 anos de casados. Agora já não a troco, não!”, garante.

Enquanto desfia as histórias da vida, Francisco olha para 10 quilos de batata para semear que estão ali “a ganhar grelo” e “à espera que a chuva passe e os terrenos sequem para as poder semear”. “Agora não dá… ainda ontem lá fui ao terreno e fiquei com o botim lá enterrado”, conta, enquanto mostra uns botins cobertos de lama. “Estás a ver?! Olha aqui!”.

É que se o tempo não permitir semear as batatas é mais dinheiro que Francisco e Maria têm de gastar nos próximos meses.

Em Portugal, em 2023, segundo o Instituto Nacional de Estatística, 70% dos pensionistas de velhice recebiam pensões até 1.000 euros. Mas destes, a maioria recebe pensões que não ultrapassam os 600 euros. Uma condição que é particularmente notória no caso das mulheres, em que 9% recebem mensalmente até 300 euros e 56,3% entre 600 e 1-000 euros, o que, sobretudo no primeiro caso, contribui para um risco de pobreza mais elevado. No caso dos homens, 35,3% recebem pensões entre 300 e 600 euros.

Um cenário que leva a que mais de 13% dos pensionistas de velhice tenham de continuar a trabalhar para conseguir um complemento à sua pensão.

José: 580 euros de reforma, 340 de renda

Entra-se em casa de José, na zona da Amadora, uma vivenda convertida em dois apartamentos, e tudo nos leva a tempos antigos. A estante está repleta de fotografias da filha mais velha, que morreu aos 25, com uma embolia pulmonar, deixando duas crianças com cinco e três anos. Há molduras com fotos dos netos e também com fotos da filha mais nova, com 23 anos. “Olhe, esta ainda andou a estudar jornalismo. Depois, começou a trabalhar no banco, gostou daquilo e desistiu do curso”, revela.

José tem 79 anos e não passou da 4.ª classe. Não se importa que seja usado o nome verdadeiro. “Desde que não revele o apelido… Josés há muitos…”, brinca.

Os móveis da sala estão repletos de livros antigos (diz que gosta de ler) e de objetos aos quais José não dá uso. Aponta para dois carretos de canas de pesca e justifica: “estão ali parados. Eu gostava de pescar e até me dava muito jeito, que apanhava, às vezes, quatro ou cinco corvinas. Dava à minha irmã e ainda ficava com peixe para mim para uns tempos. Mas a pesca é um passatempo muito caro e eu não tenho dinheiro”, lamenta.

Em cima da mesa estão receitas médicas, cartas da Segurança Social (“Olhe, estava aqui a ver isto e nem consigo acreditar: vão aumentar a minha reforma 13,77 euros. Isto dá-me para quê?”), um naperon branco em crochê e, sobre ele, a boina dos paraquedistas, como nova, e fotografias antigas do tempo da vida militar. “Tenho saudades desse tempo, sabe?”, admite.

José diz que tem saudades dos tempos em que era paraquedista. (CNN/Manuela Micael)

José trabalhou numa fábrica de tintas durante 30 anos. Nesse período, os descontos sempre foram feitos. Depois, resolveu demitir-se e ir pintar casas, com os netos, que, entretanto, tinham crescido, e o genro (“que nunca chegou a refazer a vida depois da viuvez”). Enquanto trabalhador independente, nunca descontou. “O dinheiro fazia falta ao fim do mês e eu não pensei no futuro”, admite.

Agora, recebe por mês 587 euros, mas paga 340 de renda de casa, mais 42 da prestação do aparelho auditivo. “E depois, já se sabe… sobram-me uns 200 euros que dão para eu comer. A roupa que tenho é toda de quando os tempos eram bons. O que vale é que não engordei… se preciso de uns sapatos, espero pelo subsídio de Natal ou de férias. Normalmente, com o subsídio de férias, aproveito e vou à terra uma semanita, para matar saudades”, diz.

“Eu fome não passo. Há sempre uma massa e um atum… mas se perguntar se eu me alimento bem, até para a minha saúde, tenho de lhe dizer que não. Porque uma pessoa vai ali abaixo ao supermercado, traz um saquito com umas coisitas e deixa lá logo 20 ou 30 euros. Devia comer mais fruta e mais legumes. Mas estão tão caros”, assume

A médica “que é um anjo”

José vai tendo a ajuda dos netos, que emigraram para França com o pai, “mas estão sempre preocupados comigo e um deles ainda há pouco tempo me enviou 100 euros”, da filha, “que ainda agora me deu 70 euros”, dos irmãos (“só à minha irmã, devo 70 euros. Vinte aqui, 10 ali… já lhe devo 70. Tenho de lhos pagar”) e até da ex-mulher. “Almoço todos os domingos com ela e com a minha filha”, confessa.

José foi diagnosticado com um tumor nos intestinos. “Ainda não sei se é benigno se é maligno. Estou à espera de ir fazer um exame ao São Francisco Xavier, porque a médica não conseguiu perceber com os exames que já fiz”, conta.

Quando se fala de despesas fixas, a farmácia, por enquanto ainda não leva grande fatia. Mas lá vem um achaque ou outro que exige um pouco mais do mês. No início de janeiro, teve um desses problemas: “Uma úlcera no estômago”. Na consulta do Centro de Saúde, foram-lhe receitados três medicamentos imprescindíveis para o tratamento. Um protetor para o estômago, um antibiótico e um medicamento para as dores. “Tive de dizer à médica ‘oh doutora, este mês, não consigo’”, confessa.

José veio para casa de receita na mão e sem os remédios. À espera de que o chá ajudasse a travar a maleita. Estávamos a 7 de janeiro e José já não conseguia fazer face a uma despesa extraordinária de mais de 30 euros.

Já a tarde tinha escurecido quando lhe tocaram à campainha. José nem queria acreditar: “era a doutora Sofia. Aquela médica é um anjo. Foi à farmácia, comprou-me os medicamentos e veio trazê-los a casa”.

O canto dos pássaros

José parece não querer largar as recordações. Há muito que a casa não vê obras: “Olhe, pintei eu há pouco tempo o meu quarto. Até pintei a parede da cabeceira de vermelho, que eu gosto do Benfica”.

José vive com 587 euros de reforma. Mas paga 340 euros de renda de casa e ainda a mensalidade do aparelho auditivo. (CNN/ Manuela Micael)

Na varanda, amontoam-se escadotes, pincéis, latas de tinta meias cheias e rolos de pintor: “Mas agora, mesmo que eu queira trabalhar, não tenho saúde. Não me sinto capaz”.

Com as ferramentas abandonadas, convivem duas gaiolas grandes. Uma tem um periquito preto e vermelho. Parece falar com o dono. A outra tem um pássaro branco e dois amarelos. “São a minha companhia. Um dia, que já não possa cuidar deles, aqueles dou-os a quem os quiser e este abro a porta da gaiola e deixo-o ir à vida dele”, planifica.

Agora é ele quem se sente “preso numa gaiola”. Tinha “um carrito velho” que dava para “as minhas voltinhas”. “O outro dia, uma senhora que não respeitou o stop, bateu-me e foi perda total. O perito disse-me que me devem dar uns 800 euros por ele. Olhe, se assim for, vou pagar à minha irmã e depois logo vejo”, conta.

“Aqui, os transportes são miseráveis. À hora de ponta, ainda se veem uns autocarros, mas entre as 10:00 e as 16:00, se eu quiser ir a algum lado, não posso”, lamenta.

José recebe mais do que a reforma mínima, mas não passa um dia sem fazer contas à vida. É um homem desgastado física e emocionalmente e diz que a vida lhe “tem sido tão madrasta” que até já pensou “em asneiras”: “Se eu não fosse tão católico, porque sou, já tinha feito alguma”.

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