A empresária que tirou dois cursos, aprendeu seis línguas e triunfou num mundo de homens (sem beber whiskey ou fumar charutos)

9 mar 2023, 09:13
Raquel Rosa

Raquel Rosa tem um problema de audição, que durante muito tempo a tornou quase surda. Hoje ouve bem graças a um aparelho e não deixa que as dificuldades se coloquem no seu caminho. Representa jogadores como Upamecano, Camara ou Haidara e diz que o que a apaixona, mais do que a comissão de uma transferência, é fazer um plano desportivo para desenvolver o atleta. Nascida no Brasil, cresceu na Alemanha e até já integrou a comitiva da seleção alemã que foi campeã em 2014.

Raquel Rosa é uma mulher num meio de homens.

Nascida no Brasil, viajou para a Alemanha com os pais, atirou-se aos estudos e entrou no mundo do futebol masculino. Hoje é empresária e representa craques do tamanho de Upamecano (Bayern Munique), Camara (Mónaco), Haidara (RB Leipzig),  Perrault (Southampton) ou Timothé Rupil (Mainz).

Ela é senior manager na Unique Sports Group, uma agência que representa mais de 400 jogadores, que contabilizam um valor total de 850 milhões de euros.

Raquel Rosa veio a Portugal a propósito de uma mesa redonda sobre o futebol feminino organizada pela Federação, e já de partida falou com o Maisfutebol.

«O trabalho que eu faço é muito ligado aos meus jogadores e ao plano de carreira para cada um deles: ajudá-los a de um grande talento se tornarem um grande jogador, como aconteceu por exemplo com o Upamecano», sublinha.

«Isso significa fazer um plano desportivo, fazer um trabalho de análise, ajudá-los com a parte de nutrição, enfim, tudo que precisam para desenvolver o talento.»

Não há dois jogadores iguais, não há dois jogadores com necessidades iguais, não há um livro que ensine o que cada um precisa.

Às vezes, aliás, o que precisam é até... algo exótico.

«Ao Upamecano até um professor de ópera tive de arranjar. Já tive de contratar cozinheiros, para o jogador aprender a cozinhar, já tive de contratar um especialista em ligamentos cruzados. Estou sempre à procura de formas do jogador melhorar. Muitas vezes precisa de um preparador físico, de um osteopata, de um mental coach, de um professor de ioga. O importante é ele sentir-se bem para dentro de campo dar cem por cento.»

Mas... um professor de ópera? Ele é cantor?

«Não, ele queixava-se que depois dos 60 minutos ficava sem voz, com o esforço e o tempo de jogo ficava mesmo sem voz e no dia seguinte esta rouco. Como ele é central, é o último jogador de campo antes do guarda-redes, a voz é importante para coordenar os companheiros», revela.

«Eu dei cabo da cabeça a pensar como podia ajudá-lo. Existem remédios, mas tomar comprimidos não é bom, tem contraindicações. Até que me lembrei de uma visita a Florença, onde vi vários estudantes de canto a treinar a voz com a mão na barriga. E tive essa ideia de contratar um professor de ópera para ele.»

«Ser mulher obriga-me a impor um respeito maior»

Raquel Rosa garante que é esta parte do trabalho que a seduz: pensar e trabalhar o desenvolvimento do jogador. Mais do que fazer uma transferência. Aliás, a transferência tem de ser parte do plano de desenvolvimento do jogador.

«Eu vejo todos os jogos dos meus jogadores, no final dos jogos conversamos sempre, fazemos uma análise, sei todos os pontos fortes e todos os pontos fracos deles, sei porque é que não jogou depois de fazer um golo. Por isso eu tenho poucos jogadores, para dar um acompanhamento muito individual a cada um e estar bem conectada o com o trabalho deles», refere.

«Eu trabalhei no Hoffenheim e no Leipzig, que são dois clubes que lançam muitos jogadores. Por isso recebi uma base de conhecimento muito grande, construí uma rede de sabedoria, tanto a nível de negociações e diretores, como de táticas e análises de treinadores e até de trabalho físico de preparadores. Agora no trabalho de agente aproveito isso tudo durante todo o ano, mais a parte das transferências. Que clube é bom para ele? Que clube pode pagar? Como estabeleço uma relação de trabalho nesse clube? Claro que há empresários que só tratam das transferências, mas eu prefiro desenvolver um grande talento para se tornar um grande jogador. Esse é que é o desafio que me atrai.»

De resto, e porque este é um trabalho sobre uma mulher num mundo de homens, interessa saber se ser mulher a prejudicou. Raquel Rosa não gosta de falar disso: não quer que o género seja definidor de competência. Mas deixa uma garantia.

«O mundo do futebol funciona muito por ligações, alguém que conhece alguém. Para mim ser mulher foi um obstáculo no sentido de não ter um sponsor, alguém que olhe para nós e se reveja, porque somos inteligentes, ou ambiciosos, ou irreverentes, e então vai ajudar-nos a crescer profissionalmente. Eu não tomo whiskey ou vou fumar um charuto com homens», revela.

«Acontece muitas vezes após os jogos, à meia noite ou uma da manhã, os empresários irem beber um vinho ou uma cerveja com os diretores de clubes. Eu como mulher, não vou. Não quero fazer isso. Não vou para bares com os jogadores, por exemplo. Tenho de ser mais concentrada, mais profissional, conquistar mais o meu espaço. Tenho essa barreira, que um homem não teria, mas consigo chegar lá de outra forma. O facto de ser mulher obriga-me a impor um respeito maior.»

Quando é questionada se já foi vítima de assédio, Raquel Rosa solta uma gargalhada.

«Não. Ninguém iria ter essa ousadia. Quando me vou encontrar com alguém, estou ali pelo trabalho e deixo isso bem claro desde o início.»

«Entrei no Hoffenheim para trabalhar com o Ralf Rangnick»

Mas quem é afinal Raquel Rosa?

A agente é a prova de que estudar compensa. Chegou à Alemanha adolescente e foram os estudos que abriram as portas para construir uma carreira.

«Tirei licenciaturas em Ciências do Desporto e de Ciências Económicas. O meu sonho sempre foi ser economista e como na Alemanha os estudos são gratuitos, consegui tirar licenciaturas em Economia e em Ciências do Desporto.  O desporto é uma grande paixão e por isso também tirei o curso de treinadora. Aprendi línguas, que é uma coisa que não existe no Brasil, as pessoas lá não têm essa hipótese de tirar cursos gratuitos. Aprendi quatro línguas e hoje falo seis», diz.

«Quando estava na faculdade, tirei a minha licença de treinadora e treinava a seleção do sudoeste. Nessa altura, na faculdade, ouvi que o Hoffenheim estava à procura de alguém que falasse português do Brasil, que é um pouco diferente, e que conhecesse táticas. O treinador do Hoffenheim nessa altura era o Ralf Rangnick, que é conhecido como o professor da tática. Era uma grande possibilidade e eu nem pensei duas vezes. Enviei o meu currículo e fui.»

O Hoffenheim tinha nessa época os brasileiros Carlos Eduardo e Luiz Gustavo, pelo que precisava de alguém que percebesse de futebol, falasse português e falasse alemão. Treinadora, com curso, e a acabar a licenciatura em Ciências do Desporto, Raquel Rosa era a pessoa ideal.

«O meu trabalho era traduzir para eles a tática que o treinador estava a dar para o grupo, para eles fazerem bons treinos e bons jogos.  Depois disso, um diretor disse que precisava de alguém com o meu perfil para ajudar nas negociações, porque eu falava na altura quatro línguas e tinha conhecimentos de economia.  Aí colou. Ter formação de treinadora  e de economia fez a diferença», refere.

«A partir daí conheci vários bons empresários e outros empresários que faziam um trabalho que podia colocar a carreira do jogador em risco. Então eu disse para mim mesma que quando tivesse oportunidade iria trocar do lado.»

Ao longo do tempo foram surgindo algumas hipóteses de se lançar no mundo da representação de atletas, até que em 2018 sentiu que era a oportunidade certa.

Campeã do mundo com a Alemanha em 2014

Mas antes disso ainda teve outra grande experiência.

«Em 2014 fui para o Mundial do Brasil com a seleção alemã, depois o Rangnick quis que fosse com ele para o Leizpig e em 2016 voltei a ir com a seleção alemã, agora para o Europeu. Em 2018 eu mudei então para uma agência.»

A hipótese de se juntar à seleção alemã aconteceu como muita coisa na vida de Raquel Rosa: por concurso.

«Eu conhecia o Hans Flick, que era adjunto da seleção, do tempo da seleção do Sudoeste e conhecia o psicólogo, que era também psicólogo do Hoffenheim. Perguntei-lhes se podia ir trabalhar com eles, mas o Hans Dieter Hermann disse-me para enviar o currículo como todos os outros. Não pensei que era má vontade, mas também não entendi muito bem. Como tinha respeito por eles enviei o currículo», conta.

«Éramos mais de mil que queriam ir com a seleção para o Brasil. No fim fiz três entrevistas e escolheram-me. Aí percebi qual era a intenção do Hans Flick: ele queria que eu ganhasse o lugar pelas competências que trazia. Para o Euro 2016, já nem enviei o currículo. Foram eles que me ligaram para ir com eles.»

Na seleção alemã, Raquel Rosa fazia tudo o que tinha a ver com project management: tratar dos contratos para campos de treino, espaços de conferências de imprensa, contratos com empresas de luz, de água e de telefone.

«Depois o diretor técnico chamou-me e disse-me que como eu falava seis línguas, queriam que fosse para o lado do treinador e dos jogadores para traduzir as perguntas dos jornalistas. A seleção alemã queria que todos os jornalistas tivessem a possibilidade de colocar a questão na sua língua materna», conta.

«Só que eu não sabia quem ia fazer a pergunta, nem em que língua. Para além disso, como sou surda, se o meu aparelho falhasse eu poderia queimar a minha reputação, com as câmaras todas na minha cara. Mas enfim, quem não arrisca não petisca. Eu pensei que se não fosse eu iria outra pessoa no meu lugar e então fui com tudo. Foi um grande desafio, traduzir tudo, passar do espanhol para o francês, ou do português para o alemão, com uma câmara no rosto e preocupada que o aparelho não falhasse. Mas correu tudo bem.»

O que nos leva a outro aspeto: Raquel Rosa tem problemas de audição. O que tornou tudo ainda mais complicado: durante muito tempo quase não ouvia o que se lhe dizia. Foi com essa dificuldade que fez os estudos e que aprendeu línguas.

«Hoje já tenho um aparelho que me ajuda a ouvir, mas na altura não tinha. Então aprendi quatro línguas sem aparelho, praticamente só a falar. Se não se ouve, não se aprende a pronúncia. Sabemos a gramática, mas não a pronúncia. Então esse foi um grande desafio. Hoje falo português, inglês, alemão, espanhol, francês e italiano. Mas só estas duas últimas é que aprendi já com aparelho.»

Por aqui já se percebe que como Raquel Rosa é uma lutadora.

Ela que está a tirar um doutoramento, com uma tese sobre transferências, que só veio aumentar a vontade de se lançar no mundo da representação de jogadores.

«Eu queria uma agência que tivesse uma filosofia igual à minha, onde fizesse um acompanhamento a sério dos jogadores e não apenas transferências. Então fui para uma agência e pedi para ficar com o mercado francês, porque a França é o mercado número um. Agora estou numa agência maior, uma agência inglesa que liderou o valor de transferências nos dois últimos mercados.»

Deve ter sido para honrar guerreiras assim que se criou o dia da mulher.

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