Pergunta 1: há ou não escassez de produtos nos supermercados? Pergunta 2: vai ser racionado algo mais além do óleo e da farinha?

11 abr 2022, 09:56
Supermercado (Foto: Getty Images)

“Não há açambarcamento, mas as pessoas estão a comprar mais porque sabem que vai haver um aumento de preços.” ASAE investiga cerca de uma dezena de denúncias de preços especulativos

“Neste momento, não há escassez de produtos” nos supermercados portugueses. A garantia é de Gonçalo Lobo Xavier, diretor-geral da Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição, que assegura que, apesar de haver racionamento de óleo e farinha em algumas superfícies comerciais, não estamos na iminência de ruturas de stocks. “Nem se trata neste momento de racionar, há um limite ao número de artigos que pode ser adquirido pelo cliente”, atalha, lembrando que a legislação portuguesa prevê a medida de racionamento se o retalhista estiver “perante um consumo inusitado e com contornos de açambarcamento”.

Mas foi precisamente isto que aconteceu com o óleo alimentar, sobretudo nos dias que se seguiram ao início da invasão russa da Ucrânia, país exportador de óleo de girassol: as cadeias de supermercados decidiram racionar o produto, com a justificação de garantir o normal funcionamento e garantir que o óleo não voava das prateleiras. Um “epifenómeno”, garante o diretor-geral da APED, semelhante ao que aconteceu no início da pandemia com o papel higiénico. “Temos stock de óleo para os próximos meses, mas não estávamos preparados para que, de repente, lojas que vendiam 100 litros de óleo por dia passassem a vender 400”, explica, admitindo que existe um problema de fornecedor  de óleo a breve prazo “porque a matéria-prima vem sobretudo da Ucrânia", mas garante que as cadeias de distribuição estão já a organizar-se para ir buscar óleo a outras geografias, nomeadamente à América e África do sul.

“Neste momento, não temos indicação nenhuma por parte dos nossos retalhistas de problemas na cadeia de abastecimento”, sublinha. E lembra que o “fenómeno do óleo” terá sido potenciado pela situação em Espanha, onde o governo decidiu autorizar de forma excecional e temporária uma limitação das vendas de produtos porque a guerra na Ucrânia, aliada a uma greve de motoristas de pesados, fez esgotar alguns produtos nas prateleiras, nomeadamente ovos, leite, farinha e, naturalmente, o óleo de girassol.

Em Portugal, garante Lobo Xavier, após um período inicial de grande compra de óleo, a situação nos supermercados parece estar “normalizada”, ainda que o consumo permaneça acima do que seria habitual, em resultado de uma espécie de estratégia de poupança das famílias: “Não há açambarcamento, mas as pessoas estão a comprar mais porque sabem que vai haver um aumento de preços”, explica. “Querem comprar ainda ao preço antigo.”

E os preços vão continuar a subir. Segundo o diretor-geral da APED, “todos os estudos indicam que o custo dos produtos alimentares vai aumentar nos próximos tempos até 30%, é um reflexo dos tempos que estamos a viver, depois de uma pandemia, de uma seca generalizada, no caso português, e do conflito com a Ucrânia”, resume Gonçalo Lobo Xavier.

Supermercados garantem que não falta nada

A CNN Portugal questionou algumas das maiores cadeias de supermercados a operar no país para saber se há escassez de produtos ou se está a ser ponderado racionamento noutros bens para além do óleo alimentar e da farinha, cujas vendas estão limitadas.

Numa resposta por escrito, a Sonae MC, dona do Continente, garante que nos entrepostos “não há falta de nenhum bem essencial, pelo que a distribuição para as lojas está a decorrer normalmente”, e garante que, além do óleo alimentar – cuja venda está limitada a seis litros por cliente em cada compra – as lojas não estão a limitar a venda de produtos. Mas deixa um alerta: “O Continente apela à compreensão dos seus clientes para a situação que se vive, resultado do conflito militar a decorrer na Ucrânia.”

A marca garante ainda que tem procurado alternativas, “inclusive de matéria-prima noutros mercados, por forma a garantir que não haja qualquer falta de produtos nas lojas Continente”, e que está “empenhada em assegurar a estabilidade das cadeias de fornecimento e evitar que os consumidores sejam confrontados com subidas nos preços dos produtos”.

Fonte da Jerónimo Martins, que detém o Pingo Doce e o Recheio Cash & Carry – este último dedicado apenas aos profissionais do retalho - sublinha que o racionamento de produtos nas lojas prevê ainda assim a venda de quantidades significativas por cada compra: no Recheio, é possível comprar até 75 litros de óleo por marca e 25 quilos de cada marca de farinha, enquanto no Pingo Doce, para consumo doméstico, os clientes podem levar seis litros de óleo por compra.

A mesma fonte garante que esta limitação da venda de produtos foi imposta para garantir o normal funcionamento das lojas e reposição de stocks e que não tem chegado informação de reclamações ou descontentamento dos clientes. A Jerónimo Martins remete ainda para as declarações do presidente e administrador-delegado do grupo, Pedro Soares dos Santos, que em várias ocasiões tem sinalizado a necessidade de descida do IVA dos bens essenciais para evitar a escalada de preços, à semelhança do que foi feito na Polónia, onde o grupo também opera. Fonte da empresa assegura ainda que tem sido feito um grande esforço para não refletir o aumento de preços no consumidor final.

Contactada pela CNN Portugal, a Auchan não prestou esclarecimentos a propósito de racionamento de produtos ou de aumento de preços. Já fonte da Makro que, tal como o Recheio, é uma grande superfície destinada a grossistas, disse apenas que não fará comentários sobre o tema. Em loja, segundo o Jornal de Notícias, a Makro está a limitar a venda de farinha a cinco unidades por cliente, tal como já fazia com o óleo alimentar. Ao JN, fonte da Makro explicou que a decisão foi tomada “para garantir a continuidade de fornecimento ao sector profissional”.

Porque sobem os preços

O diretor-geral da APED diz que o aumento de preços no retalho alimentar – e também no retalho especializado, desde as lojas de eletrónica até às perfumarias – está intimamente ligado a três fatores, sendo o primeiro um “problema que Portugal não consegue resolver": a inflação. “Vamos chegar aos dois dígitos de inflação rapidamente”, admite Lobo Xavier. “Era preciso baixar a inflação, mas isso não está nas mãos do Estado português, está nas mãos do BCE e de uma política europeia coordenada com esse fim”, reflete.

Um segundo fator de aumento de preços nos supermercados é o custo da energia, que está a subir sobretudo desde que começou o conflito na Ucrânia “e está a impactar toda a cadeia de valor, tanto o produto agrícola como a indústria de alimentação de produtos transformados”, esclarece o responsável. Por fim, associados aos custos energéticos, subiram igualmente todos os fatores de produção, nomeadamente os materiais e matérias-primas, fazendo crescer também o custo do investimento em infraestruturas.

“Está a tentar-se ao máximo não transmitir de forma imediata este aumento ao consumidor”, garante Lobo Xavier, que assinala que as dificuldades sentidas pelos associados da APED são cada vez maiores, dando o exemplo do sector alimentar. “É um negócio essencialmente de volume, com margens relativamente baixas, na ordem dos dois a três por cento”, explica. “Aumentando os preços no início da cadeia, com o transporte, com a indústria que também tem de incorporar a sua margem, tudo acontece em catadupa. Por muita eficiência que haja, torna-se difícil não transferir alguns destes custos. As margens estão na mesma, o preço final é que é maior.”

O diretor da APED dá um exemplo: os produtos não perecíveis que estão agora nas prateleiras dos supermercados, por exemplo, foram comprados há um mês e refletem os preços imputados aos retalhistas no momento em que foram adquiridos. Com os preços em trajetória ascendente de forma generalizada é natural que, nas próximas quatro semanas, os mesmos produtos encareçam, penalizando o consumidor cujos salários não sobem, naturalmente, na mesmo proporção e velocidade. 

Questionada sobre a licitude destes aumentos, e se a situação internacional não poderá servir de pretexto para a especulação em território nacional, fonte da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) disse à CNN Portugal que está a investigar “cerca de uma dezena de denúncias” sobre o aumento de preços em vários bens, alimentares e não alimentares, acrescentando que está a acompanhar a subida de preços verificada no mercado em consequência do conflito na Ucrânia.

Numa resposta por escrito, a ASAE informou que estas denúncias estão ainda em averiguação, “não tendo sido confirmada, até ao momento, qualquer conduta ilegal que configure, nos casos concretos, delitos antieconómicos”. A verificar-se um ilícito, este configuraria a prática, precisamente, de um crime de especulação, punível com pena de prisão de seis meses a três anos e multa não inferior a 100 dias.

“No entanto, e em traços muito gerais, não existindo preço legal definido (ou margem de lucro definida) para os bens, a norma penal só é preenchida quando se comprovar a existência de intenção de um lucro ilegítimo”, um conceito que, realça fonte da ASAE, tem de ser apurado caso a caso tendo em conta o tipo de bem, os preços de aquisição, os custos diretos e indiretos ou a existência de um contexto de necessidade, por exemplo.

Sinais de alarme?

Se há previsão de que, nos próximos meses, alguns produtos possam ficar indisponíveis nos supermercados? O diretor-geral da APED admite que, por agora, nada faz soar campainhas de alarme, mas não é possível ignorar eventuais impactos que a subida dos custos com transportes - por causa dos preços dos combustíveis - e energia possa ter na cadeia de abastecimento e na disponibilidade dos próprios produtos: se os prejuízos forem maiores que as receitas, Gonçalo Lobo Xavier não tem dúvidas de que muitos produtores dos vários sectores optem por encerrar atividade. 

"Ainda não estamos a assistir a escassez de produtos de forma nenhuma que seja assinalável, mas ninguém pode falar do que vai acontecer daqui a três meses. Neste momento, a cadeia de abastecimento está a funcionar, ainda que debaixo de grande pressão, mas não temos nenhum sinal que nos faça preocupar", realça. No que diz respeito aos produtos com origem na Ucrânia, nomeadamente o óleo de girassol e os cereais, que estão a fazer subir preços não só das farinhas e do pão mas também das rações dos animais, Gonçalo Lobo Xavier refere que o ajustamento do mercado global para ir buscar estas matérias-primas a outros países, agora fora da Europa, poderá levar alguns meses, mas que dentro de pouco tempo a situação deverá normalizar. O que não normalizará serão os preços, já que importar produtos da América Latina ou de África do Sul trará, naturalmente, maiores custos do que importar matéria-prima da Europa.

"Tem de haver uma resposta capaz a nível europeu para os aumentos dos custos da energia", frisa ainda o diretor-geral da APED. "Até porque vemos, não só no sector da distribuição mas também noutras áreas de negócio, na indústria cerâmica, na indústria têxtil, que são grandes consumidoras de energia, bem como algumas explorações agrícolas, que o aumento exponencial de custos pode levar muitos produtores a tomarem a decisão de liquidar a operação". 

Ainda assim, Gonçalo Lobo Xavier sublinha que é preciso dar "um sinal de serenidade" em relação à situação portuguesa. Apesar da "grande pressão", o diretor da APED realça que Portugal está ainda num lugar de privilégio em relação a outros países, com relativa abundância de produtos e sem lidar com consequências diretas do conflito que assola a Ucrânia. Para o responsável, importa nesta altura que o consumidor tome decisões de forma mais racional e que as famílias evitem o desperdício alimentar, para assim "contribuirmos todos para a sustentabilidade deste ecossistema".

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