Luís Montenegro já sabia o que a casa gasta quando decidiu manter em funções uma ministra inexistente. Naturalmente, não o espantará que, não havendo ministra, se coloquem as questões a quem mantém em funções uma inexistência. A alegada ministra não existe. O PM sim. Que responda pelo que está a acontecer
Comecemos pelo mais importante, como convém. E o principal, quando se fala do Ministério da Saúde, é ter a noção de que a ministra da Saúde não existe. Existe um primeiro-ministro, e é a ele que deve ser feita toda e qualquer pergunta sobre o estado da Saúde providenciada pelo Estado. Que, como se tem visto, não dá saúde a ninguém.
Luís Montenegro já sabia o que a casa gasta quando decidiu manter em funções uma ministra inexistente. Naturalmente, não o espantará que, na ausência de ação, melhoramentos, respostas do SNS a necessidades básicas dos utentes, e não havendo ministra, se coloquem as questões a quem mantém em funções uma inexistência.
A ministra não serve para fazer – pois não faz. A ministra não serve para decidir – pois não decide. A ministra não serve para dar entrevistas – pois acabaria por lembrar a todos que só é alegada ministra por responsabilidade de Montenegro. A ministra não serve sequer para se desculpar – pois nunca tem culpa. Quando promete refundar, afunda. Dissolve-se a si própria sem necessidade de dissolventes – como é só um holograma, puro ar, não tem sequer a consistência de uma bola de sabão, para usar uma metáfora que o Governo entende.
Ana Paula Martins não tem políticas, tem palavras, que por vezes fazem frases. Essas frases raramente indiciam um rumo ou um pensamento para o SNS. Não tem autoridade porque ninguém a leva a sério. O SNS definha, apesar de gastar dinheiro como nunca. Os problemas agravam-se pela razão simples de que não há milagres.
A banalidade da incompetência
Histórias de doentes em bolandas, chutados de hospital para hospital, de ambulância para helicóptero, de heliporto para heliporto, de helicóptero que voa mas não aterra ali para helicóptero que voa e aterra – porque helicóptero que cumpra todas as suas funções, voar e aterrar em qualquer hospital, a qualquer hora do dia ou da noite, parece que não há nenhum.
Estes casos, que antes nos pareciam escandalosos e inimagináveis, tornaram-se tão banais como o sol pôr-se todos os dias. Utentes que morrem porque o básico falha. Recém nascidos que morrem porque cinco visitas a cinco hospitais não foram suficientes. Cuidados que não chegam, porque utentes não têm dinheiro para chegar ao hospital distante, tendo um, perto, que não lhes acode. Já imaginaram? Uma mãe perder um filho porque não tem como pagar a viagem até à outra banda do Tejo e o sistema a deixa sem soluções.
É este o estado da Saúde do Estado. Sem ministra que oriente, sem secretários de Estado que compensem, sem diretor executivo do SNS que dirija ou execute, percebe-se o que querem que pensemos: que o SNS, tal como a ministra, não existe. Que é alegado, como ela, um holograma, como ela. E, preferindo viver a morrer, os portugueses que podem agarram-se aos seguros de saúde, às consultas privadas, às urgências que cobram mas não fecham.
Pára-choques, pára-raios…
Desmentida, desautorizada, inimputável, a alegada ministra vai fazendo umas aparições, como um avistamento de santinha, para dizer banalidades que lhe lavam responsabilidades. Mas sobretudo diz o óbvio que devemos todos, sempre, ter presente: ela só é ministra; perdão; ela só ocupa o cargo enquanto o primeiro-ministro assim o desejar.
Diz a intriga política que dá sempre jeito a um governo incluir estas figuras odiosas que atraem o desprezo, a impopularidade e a descrença na governação. Há quem lhes chame ministros pára-choques. Ou pára-raios. Ou raios parta.
Uma coisa, só uma, nunca falha, e nos dá o doce consolo de saber que alguém está naquele Ministério, sempre presente, atento, de plantão para o que der e vier: o “gabinete”, a magnífica equipa de comunicação do Ministério da Saúde que a qualquer problema responde que “não é connosco”, “nada falhou”, “todas as regras foram cumpridas”.
Refundar ou afundar, eis a questão
No rosário de casos que se vão acumulando, note-se a resposta que o “gabinete” deu ontem sobre o infeliz acidentado que esteve mais de cinco horas para chegar de helicóptero de Covilhã a Coimbra (percurso que, feito de ambulância, demoraria no máximo 2 horas). O caso do doente da Covilhã é demasiado rocambolesco para resumir neste texto. Pode ser lido aqui. Sobre o absurdo do que se passou, a Sociedade Portuguesa de Emergência Pré-Hospitalar teve de explicar aquilo que devia ser óbvio para qualquer ser pensante e qualquer organização funcional: “Quando o tempo total da resposta aérea ultrapassa o tempo estimado de transporte terrestre, é considerado clinicamente mais adequado e seguro que o paciente seja transportado por via terrestre, a fim de garantir uma assistência eficaz e tempestiva”.
Quanto aos esclarecimentos sobre o que se passou, segundo o “gabinete” da alegada ministra, competem apenas ao INEM. Alguém julgava que Ana Paula Martins tinha chamado a si a tutela direta do INEM, depois da debacle do final ano passado, quando o Ministério decidiu ignorar um pré-aviso de greve dos trabalhadores do instituto? Se sim, julgava bem, pois a alegada ministra disse mesmo que chamava a si essa responsabilidade. Também disse que iria “refundar” o INEM. Mas isso foi em novembro. Já estamos em julho. O INEM não foi refundado, foi afundado.
Também o diretor-executivo do Serviço Nacional de Saúde, cuja utilidade é sobejamente desconhecida, lavou as mãos de qualquer responsabilidade – vá lá que desta vez não culpou a vítima, como em abril com uma mulher que teve o azar de estar grávida e precisar do SNS ao fim de semana. Não culpar a vítima é sempre o primeiro passo para um dia poder vir a assumir responsabilidades. Há esperança de mínimos.
…E entra Nuno Melo
Atirado para debaixo do helicóptero, o INEM balbuciou umas últimas palavras sobre “decisão médica conjunta”. Mas o Ministério da Defesa juntou-se à festa… para desmentir todos os relatos anteriores. Segundo o “gabinete” de Nuno Melo, “desde que o helicóptero descolou do Montijo até que entregou o doente em Coimbra decorreram 2h15 com tempo de espera do doente incluído”.
É bom que se entenda um facto simples sobre certo tipo de natureza humana: Melo não esteve tantos anos à espera de ser ministro para a sua tutela ser achincalhada por uma alegada ministra da Saúde. Nem os colegas da ministra-holograma a respeitam.
Quem tenha chegado agora ao planeta Terra e ao país Portugal perguntará, e com razão, por que motivo o Ministério da Defesa se mete neste imbróglio. Pois bem, porque foi metido e gostou. O Ministério da Saúde e o INEM não foram capazes de contratar helicópteros para o transporte de doentes urgentes, vai daí o Governo tirou da manga quatro helicópteros prontos a salvar cidadãos dia e noite. Mas não de uma manga qualquer: da manga de Nuno Melo, que garantiu a prontidão dos quatro helicópteros da Força Aérea.
Tirando o facto de só um poder operar de noite. E tirando o facto de esse, que pode operar de noite, ser demasiado grande para aterrar em boa parte dos heliportos dos nossos hospitais. Enfim, minudências que não tiram o sono ao ministro Melo. Ele pode não saber muito sobre os helicópteros que lhe saem da manga, mas sabe que as críticas a um trabalho “tão virtuoso” só podem vir de quem não zela pelo interesse nacional.
Ingrato país, que não merece tão virtuosos ministros. Alegados ministros.
Talvez seja hora de deixar de perder tempo com ajudantes e exigir explicações a Luís Montenegro, o homem que chefia este alegado Governo.