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Comentador CNN

Que Se Lixem As Eleições | A direita continua a bater na deputada única do BE. É um favor que fazem a Mortágua

8 out, 09:00

Esta fixação é uma boa notícia para o BE. Talvez a única em muitos meses de travessia do deserto. Significa que Mariana Mortágua está longe de ter esgotado o seu potencial político e eleitoral

Se bem me lembro (e na verdade, uma pesquisa no arquivo da CNN confirmou), na noite das eleições legislativas André Ventura decretou a morte do Bloco de Esquerda. “O Chega matou o partido de Álvaro Cunhal. O Chega varreu do mapa o Bloco de Esquerda”, foram as suas exatas palavras. Esmagado eleitoralmente, reduzido à ínfima expressão parlamentar de uma deputada única, a declaração de óbito do BE terá sido das declarações menos exageradas do discurso inflamado, ameaçador e marialva de Ventura. 

As legislativas de maio foram um fracasso em toda a linha para o BE. As “manas Mortágua” desapareceram do Parlamento, sobrando apenas uma, e, de caminho, os fundadores do partido, arrancados de emergência à merecida reforma politica para encabeçarem listas em distritos decisivos, mostraram a sua irrelevância junto do eleitorado, ficando todos à porta do Parlamento.

O que faz espécie é a contradição entre as palavras e os atos de Ventura. Nada de novo, atenção. Esperar coerência de André Ventura é como procurar um boneco de neve na Costa da Caparica em Agosto. Mas a verdade é que Ventura e os mini-andrezitos continuam a falar de Mariana Mortágua, e a falar muito, e muito mal, como se fosse a personificação do Belzebu. Agora, foi por causa da flotilha humanitária. Antes, era por outra razão qualquer. A seguir, continuará. Curiosamente, também alguns dirigentes da IL mantêm a obsessão com a deputada única do Bloco. 

Carlos Moedas, esse, tem sempre o BE e a sua líder na ponta da língua. Apesar de ser o presidente da principal Câmara do país, e ter de certeza coisas mais importantes com que se preocupar, não há dia que não lance o nome Mortágua, como se fosse um anátema sobre a coligação de esquerda. Moedas conseguiu o feito de, na semana em que Mariana Mortágua foi uma das protagonistas políticas mais faladas do país, acusar Alexandra Leitão de “esconder Mariana Mortágua” – só porque a líder bloquista, acabada de chegar de semanas na flotilha e dias de prisão às mãos de Israel, precisou de descansar uma noite. 

Não se gastam munições com mortos

Faz sentido? Nem por isso. Mas esta fixação é uma boa notícia para o BE. Talvez a única em muitos meses de travessia do deserto. Significa que Mortágua está longe de ter esgotado o seu potencial político e eleitoral. Por muito cansada que esteja, por muito que tenha falhado nas legislativas, Mortágua continua bem viva no imaginário de uma certa direita. Se precisasse de uma prova de vida, aí está ela.

Uso a expressão “prova de vida” propositadamente. É porque tem faltado essa energia ao BE e à sua (ainda) líder. Bem sei que Mortágua se apresenta como recandidata à liderança dos bloquistas. Mas não tem mostrado a alma, o ânimo, de que um líder precisa. A palavra ânimo é importante neste contexto. Tem muitas camadas: estado de espírito, vontade, intenção, força moral, coragem, valor. Vem do latim animu, que significa alma, espírito, caráter. 

O BE parece ter perdido tudo isso na noite de 18 de maio. Estamos a poucos dias de novas eleições, e o BE está desaparecido em combate. Em simultâneo, o Governo negociou a nova lei da imigração com a direita radical, apresentou ideias para a habitação de que até muita direita desconfia (viu Carlos Moedas a criticar os 2.300 euros das “”rendas moderadas”?), prepara uma revolução nas leis laborais à medida da vontade dos padrões, está à beira de apresentar um Orçamento do Estado especialmente sinuoso. 

Enquanto isto, a coordenadora do Bloco de Esquerda estava em alto mar, com destino a Gaza, sabendo-se que nunca chegaria a Gaza.

A desistência em relação às autárquicas é uma confissão. A ausência em relação a tudo o resto parece o prelúdio de uma despedida. E, contudo, o Chega, a IL e algum PSD não deixam Mariana sair de cena. Em política não se gastam munições com mortos. O que isto nos diz é que a líder do BE, queira ou não queira, ainda tem vidas para gastar nessa função.

É o que dizem os apoiantes de André Ventura, não é? Se falam dele, é porque ele importa; se o criticam, dão-lhe exposição, notoriedade e votos. Por ironia, é isso que essa direita está a fazer com Mariana Mortágua.

O elogio de Mariana

É claro que a participação de Mortágua na flotilha que se dirigia a Gaza não é alheia à agressividade de que é alvo. Sim, a flotilha tinha objetivos políticos, o primeiro dos quais voltar a concentrar os olhos do mundo no que se passa em Gaza. Um “genocídio”, segundo a ONU, a generalidade das ONG com acesso ao terreno e inúmeros testemunhos de profissionais de saúde e (poucos) jornalistas. A fome como arma. Apresentar como propósito entregar ajuda humanitária a quem dela precisa é louvável, como é meritório voltar a puxar a atenção do mundo para o sofrimento dos palestinianos na Faixa de Gaza. Resultou. Para além do “plano de paz” de Donald Trump, para além da contagem de vítimas, os media (pelo menos na Europa) voltaram a falar de gente real (as vítimas) e a mostrar a força bruta do regime israelita, na forma como abordou (provavelmente de forma ilegal) um conjunto de embarcações e tratou os seus tripulantes. Entre eles estava Mariana Mortágua.

Que aposta é esta que justifica que a líder do BE se tenha ausentado de Portugal durante tanto tempo, num período crucial? Há quem veja um sinal de desistência (parece-me ser esse o ponto do Francisco Mendes da Silva, no Público). Talvez. Também pode ser uma estratégia de recomeço. Até pode ser as duas em simultâneo: uma estratégia de saída que abriu uma porta de reentrada.

A crise da Palestina está a impactar milhões de pessoas. As grandes manifestações que se veem em cidades por todo o mundo são a prova. Sobretudo com jovens que não aceitam ficar sentados a ver pela TV um genocídio e tentam pressionar os respetivos governos. 

Em Portugal também temos manifestações dessas. Por sinal, na sexta-feira o BE convocou manifestações exigindo a libertação da sua coordenadora – a mobilização foi fraquita, ficou aquém das petições online lançadas por trolls exigindo que Mariana ficasse retida em Israel.

Mas no sábado, noutra manifestação, não convocada pelo Bloco, mas de forma inorgânica, por grupos que se mobilizam por whatsapp e outras redes sociais, Lisboa viu um protesto volumoso, com muita gente, sobretudo jovens. O problema destes protestos inorgânicos é que há sempre um momento em que um idiota tem uma ideia – e não há nada mais perigoso do que idiotas com iniciativa. Alguém achou boa ideia invadir a estação de comboios do Rossio, e outro alguém achou que mesmo fixe era subir a uma carruagem e ser eletrocutado. Enfim…

Há quem veja nestes episódios ímpetos de juventude. No caso, de jovens radicalizados. Mas com uma causa: a Palestina livre. Tal como estão radicalizados muitos dos jovens que exigem ação climática com metas irrealizáveis e um horizonte de transição dos combustíveis fósseis povoado de fadas e unicórnios. Mas têm uma causa importante: a transição energética é mesmo necessária e é essencial fazer contravapor aos seus negacionistas.

À conquista dos nichos

A ideia de que os jovens não se importam por política está desmentida por vários factos fáceis de observar. Aponto apenas dois: 1) os ativistas e seus apoiantes que saem de casa para estas manifestações; 2) os resultados do Chega junto do eleitorado mais jovem.

Não há uma regra escrita que diga que só o Chega pode conquistar e mobilizar o eleitorado jovem. Os que reclamam a liberdade e autodeterminação da Palestina, a transição energética, o direito a habitação condigna e acessível para quem estuda ou para quem quer começar a sua vida adulta, ou a liberdade de viver a sua sexualidade como bem entendem, podem parecer pequenos nichos eleitorais. A palavra que importa aqui é “eleitorais”. Há ali votos por conquistar. Ninguém o pode fazer melhor do que o BE e o Livre. O Livre tem feito a sua parte do trabalho, o BE nem por isso.

No estado a que chegou o Bloco, a sua melhor forma de se reerguer será conquistar para as suas fileiras estes cidadãos mobilizados, mas desmotivados com os partidos. Falar para nichos, vários nichos – foi assim que Paulo Portas reergueu um CDS moribundo.

Mariana Mortágua na flotilha, Mariana Mortágua denunciando as manobras de intimidação israelitas, Mariana Mortágua presa e exibida, com centenas de ativistas, como troféu de caça do Governo de Netanyahu – eis imagens poderosas, de quem mostra determinação e coragem física. Julgo que não é preciso concordar com ela para concordar com isto.

Se Mariana Mortágua quiser/souber/conseguir transformar essa energia em capacidade de agregar nichos eleitorais dispersos e desencantados com o sistema, pode ter um caminho. Se a direita continuar a demonizá-la, meio caminho está feito.

PS: por estranho que possa parecer a alguns socialistas (como parece ser o caso do secretário-geral do partido), é bom para o PS que o PCP, o Livre e o BE cresçam e captem setores do eleitorado para os quais os quais os socialistas pouco ou nada têm a dizer. Perceber isto implica perceber que José Luís Carneiro não pode apoucar, ou fazer descaso, como fez, da ação de Mariana Mortágua. Ou será que o único plano de JLC é um dia conseguir um bloco central?

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