O que se está a passar com as políticas de imigração é sintomático de um processo mais amplo. De cada vez que Montenegro assume uma bandeira do Chega e a torna política do Governo, dá ao Chega um incentivo para extremar mais o seu discurso
De cada vez que Luís Montenegro cede numa bandeira do Chega, e a assume, ainda que de forma mitigada, como política do Governo, dá ao Chega um incentivo adicional para extremar ainda mais o seu discurso, tornar-se mais radical, para continuar longe dos partidos do “sistema”, que segundo Ventura são e serão sempre o PSD e o PS.
O Governo do PSD está a cair nessa armadilha, dando sucessivos passos para a direita, sem perceber — ou percebendo, mas sem se importar — que nunca nenhuma normalização das reivindicações do Chega chegará para Ventura baixar o tom e aceitar compromissos. Nem, tão pouco, ficará satisfeito o eleitorado que alegremente vota em Ventura, porque quer “mexer com isto tudo” ou “acabar com a corrupção”, ou porque “são sempre os mesmos” e deseja verdadeiramente “experimentar” algo diferente.
No fim deste processo — que não sei quando será, mas há de ser numas eleições legislativas, provavelmente nas próximas, sejam quando forem — o PSD ter-se-á abastardado e traído os seus princípios, sem ganho nem glória: o eleitorado acicatado pelo fogo e fúria de Ventura e do seu bando de trolls nunca se deixará ficar satisfeito com as cedências de Montenegro, que lhes parecerá sempre um moderado-vendido-ao-sistema. Ventura ultrapassará sempre Montenegro em radicalismo e decibéis, e o eleitorado potencial do Chega, que manifestamente está a crescer, preferirá sempre o original à cópia.
Até porque há políticas, argumentos e números circenses do Chega que, acredito, nem em desespero de causa Montenegro será capaz de protagonizar. Mas posso estar enganado.
Era uma vez o “reagrupamento familiar”
Vem esta previsão sombria a propósito da mudança de discurso do Governo sobre o reagrupamento familiar de imigrantes. O PSD tinha um discurso antes de ser Governo, quando o Chega tinha 12 deputados, manteve no essencial esse discurso quando chegou ao Governo, demarcando-se do Chega, já com 50 deputados, mas virou o bico ao prego e desdiz o que disse desde que o Chega passou a ser o segundo maior partido, com 62 deputados.
Antes de vencer as eleições, em novembro de 2023, Montenegro demarcava-se das políticas de imigração de “portas abertas” do Executivo Costa, mas também do discurso de portas fechadas do Chega. Encontrou esse meio-termo no “reagrupamento familiar”, duas palavrinhas apenas que, segundo o líder do PSD, permitiam o melhor de dois mundos: manter em Portugal os imigrantes de que o país precisa, pois não tem mão de obra, e assegurar a sua integração na sociedade. Palavras de Montenegro: “Nós precisamos mesmo de atrair, acolher e integrar imigrantes. (…) É uma boa política de atração e de integração de imigrantes podermos atrair os agregados familiares como um todo, e não penas os progenitores masculinos desses agregados familiares.”
São palavras em linha com as melhores conclusões de especialistas sobre acolhimento e integração de imigrantes. Grupos de homens, longe de mulher e filhos, desenraizados da sociedade onde vivem, ociosos nas horas de descanso, pode dar asneira. É desocupação a mais nos tempos livres, responsabilidade a menos no tempo todo. Quem sabe de segurança nos estádios de futebol sabe disso: a presença de mulheres e famílias baixa os níveis de testosterona e de conflito potencial.
Mesmo depois de chegar ao Governo, mesmo depois de conhecer em profundidade a dimensão do desastre deixado pela AIMA, uma criação socialista absolutamente incapaz de cumprir as suas funções de acolhimento e integração de imigrantes, Montenegro continuou a pensar o mesmo: o reagrupamento familiar é a melhor forma de atamancar as asneiras deixadas pelo governo anterior.
Disse o primeiro-ministro em outubro passado: “No âmbito da UE, defendemos que seja reforçada e que vá mais longe o agrupamento familiar. Pela parte de Portugal, privilegiamos uma imigração de famílias inteiras para que se possam fixar em Portugal e para que possam ter elementos do seu agregado na vida ativa, uns a trabalhar e outros a estudar nas nossas escolas.” Esse seria o ponto de equilíbrio, segundo Montenegro, “nem as portas escancaradas, nem as portas fechadas”.
Portugal não precisa apenas de trabalhadores braçais, também precisa de rejuvenescer a sua população, de preferência com jovens que se sintam suficientemente integrados para mais tarde ingressarem no nosso mercado de trabalho. O reagrupamento familiar seria o Ovo de Colombo para “uma integração plena”. “Permite adquirir a nossa cultura, adquirir o conhecimento da nossa língua, adquirir aquilo que são as bases para se qualificarem e estarem ao serviço da nossa comunidade no futuro.”Este era o pensamento de Montenegro.
Alerta vermelho
Era. Bastou que o Chega pusesse a correr nos esgotos das redes sociais a “notícia” — totalmente falsa — de que entrariam mais 500 mil imigrantes em Portugal por via do reagrupamento familiar, para que alguma comunicação social reproduzisse acriticamente essa falsidade e o Governo entrasse em modo de pânico.
Afinal, a ordem, assumida pelo gabinete do ministro Leitão Amaro, é dificultar o mais possível o reagrupamento familiar. Colocar condições em cima de condições, não agendar as necessárias reuniões na AIMA, travar com todos os expedientes, mais claros ou mais obscuros, o processo que há poucos meses era tão elogiado pelo primeiro-ministro. Segundo o Expresso, apenas os imigrantes que já têm filhos a viver (ilegalmente) em Portugal estão a conseguir o reagrupamento familiar. Outros, mesmo que cumpram os requisitos para trazer os familiares dos seus países de origem, não conseguem vaga para uma reunião na AIMA. Ao ponto de terem de ser os tribunais a forçar a AIMA a agendar esses atendimentos. A resposta do Governo será pronta: mudará a lei para que os tribunais não possam obrigar o Estado a cumprir a lei existente.
Contra as suas próprias promessas, o Governo optou, portanto, por manter em Portugal uma força braçal de homens, desenraizados, desintegrados, sem uma família que os agarre a esta terra, que os integre, que os ajude a falar português aprendendo com os filhos o português que eles aprenderiam na escola.
Tudo isto para responder à pressão racista do Chega e às “percepções”? Bendita ingenuidade.
Quanto ao Chega, não haja dúvidas: já está para lá desta conversa toda. Se a receita de Trump é agarrar em imigrantes, algemá-los, prendê-los e deportá-los, com ou sem culpa formada, Ventura e o seu gang não aceitarão menos do que isto. A famosa rusga na Rua do Benformoso foi um bom princípio, agora, é “prendê-los a todos”. Ficar aquém isso, lamento, não apaziguará a fúria da extrema-direita. A agenda de Ventura é como uma baliza que muda de sítio a cada remate — é impossível marcar golo.
Quanto às percepções, uma parece-me cada vez mais fundamentada: com ou sem linhas vermelhas, com ou sem “não é não”, a extrema-direita influencia cada vez mais o PSD, ao ponto de se estar a tornar um partido quase irreconhecível. Uma exposição sobre Sá Carneiro que esteve patente há pouco tempo na Câmara do Porto deixava bem evidente essa metamorfose do partido.