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Comentador CNN

Que se lixem as eleições | Bolas de sabão que aleijam

24 jun, 07:30

Estranha bola de sabão, o Chega. Em vez de ir ao sabor dos elementos, determina para onde vão os outros. Impôs a imigração como primeiro problema do país – e deve ser mesmo o primeiro problema, porque ocupou o primeiro Conselho de Ministros extraordinário do novo Governo

O mundo está perigoso. A maior potência global é dirigida por um lunático semi-analfabeto. Há uma guerra na Europa de desfecho incerto. Há duas guerras no Médio Oriente que podem ter enormes impactos no Velho Continente, ambas promovidas pelo governo de Israel com o apoio da administração norte-americana. Perante isto, a Europa comporta-se como uma galinha sem cabeça: mexe-se, esbraceja, parece ter pulsação, mas não tem vontade própria, nem direção, nem ideias sobre o que fazer (costuma acontecer a quem não tem cabeça, seja galinha, gente, país ou união de países).

O preço do petróleo vai provavelmente disparar nos mercados internacionais. A inflação, que já estava pressionada pelos delírios tarifários de Trump, vai subir. A instabilidade no Médio Oriente vai aumentar as pressões migratórias rumo à Europa – e isso vai alimentar ainda mais o discurso dos partidos racistas e xenófobos. Entretanto, à falta de ideias melhores, os países da NATO – Portugal incluído –vão de gastar mais em armamento, só naquela de acautelar o risco de virem os russos pela UE adentro e de os americanos não mexerem uma palha para proteger os seus aliados. 

Perante este quadro, o Governo reuniu em Conselho de Ministros extraordinário. Bravo! Para analisar medidas que almofadem o impacto da subida dos preços do petróleo? Para preparar o país e as indústrias exportadoras para a chibatada da guerra tarifária? Para preparar políticas que ajudem as famílias a suportar a inflação? Para rever o Orçamento do Estado? Para encontrar formas de financiar o aumento dos gastos militares sem ser apenas reclassificando despesa que já existe? 

Que Conselho de Ministros extraordinário!

Nada disso: o primeiro Conselho de Ministros extraordinário com o novo Governo em plenitude de funções foi para responder a “percepções”. É mesmo extraordinário! O Executivo adotou um conjunto de medidas para dificultar a entrada de imigrantes, quando o país mais carece de mão de obra. Para obstaculizar o reagrupamento familiar dos imigrantes que já cá estão, quando o que estes precisam é de estabilidade e raízes que os ajudem a integrar-se melhor na sociedade onde vivem. E para mudar as regras da Lei da Nacionalidade, que parece ter alguma relação com a “percepção de insegurança relacionada com a imigração” – é difícil perceber o elo entre uma coisa e outra, entre imigrantes que vêm para cá viver e trabalhar, e estrangeiros que obtêm ao fim de alguns anos a nacionalidade portuguesa, mas o Governo certamente há de vir explicar essa correlação misteriosa que, estranhamente, tem escapado aos estudiosos destes fenómenos.

Que tenha dado conta, até hoje apenas André Ventura e a sua seita achavam que a Lei da Nacionalidade era um problema e estava relacionado com esse outro problema que é a “percepção de insegurança relacionada com os imigrantes”, sobretudo se estes tiverem tez mais escura. Por isso Ventura defendia a expulsão dos imigrantes que praticavam crimes graves (para Ventura, crimes graves, no caso dos imigrantes, deve ser de roubo de galinhas para cima), com a pena acessória de perda de nacionalidade nos casos em que esses indivíduos estivessem naturalizados.

Não sei a quantos indivíduos aconteceria a perda de nacionalidade se essa lei já estivesse em vigor – ou seja, se no passado, o mesmo PSD que hoje defende estas medidas não tivesse votado contra elas, ajudando a chumbar as propostas do Chega. Nem sei, com as novas regras, quantos portugueses naturalizados teriam levado nos últimos cinco anos um chuto no traseiro de “volta para a sua terra”, com o passaporte português confiscado. Um? Dois? Dez? Nenhum? 

O triunfo das bolas de sabão

Há de haver nalguma gaveta do ministro Leitão Amaro um estudo, uma simulação, que nos diga de quantos perigosos facínoras estrangeiros nos livraríamos graças a esta lei (e suponho que não contem as entradas mais duras de Pepe sobre os adversários). Não acredito que uma alteração destas, neste contexto específico de “percepções” mais ou menos fantasiosas – e seguramente não demonstradas por nenhum relatório conhecido – possa ser feita só porque sim, porque é esse o ar do tempo, porque é esse o discurso com que o Chega enche diretos televisivos.

Não poupe nos argumentos nem na sua demonstração, Senhor Ministro. Venham daí essas correlações demonstráveis e essas simulações incontestáveis. Porque, se não existirem, tudo não passa de capitulação política à extrema-direita, parecendo, com isso, que esta tinha razões para empolar medos e inventar fantasmas onde só existem bolas de sabão.

Por falar nisso. Ainda na semana passada António Leitão Amaro engrossou tanto a voz, encheu tanto o peito, esticou tanto o dedinho, para dar no Parlamento uma tareia retórica ao Chega. Disse Sexa, valentão, olhos nos olhos com o Ventura: “Os senhores lembram-me, com essa taxa de invenção e mentira, e sobretudo de discurso raivoso, lembram-me bolas de sabão. Eu explico: vê-se, são atrativas, toca-se, rebenta e não há nada.” Temos político!

Vejo, contudo, dois problemas neste soundbite. 

O primeiro é de concordância. O sujeito “bolas de sabão” está no plural, logo, os predicados que se seguem deviam estar também no plural. Não tenho a certeza de que o Senhor Ministro passasse no teste de língua portuguesa a que os candidatos à nacionalidade portuguesa terão de sujeitar-se. Se o examinador for picuinhas como eu, já era. Tal como duvido que boa parte dos “portuguezes” que não querem cá estrangeiros passassem na avaliação de conhecimentos básicos sobre o país, a sua história, usos e costumes. Aliás, boa parte dos “portuguezes” que não querem cá estrangeiros serão os mesmos que não querem aulas de Cidadania nas escolas, pelo que não teriam como aprender coisas básicas sobre as nossas leis, usos e costumes. Em todo o caso, talvez se safem se se demonstrar a existência de casos de violência doméstica (algo muito tradicional no país) e de atentados contra a língua “portugueza” (cada vez mais costumeiros). 

O segundo problema é de coerência. Basta uma consulta rápida ao Google e ficamos a saber que “uma bola de sabão é uma camada fina de água com moléculas de sabão na superfície interna e externa”, com “cor brilhante e iridescente”. Porém, “são instáveis e geralmente estouram rapidamente, seja por contato com objetos ou pela evaporação da água”. Antes de estourar, as bolas de sabão vão para onde o ar as leva. Estranha bola de sabão, o Chega. Em vez de ir ao sabor dos elementos, determina para onde vão os outros elementos.

A capitulação à extrema-direita

Foi o Chega, com o seu discurso brilhante, iridescente e de camada fina, que impôs no debate político a imigração como primeiro problema do país – e deve ser mesmo o primeiro problema, porque ocupou o primeiro Conselho de Ministros extraordinário. Foi o PSD quem se mostrou instável nas suas políticas, planando ao sabor dos elementos, procurando colar-se ao brilho e iridescência do Chega, aprovando agora aquilo que chumbou no passado. 

André Ventura, naturalmente, já cantou vitória. Bem pode. Começa a legislatura com um brinde do Governo. Porque não haja dúvidas: se as alterações à Lei da Nacionalidade passarem no Tribunal Constitucional (um enorme “se”) e estas novidades forem para a frente, nunca os eleitores das “percepções” agradecerão a legislação ao Governo: é e será sempre um triunfo do Chega. 

O Governo entrou em funções capitulando perante a extrema-direita. É o Chega quem impõe a agenda, e é o Chega quem dita a linguagem. Até o primeiro-ministro já escreve sobre medalhados portugueses louvando a “raça lusitana”. Mas, atenção, usa essa saudosa expressão apenas quando elogia portugueses brancos, como Fernando Pimenta e João Almeida. Nas vitórias coletivas em futebol, com portugueses de várias cores e ancestralidades, Montenegro elogia-lhes ou “a garra e a alma” (Europeu de Sub-17), ou “a missão, garra e superação” (Liga das Nações). Mas não a “raça lusitana”. 

Sim, eu sei, foi um acaso. Não tem importância nenhuma. O PM nem deve ter pensado nisso. Saiu-lhe naturalmente. É essa, provavelmente, a maior vitória das bolas de sabão. São mais duras do que parecem, mais resistentes do que julgávamos, e nalguns casos aleijam as pessoas. Sobretudo se forem imigrantes.

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