Um ex-dirigente, ex-deputado, ex-quase-tudo no Chega descobriu agora que André Ventura não é flor que se cheire: um narcisista, um predador, um ser demoníaco. Descobriu tarde. Basta ler o que dizem em on os fundadores e ex-dirigentes do partido citados no livro “Por Dentro do Chega”
Houve um tempo em que Gabriel Mithá Ribeiro foi notícia. Um negro, de ascendência moçambicana, indiana e síria, professor universitário na Universidade Católica e doutorado com uma tese segundo a qual o racismo terminou com o período colonial, não era o típico labrego chegano. Chegava sem um passado de violência, dívidas ao Estado, fraudes, burlas, tráfico de droga, cheques carecas, ligações a gangs e a organizações mais ou menos secretas, com mais ou menos recurso a silícios, sem histórico de golpes a misericórdias ou de militância em claques violentas, sem cadastro nas redes terroristas de extrema-direita do pós-PREC e sem página no Pornhub…
Enfim, Mithá Ribeiro era um alien no Chega, e por isso se destacou. Também por isso Ventura o destacou. Fê-lo cabeça de lista às legislativas, secretário da Mesa da Assembleia, Vice-Presidente do Parlamento quando não conseguiu eleger o ex-MDLP Pacheco de Amorim, e presidente do gabinete de estudos do Chega – e tanto que o Chega precisava (e precisa) de estudos! Como podia o Chega ser racista se até tinha um dirigente negro?, era o argumento típico e previsível, igual ao de todos os racistas que “até têm” um amigo negro e dos homofóbicos que “até têm” um amigo gay (à época, também já lá andava Luc Mombito, mas essa é outra história, que não tem valor político).
A anunciação de Gabriel
Na semana passada, Mithá Ribeiro voltou a ser notícia. Depois de anos de alegre convívio com o submundo que é o Chega, depois de anos de hosanas ao grande líder André Ventura, enviado por nosso senhor para salvar Portugal, Gabriel, com nome de anjo, fez a anunciação: André Ventura não é o salvador da pátria, não é o quarto pastorinho de Fátima, não é sequer um “português de bem”. Não há ali, segundo Mithá Ribeiro, uma qualidade humana ou política que o redima. Cito algumas suas declarações em diversos órgãos de comunicação social:
“[André Ventura é um] predador psicológico.”
“André Ventura não consegue conter o seu demónio vingativo contra quem o critique entreportas.”
“As reformas necessárias [ao Chega] não chegam ao sujeito coletivo por serem sugadas por um único sujeito individual [André Ventura]. Isso tem nome: abuso de poder narcísico.
“[Ventura protagonizou uma] sucessão de evidências de perturbação narcísica da personalidade traduzida no abuso de poder institucional.
“Objetivamente que há ali todos os indícios de uma patologia: “Identifico traços inequívocos de narcisismo na personalidade do presidente André Ventura."
“Se, eventualmente, ele se tornar governante, o problema vai se agravar. Portanto, eu estou a confrontar a sociedade portuguesa com esse problema.”
O ex-dirigente do Chega acrescentou ainda que só vê na experiência portuguesa um político comparável com Ventura: José Sócrates, nem mais nem menos. Ah!, e passados cinco anos, diz o seguinte: “Saio do partido de André Ventura com o sabor amargo da prostituição da raça.” Como dizem os brasileiros, tava na cara. Só não contaram pra você.
Tarde piaste
O mínimo que se pode dizer é que a tardança de Gabriel Mithá Ribeiro em perceber a verdadeira natureza de André Ventura, do Chega, e do seu próprio papel no meio daquela agremiação, não abona a favor da sua inteligência e perspicácia. Ou, igualmente grave, das suas motivações. Parece que a gota de água para o divórcio foi o Governo Sombra anunciado por Ventura perante a geral indiferença do país. Parece que Mithá fazia muita questão de estar no meio daquela galeria de políticos falhados, gestores falidos, professores ignorados e arrivistas em geral.
Num caso ou noutro, neste episódio saem tão mal Ventura como Mithá. Até porque nada do que Mithá Ribeiro agora denuncia é novo.
É verdade que o crescimento do Chega em seis anos é impressionante, e o partido está longe de ter batido no teto. Mas também é verdade (e não menos evidente) que nenhum partido viveu, em tão pouco tempo, tantas purgas, expulsões de militantes, lutas sanguinárias pelo poder, em que Ventura nunca hesitou em manipular, acicatar, incentivar a difamação alheia, com recurso a um poderoso arsenal de perfis falsos nas redes sociais. Quase todos os fundadores do Chega, aqueles que desde os primeiros tempos fizeram o trabalho sujo para que Ventura surgisse reluzente, acabaram por abandonar o partido. Dizendo de Ventura coisas parecidas com as que Mithá Ribeiro diz agora, ou diferentes — e mais graves.
O livro do Miguel Carvalho, “Por Dentro do Chega”, sobre os esgotos em que se alicerça o partido, é um retrato sinistro de um partido que não é um partido, mas uma seita, e de um líder político que não é um líder político, mas uma espécie de guru espiritual que exige aos seus seguidores que só o oiçam a ele, só o vejam a ele, só o bendigam a ele.
Como esquecer as imagens da “aparição” de Ventura no último dia de campanha nas legislativas de maio, com o líder qual Cristo, com pensos em vez de chagas, depois dos ataques de azia que tanto o martirizaram, e as gentes na Praça do Município a chorar, roçando a histeria, como se o Messias tivesse acabado de rolar a pedra do sepulcro para ascender aos céus?
Muitos antigos correligionários de Mithá Ribeiro já tinham percebido do que a casa gasta. Cito algumas passagens, meramente ilustrativas do tom geral dos testemunhos de quem trabalhou diretamente com Ventura ao longo destes anos de Chega:
“Nunca conheci ninguém com o estofo moral tão baixo. E olhe que já combati com mercenários”
“[Ventura] reproduz todos os vícios que critica: o despesismo, a falta de democracia interna, o desinteresse pela resolução dos problemas. (…) É narcisista, só se rodeia de quem o bajula. Pessoas íntegras têm a coluna vertebral demasiado dura para isso.”
“Pregamos para fora o que não fazemos cá dentro. Temos nepotismo, indícios de corrupção, conflitos de interesses, boateira, tudo e mais alguma coisa.”
“Este indivíduo [Ventura] é um pulha, ele só lida com bandidos!”
“O Chega nem ideologia tem. Gosto de genealogia e, um dia destes, ainda vou descobrir que o Ventura tem sangue cigano… Topo um judeu à distância e, no caso dele, até a fisionomia é de cigano.”
“Estigmatizar as pessoas daquela maneira era um absurdo. Uma pessoa com estas ideias é um perigo, e lembro-me de pensar: Se ele é assim agora, como será com mais votos?”
“Aquilo vai-se desmoronar. Vai começar tudo a gamar, vão aparecer escandaleiras. Quando o grupo parlamentar aumentar, vai perceber-se que há um gajo que fala e os outros são morcões. Como ele capou tudo à volta, não há quem saiba falar ou tenha ideias.”
“Aquilo sempre foi um projeto de poder pessoal. (…) Nunca conheci ninguém com o estofo moral tão baixo. E olhe que já combati com mercenários…”
“Ele não tem bagagem cristã para isto tudo. Julga-se crente, mas saiu do seminário e fez a vida que qualquer ateu faria. Afastou-se do meio católico e aconselhei-o a ter cuidado na forma como fazia o discurso [misturando política e religião]. Ele exagera e não é bom.”
“Ajudei a nascer o Chega porque acreditei que era algo que Deus queria que eu fizesse. Entretanto, o André revelou-se um Saul e não um David. É um grande ator.”
“O próprio Ventura contou-me que grava conversas, calculo que para ter ascendente, no futuro, sobre essas pessoas. (…) Quando falarem com ele, levem inibidores de sinal.”
“Conspiraram contra o Nuno [Afonso, fundador e vice-presidente do Chega, saneado no congresso de Évora], mas não aprenderam a lição: quem está à volta do André mais cedo ou mais tarde cai. O único que se vai manter até ao fim é o Luc Mombito.”
“Neste partido usou-se de tudo nas lutas internas. Fizeram gravações clandestinas de assuntos da minha vida privada para me prejudicar. Alguém gravou e passou a outros. Isto é brutal!”
“Somos a maior fraude da história da política portuguesa”
“Como é que vocês acham que o Ventura aguenta este andamento? Muita coca naquela cabeça!”
“O senhor [André Ventura] e a direção nacional patrocinam, promovem e apoiam gentalha, escumalha, gente da pior espécie.”
“Se o partido protege e abriga criminosos, mais não é do que um abrigo de criminosos.”
“Este filho da p***, um dia que seja, que tenha poder absoluto neste país, é uma desgraça. Porque este gajo é um merdas, um traidor, um indivíduo sem carácter. Na tua frente está-se a rir, e estás a virar as costas, e está a negociar com o teu inimigo a maneira de tu caíres, isto revela a besta que está ali!”
“A maioria das pessoas do Chega sempre teve perfis falsos [nas redes sociais].”
“Os ataques a partir de perfis falsos eram o pão-nosso de cada dia.”
“O que fez Ventura? Mentiu, fingiu, enganou e deixou passar mais estes crimes de difamação, atentado ao bom nome, e, sobretudo, inaceitáveis faltas de respeito. Mas como era o ‘seu lado’ a atacar o ‘outro lado’, fechou os olhos.”
“Chamaram-me tudo: vaca, tia de Cascais, mandaram-me pintar as raízes, insinuaram que eu trabalhava numa casa de alterne. Foi baixo. No Chega, há gente muito malformada.”
“Faziam coisas horríveis uns aos outros. Vi no Chega aquilo que era suposto combater fora.”
“O Chega subiu-lhe à cabeça. O André era humilde, porreiro, e de repente tinha hinos, gente de pé a bater palmas, tipo starlet, com seguranças, quase não conseguíamos chegar a ele. (…) Ele acredita em algumas coisas, noutras não. O Chega começa e acaba nele. E em quem está com ele. Não é ditador, mas tem o Dr. Jekyll e o Mr. Hyde dentro dele. E nós aguentámos, pois vivíamos na ilusão de que estava apenas mal aconselhado.”
“Somos a maior fraude da história da política portuguesa. Fazemos cá dentro tudo o que dissemos que íamos combater.”
O seu a seu dono
As frases citadas acima têm autores perfeitamente identificados no livro do Miguel Carvalho. Não lhes ponho aqui o nome para não ser spoiler. Pela mesma razão, a lista não é exaustiva. Quem diz isto, em on, são fundadores, antigos dirigentes nacionais, regionais e locais, mas também os fazedores do milagre do Chega nas redes sociais, onde tudo se torna viral.
Também por isso o livro “Por Dentro do Chega” é bastante longo: tudo está atribuído, circunstanciado, enquadrado. Não há declarações em off. O seu a seu dono, sejam entrevistas ou declarações avulsas dadas ao autor, sejam SMS ou gravações ilegais transcritas para processos internos, afirmações feitas em público, escritas redes sociais ou em grupos de Whatsapp ou Telegram. Quer saber quem disse cada uma das frases acima? Leia o livro. É muito instrutivo e vale cada cêntimo: 20€ por 750 páginas carregadas de informação não é nada.
Se ao menos esta obra tivesse saído há mais tempo, talvez Gabriel Mithá Ribeiro tivesse percebido mais cedo o que se passava à sua volta…