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Comentador CNN

Que se lixem as eleições | 12 reflexões melancólicas pós-autárquicas

15 out, 08:00

Passemos à frente do óbvio: a vitória do PSD, a derrapagem do PS, a míngua do PCP, os olhos maiores do que a barriga de Ventura. Olhemos para pequenos sintomas que nos podem dizer mais do que os números das manchetes

O PSD foi o grande vencedor da noite eleitoral, e Luís Montenegro, Carlos Moedas e Pedro Duarte foram as estrelas da companhia. O PS perdeu com honra, mas perdeu, apesar de algumas vitórias de consolação. O Chega confirmou que é uma sombra de André Ventura. O PCP continua a sua persistente erosão até ao desaparecimento final. Mas não é sobre estas obviedades que tenciono escrever. 

  1. O PSD venceu com maioria absoluta em Espinho. A cidade de Luís Montenegro. A cidade onde está sediada uma das empresas mais famosas – e seguramente a mais misteriosa – do País: a Spinumviva. A empresa tem a mesma morada que o seu fundador e pater familias, uma faustosa moradia de seis andares pela qual muitos espinhenses passam diariamente. Sobre a faturação dessa empresa, está quase tudo por saber. Sobre a construção desse prédio também há muitas interrogações – até sobre quem pagou o respetivo betão. Nada disso perturbou os concidadãos de Montenegro, que votaram alegremente no homem que o primeiro-ministro escolheu a dedo (até contra a opinião do partido local) para ser presidente de câmara. Esqueçam o caso Spinumviva: ou o PGR decide rapidamente abrir um inquérito a sério sobre o assunto, e começam a saber-se detalhes muito comprometedores, ou não passa de ruído e de distração para jornalistas, comentadores e oposição. Os eleitores, manifestamente, não querem saber disso.

  2. O PS esteve à bica de ganhar a câmara de Braga, com essa vetusta figura que dá pelo apropriado nome de António Braga. Não conseguiu. Por 200 e poucos votos, ganhou o PSD – e, isto, apesar de uma cisão dos votos do PSD, entre a lista oficial e uma candidatura independente que foi a terceira mais votada. Em quarto lugar ficou outro candidato cujo resultado era olhado com expectativa e tinha potencial para dividir ainda mais o eleitorado de centro-direita: Rui Rocha, ex-líder nacional da IL. Dito isto, convém lembrar que o novo presidente da Câmara de Braga é João Rodrigues. Para quem não se lembre, trata-se do filho de Joaquim Barros Rodrigues. Para quem não se lembre, Joaquim Barros Rodrigues é o dono de uma gasolineira (e outros negócios) que se tornou uma pequena celebridade à boleia do caso Spinumviva. Joaquim Barros Rodrigues era um dos melhores clientes da empresa de Luís Montenegro, que, por coincidência, era um dos grandes apoiantes de João Rodrigues na concelhia local do PSD e na respetiva candidatura à câmara. Se esta teia de lealdades, pagamentos e favores não incomodou os bracarenses, há de incomodar quem? Conclusão (repetida): esqueçam o caso Spinumviva. Até prova em contrário, não mexe com a política.

  3. O PSD venceu com maioria absoluta a Câmara de Baião. Nem precisa saber onde fica Baião (é ao lado de Marco de Canaveses e Amarante) para perceber o valor simbólico deste resultado. Baião é onde José Luís Carneiro se fez político, primeiro como vereador da oposição e, depois, como presidente de câmara durante doze anos. Há 20 anos que o PS não perdia Baião. Calhou de perder quando o mais famoso filho da terra é líder do PS. Há coincidências tramadas.

  4. A longa sombra de Pedro Nuno Santos sobre o PS persistiu até domingo passado – foram dele as escolhas autárquicas que os socialistas apresentaram a votos. As poucas que conquistaram câmaras alheias, as muitas que deixaram fugir o poder para a concorrência e as que se aguentaram. No saldo final, o PS, que tinha 34 municípios de vantagem sobre o PSD, acabou por ficar quatro câmaras atrás, e por isso perdeu a presidência da Associação Portuguesa de Municípios, a melhor forma de aferir, sem espinhas, quem vence e quem perde estas eleições. Oxalá, depois destes resultados, o PS se livre de vez da pedronunite que o afetou durante vários anos. E os jornalistas também deixem de se excitar de cada vez que Pedro Nuno escreve um tweet. É um looser. Sigam em frente.

  5. José Luís Carneiro herdou escolhas municipais já feitas, e foi com essas que fez campanha. Não partilhou estados de alma sobre erros crassos como Alexandra Leitão, em Lisboa, ou a insistência em Manuel Pizarro, no Porto. É bem conhecido o desamor mútuo entre Carneiro e Pizarro, o que não impediu o líder socialista de dar ao litro por esse e outros candidatos. O erro de casting chamado Alexandra Leitão, esse, topava-se à légua, e só a tragédia do Elevador da Glória permitiu disfarçar problemas óbvios dessa candidatura. Com Duarte Cordeiro fora de jogo por causa da infame Operação Influencer, o PS ficou sem o seu candidato óbvio a Lisboa. Mas podia ter uma boa alternativa: porque outra razão Marta Temido se haveria de candidatar à concelhia de Lisboa em 2023, se não fosse a pensar nas eleições autárquicas? Estou convicto de que Temido facilmente venceria contra Moedas. Seria capaz de cerzir uma coligação de esquerda (afinal, foi ministra da geringonça), seria capaz de inspirar mais confiança perante a tragédia do Elevador da Glória (não foi ela ministra da Saúde em plena pandemia?), e de mostrar mais empatia e proximidade com os cidadãos. Mas Pedro Nuno riscou-a da corrida oferecendo-lhe o Parlamento Europeu. Teve em Lisboa quem que quis.

  6. A ausência de responsabilidade nas escolhas autárquicas, algumas conquistas de capitais de distrito, a recuperação do lugar de segundo maior partido e a reposição da bipolarização PSD/PS serão suficientes para José Luís Carneiro se manter na liderança do PS? Achei sempre que as autárquicas seriam decisivas para Carneiro ter aquilo de que o seu plano e o seu perfil precisam, para se afirmar como alternativa a Montenegro: tempo. Este resultado dá-lhe um balão de oxigénio, mas não lhe dá uma vida extra. Depois das presidenciais (que serão outro desastre para o PS), os socialistas terão de votar outra vez em diretas e organizar um congresso. Carneiro será recandidato. Só tem a vitória garantida se voltar a ser candidato único. Mas esse é o pior cenário: a vitória por cálculo cínico dos seus adversários internos ausentes. Eles existem e não fazem outra coisa se não esses cálculos cínicos. Podem preferir que Carneiro aguente o barco mais um mandato. Isto de ser líder da oposição cansa e desgasta. Carneiro não é lebre, é tartaruga. Mas não depende só de si para chegar ao seu destino.

  7. O PCP continuou a encolher, conforme as escrituras. Paulo Raimundo até foi ao ponto de reconhecer um “resultado em geral negativo”. Nem o mais mediático candidato do PCP, João Ferreira, aquele que as vozes mais insuspeitas elogiaram pelo conhecimento dos dossiês de Lisboa, a preparação, a apresentação de alternativas, salvou a honra do convento. Ferreira perdeu um vereador, deixou-se ultrapassar pelo candidato do Chega, encolheu em resultado percentual. Só derrotas. No domingo, Ferreira podia ter celebrado a sua eleição como vice-presidente da Câmara de Lisboa, se tivesse aceitado a proposta de coligação feita por Alexandra Leitão. Preferiu ficar orgulhosamente só. Com isso ganhou o quê, exatamente?

  8. Muitas das vitórias do PSD foram em coligação. Os sociais-democratas fizeram coligações de todas as cores e feitios, com todos os partidos à sua direita, médios, pequenos ou ínfimos, menos o Chega. Só ganharam com isso. No domingo ouvi comentários sobre o erro do PS “frentista”, ou seja, o PS liderando coligações de esquerda. Ou seja, o frentismo do PSD não mereceu nenhum reparo, mas o do PS é um erro. Porquê exatamente? Ouvi até a delirante teoria de que o PS perdeu em Lisboa porque Mortágua esteve na flotilha. Algum eleitor indeciso deixaria de votar no PS por essa razão, se o PS tivesse uma cabeça de lista mobilizadora e um programa realmente alternativo, focado e exequível? É preciso um grande esforço de imaginação para supor tal efeito. Tendo passado a noite eleitoral no estúdio da CNN, ouvi até Miguel Relvas decretar, julgo que a propósito de Lisboa, o enterro definitivo da “geringonça”. Já nem me lembrava dessa palavra. Curiosamente, se tivesse existido esse frentismo, essa geringonça, talvez Moedas não tivesse ganho. Porque não há “geringonça” sem o PCP, e em Lisboa o PCP é especialmente valioso. E no Porto, se Manuel Pizarro tivesse procurado apoios à esquerda, talvez com uma geringonça tivesse chegado lá. O problema não são as coligações (como o PSD demonstrou amplamente), mas quem as lidera e em nome de que programa. O resto vem atrás.

  9. O Chega. Sim, no domingo perdeu. Perdeu, tendo em conta as fasquias colocadas por André Ventura, que quis cavalgar os resultados das legislativas e transpor esse apoio para as autárquicas. O quase milhão e meio de votos de Ventura em maio caiu agora para pouco mais de meio milhão. A conclusão é óbvia: o Chega continua a ser um partido de um homem só, mesmo quando Ventura está em cartazes de norte a sul e espalha pelas câmaras as caras mais conhecidas da sua bancada parlamentar, algumas com lugar cativo nos ecrãs de televisão. Pedro Frazão, por exemplo, que estava comigo no estúdio da CNN, teve 8,5% em Oeiras, que compara com 13,5% nas legislativas. Na melhor das hipóteses, é um mini-andrézito. São todos. 

  10. Mas se se fizer a comparação certa, e não a que Ventura quis fazer, o Chega é um vencedor. Basta comparar autárquicas com autárquicas. Passou de 156 mil votos há quatro anos para 654 mil agora. De zero câmaras para três. De 18 eleitos locais para 137. Em Lisboa, onde tinha um candidato inapresentável, o Chega teve 10%. Se teve este resultado com este candidato, será seguro supor que deste patamar o Chega não desce na capital. Habituem-se.

  11. Para quem veja no crescimento local do Chega, ainda que moderado, mais um sintoma de tempos sinistros, com a afirmação de candidatos alimentados a discurso de ódio, divisão, racismo e fake news, as coisas não podiam ter começado pior: o primeiro presidente de câmara eleito pelo Chega, em São Vicente, na Madeira, foi logo notícia por ter agredido um delegado da mesa de voto, que era do PSD. Isto nem inventado.

  12. Termino estas reflexões melancólicas com uma nota positiva (dentro do possível). Há 137 eleitos do Chega. Três deles são presidentes da câmara. Veremos do que são capazes. O que fazem. Até agora, o Chega podia dizer que só os outros eram corruptos, e isto e aquilo. Era fácil: o Chega não tinha nem pingo de poder. Quem não tem poder não é corrupto, nem nepotista, nem abusa do poder que não tem. Veremos o que acontece a partir de agora no pequeno laboratório chegano. Não apenas onde houve vitórias, mas também onde possa haver vereadores com pelouros. Ver-se-á melhor de que massa humana é feito o partido que quer limpar Portugal. Vão ser tempos interessantes.

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