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Comentador CNN

Que Se Lixem As Eleições | Isto não é o Bangladesh

29 out, 10:00
Chega Bangladesh

Ventura faz o tirocínio para Belém suspirando por “três Salazares” e garantindo que “isto não é o Bangladesh”. Pois não. O Bangladesh ainda há pouco derrubou o Salazar que tinha e está a restaurar a sua democracia. E o crescimento económico. Com dados surpreendentes. É um dos “Next 11”, os próximos países a dar um grande salto económico

“Isto não é o Bangladesh”, diz o candidato presidencial Ventura, carinhosamente conhecido como o “Andrézito” nalguns círculos. O mesmo candidato presidencial que decidiu apresentar-se ao eleitorado chorando a falta que nos faz, não um, mas “três Salazares”. 

André “Três Salazares” Ventura lançou dois cartazes de pré-campanha eleitoral, com o único objetivo de chocar e ser falado. Podemos ignorá-lo, como fizeram alguns media norte-americanos quando um milionário chalupa chamado Donald Trump decidiu, também, candidatar-se a presidente (no caso, dos EUA), dizendo coisas apenas porque eram chocantes. Nesse caso, a estratégia de o ignorar, manifestamente, não deu grande resultado. Houve outra reação, oposta, que foi dar-lhe tempo de antena sem lhe rebater os argumentos – parece hoje claro que também não é por aí que se combate um populista demagogo. Correndo o risco de cair na esparrela, e fazer a André “Três Salazares” Ventura o favor de lhe dar palco, falo-ei, mas não sem lhe responder aos argumentos.

Vou concentrar-me no cartaz sobre o Bangladesh. O outro, suspeito, não é mais do que um erro de impressão. Onde se lê “Os ciganos têm de cumprir a lei”, creio que a intenção era escrever “Os cheganos têm de cumprir a lei”. São tantos os dirigentes, deputados, candidatos a isto e aquilo pelo Chega que têm cadastro criminal, que faz sentido exigir que os representantes cheganos, à semelhança de todos os cidadãos, tenham de cumprir a lei. Nada, portanto, que uma reimpressão do cartaz não resolva. 

(Supor que o cartaz seja mesmo sobre os ciganos, outra vez arroz!, seria tão repetitivo, de uma tal falta de imaginação, e tão racista – e Ventura jura todos os dias que não é racista, até tem amigos que… –, que não passaria de uma caricatura requentada e fora do prazo de validade.)

1 Salazar por cada 1% dos imigrantes

André “Três Salazares” Ventura tem uma estranha obsessão com aquilo a que chama o “Indostão”. Talvez por ter percebido que pode dizer o que quiser sobre gente com traços fisionómicos distintos e hábitos culturais muito diferentes dos nossos – e em boa medida desconhecidos – que ninguém se dará ao trabalho de o contrariar. Podia, por exemplo, apontar a sua xenofobia contra outras comunidades, como os brasileiros ou os oriundos de outros países lusófonos, cuja presença em Portugal é muito mais numerosa e cujos pedidos de nacionalidade multiplicam várias vezes os dos indostânicos… Mas o Chega tem interesses junto de muitos brasileiros (sobretudo os ricos, que o financiam, e os evangélicos, que lhe engrossam as fileiras); e a cartada racista contra os oriundos dos PALOP talvez fizesse ricochete e nunca seria tão eficaz como o “Indostão”. 

Tudo no discurso de Ventura tem um cálculo de risco e de ganhos políticos, até o hábito de viralizar nas redes sociais citações que os seus críticos nunca pronunciaram e naturalmente irão desmentir (aconteceu com Gouveia e Melo, mas também aconteceu comigo, por causa deste texto, todo dedicado às cúpulas do Chega, mas do qual o partido martelou uma frase sobre os “apoiantes” do partido).

Os “indostânicos” são um risco baixo e um ganho calculado. Porque não falam a língua, porque estão menos integrados na nossa sociedade (o facto de os imigrantes desses países em Portugal serem homens, na sua esmagadora maioria, em resultado dos entraves ao reagrupamento familiar, dificulta a integração e a aculturação) e porque têm menos capacidade de defesa. Também porque não podem retaliar contra Ventura através do voto, pois são pouquíssimos os que alcançaram nacionalidade portuguesa, com os direitos políticos que isso traz. 

Em 2023, último ano de que há dados oficiais, os cidadãos originários da Índia, mais Nepal, mais Paquistão, mais Bangladesh, que conseguiram nacionalidade portuguesa representaram, todos juntos, 6% dos passaportes portugueses atribuídos a estrangeiros. Repito: seis-por-cento, no total destes quatro países. Segundo o mais recente relatório da AIMA, publicado este mês, a 31 de dezembro de 2024 viviam em Portugal 1.543.697 cidadãos estrangeiros. Destes, 55 mil são bengalis (ou seja, do “terrível” Bangladesh). Isto é, em mais de um milhão e meio de imigrantes, 3,5% são do Bangladesh. Dos três Salazares pelos quais Ventura suspira, dá um ditador por cada 1,1666666666% dos imigrantes que cá estão. 

Falemos, então do Bagladesh

É um facto: isto não é o Bangladesh. O Bangladesh é um país pobre – muito pobre –, e Portugal, como sabemos, é rico. Vá lá, remediado. O Bangladesh é tão pobre que muitos bengalis saem do país com uma mão à frente e outra atrás, muitas vezes para irem viver ilegalmente noutras paragens, em sociedades que desconhecem, cuja língua ignoram, aceitando fazer trabalhos e receber ordenados que os desses países não aceitam. Tal como nós fazíamos no tempo do tão saudoso (para Ventura) Professor Salazar. Apesar de não sermos um país rico, mas apenas remediado, e apesar de boa parte da nossa população continuar a sair do país à procura de vida melhor lá fora (sobretudo os mais novos), somos remediados o suficiente para 55 mil bengalis quererem viver e trabalhar cá. Pudera!

O PIB nominal do Bangladesh (dados de 2024) é de 461 mil milhões de dólares, o que compara com o PIB de Portugal, no mesmo ano, de 309 mil milhões de dólares (289 mil milhões de euros). Visto assim, parece que ficamos mal no retrato… Na lista do FMI ordenando todos os países do mundo por PIB nominal, o Bangladesh ocupa o lugar 34; Portugal é o 50º. Mas não há razões de preocupação. Afinal, esta lista compara países com dimensões e populações incomparáveis. O Bangladesh é um dos dez países mais populosos do mundo, com cerca de 170 milhões de almas. Portugal, tem à volta de 11 milhões (valor que algo deve aos imigrantes e aos seus filhos). 

Como o PIB nominal pode ser enganador, nada melhor do que olhar para os dois países através de um índice que harmoniza realidades distintas, permitindo comparar o incomparável: a paridade de poder de compra (PPC), que leva em conta a riqueza do país, o rendimento das famílias e a dimensão da população. Aqui sim, vemos que isto não é o Bangladesh. Os dados do FMI, deste ano, colocam o Bangladesh em 23º lugar no ranking de todos os países do mundo em PPC; na mesma lista, Portugal aparece em 52º lugar. Quem prefira, pode optar pela lista do Banco Mundial, relativa a 2023: Bangladesh em 23º lugar; Portugal em… 52º. Está visto: isto não é o Bangladesh.

Desigualdade, corrupção, violência política

A questão, claro, é óbvia: se eles estão assim tão bem, porque é que só no ano passado o Bangladesh teve um saldo migratório negativo na ordem de meio milhão de habitantes? A resposta é que eles não estão assim tão bem. A desigualdade é tremenda, a corrupção é endémica e a violência política tem sido um fator de grande perturbação nos últimos anos. O elevador social quase não funciona, desde logo porque o investimento público em educação é mínimo – 2% do PIB (por comparação, Portugal gasta cerca de 4,5%) – e a taxa de analfabetismo ainda é muito elevada, nos 21%. Ainda assim, o Bangladesh tem hoje uma percentagem de analfabetos inferior à que Portugal tinha em 1970, no ano em que faleceu o Professor Salazar: nesse tempo, um em cada quatro portugueses (25,7%) não sabia ler nem escrever (64% dos quais, mulheres). A democracia permitiu que o analfabetismo caísse para cerca de 3%.

Seis por cento da população do Bangladesh vive abaixo do limiar de sobrevivência, com menos de três dólares por dia. Em Portugal, é 0,4% da população, diz o Banco Mundial. Boa parte desta diferença explica-se pelo robusto sistema de Segurança Social de que Portugal dispõe, e que não existia no tempo do saudoso Professor Salazar. O Índice de Gini, que mede a distribuição de rendimento e a sua maior ou menor desigualdade, estava nos 30,9 em 2022 no Bangladesh (100 é o valor que representa a desigualdade máxima). Portugal, felizmente, não é o Bangladesh: em 2023, último ano com valor oficial, o Índice de Gini foi… 31,9. Hum…

No Índice de Capital Humano, aí sim, estamos muito melhor. Este valor, calculado pelo Banco Mundial, estima em que medida cada país aproveita o capital humano dos seus cidadãos, e quanto se perde, por exemplo, por falhas na educação e saúde. Numa escala de 0 a 1, em que 1 significa total aproveitamento do potencial da população, o Bangladesh tem um ICH de 0,46. O de Portugal é 0,77. 

As saudades de Ventura em relação ao Professor Salazar não se justificam: o país da ditadura era o país da pobreza, do analfabetismo, da emigração, da mortalidade infantil, da baixa esperança de vida, do ensino superior como privilégio dos ricos, da caridade em vez de apoios sociais, do esmagamento de todo e qualquer capital humano fora do círculo dos privilegiados… Está tudo bem resumido neste documento da Pordata.

Três Salazares? O Bangladesh expulsou o que tinha

O discurso do Chega enche a boca com a “corrupção”, e a “percepção de corrupção” em Portugal, medida pela organização Transparency International, é relativamente alta: no ranking dos melhores exemplos (liderado pela Dinamarca), aparecemos só em 34º lugar, mais ou menos a meio da tabela dos países da UE. O Bangladesh, esse, está lá no fundo, no lugar 149, numa lista de 180. 

Em que lugar estaríamos com os Três Salazares desejados por André Ventura? Sendo o Estado Novo um sistema de favor e opacidade, seguramente não estaríamos melhor do que hoje. Aliás, todos os piores países no ranking de corrupção da Transparency International são ditaduras, confirmando o que disse o primeiro-ministro no debate do Orçamento: “Ditadura é Corrupção”.

Aliás, vale a pena terminar esta demonstração de que “Isto não é o Bangladesh” com notícias sobre a realidade política daquele país. Também os bengalis acreditaram que aquilo só ia lá com, vá lá, um Salazar. Encontraram-no em Sheikh Hasina, filha daquele que é considerado o “Pai da Pátria”, Sheikh Mujib, primeiro Presidente do país. 

Apesar da sua história milenar, o Bangladesh foi integrado no Império Britânico e só é um país independente desde 1971, quando conseguiu a secessão em relação ao Paquistão, ao fim de um ano de guerra aberta. Em 1973 o partido de Mujib venceu as primeiras eleições parlamentares, mas os conflitos sociais, a pobreza galopante e a corrupção generalizada levaram-no a suspender a democracia, impondo um regime de partido único acusado de graves violações dos direitos humanos. Esta parte da história acaba com um golpe militar em que Mujib e boa parte da sua família foram assassinados. Mas não a sua filha mais velha, Sheikh Hasina. 

Avançamos para 1991. Quando a ditadura militar terminou, Hasina concorreu ao cargo de primeira-ministra, mas perdeu. O seu partido organizou manifestações populares de tal ordem que Hasina acabou por conseguir chegar ao poder em 1996, depois de anos de instabilidade e um governo interino. A filha do “Pai da Pátria” liderou o governo durante cinco anos. Em 2008 voltou a ser eleita, e governou até ser derrubada no ano passado por gigantescas manifestações populares, encabeçadas por estudantes, que protestavam contra a deriva autoritária do regime. Hasina, que começou como uma campeã da democracia, tornou-se uma ditadora de facto. Uma espécie de Viktor Orban asiática.

Para “limpar o país”, opositores desapareceram para sempre ou surgiram mortos de forma misteriosa; a comunicação social foi “posta na ordem”; o sistema judicial foi politicamente manipulado. O quarto e quinto mandatos como primeira-ministra foram obtidos em eleições violentas e consideradas fraudulentas. A clique dirigente enriqueceu, mas o bengali comum vivia na miséria ou emigrava. Até que as manifestações do ano passado derrubaram a Sra Salazar lá do sítio.

O país tem sido gerido por um governo de união nacional, tecnocrático, dirigido pelo Nobel da Economia Muhammad Yunus, o professor que teorizou sobre o impacto do microcrédito no desenvolvimento económico e social em contextos de pobreza. Apesar das feridas abertas, Yunus conseguiu há duas semanas que a maioria dos partidos apoiasse um documento que reforma o sistema político do país e aponta o caminho para o regresso a uma democracia funcional. A chamada Carta Nacional de Julho (referência ao mês em que os manifestantes depuseram o regime de Hasina) propõe uma profunda revisão da Constituição e será sujeita a referendo. 

Entre saudosos da ditadora derrubada, radicais islâmicos que sonham com um regime teocrático, e manifestantes de 2024 impacientes por passos mais ousados, o Bangladesh de Yunus vai fazendo caminho. É um dos países dos chamados Próximos Onze. Os Next 11 (N11) foram destacados pelo banco de investimento Goldman Sachs pelo seu potencial para alcançar as maiores economias do mundo, à semelhança dos BRIC. Sim, se garantir estabilidade política, se assegurar a democracia, e se continuar a atrair investimento estrangeiro (nomeadamente no setor têxtil), o Bangladesh é um dos “próximos onze”. 

Isto não é o Bangladesh.

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