Catargate não é caso único no Parlamento Europeu: as instituições europeias "estão vulneráveis". Porquê?

18 dez 2022, 21:00
Entrada do edifício do Parlamento Europeu em Bruxelas. Foto: Kenzo Tribouillard/AFP via Getty Images

A antiga eurodeputada Ana Gomes argumenta que "o sistema vive na corrupção" e defende a criação de mecanismos de controlo. Transparency International alerta: há mais de 40 milhões de euros vindos das instituições europeias que não se sabe onde são gastos

A grega Eva Kaili, ex-vice-presidente do Parlamento Europeu, foi destituida do cargo na terça-feira, após a sua detenção por suspeitas de envolvimento no "Catargate". Ainda em prisão preventiva, quebrou o silêncio esta quarta-feira, declarando-se inocente e alegando ter sido traída pelos colegas da instituição. Kaili tinha sido acusada, juntamente com outras três pessoas, pelo crime de participação em organização criminosa, branqueamento de capital e corrupção.

O namorado e também arguido, Francesco Giorgi, confessou o seu envolvimento no caso de corrupção e apelou à libertação da parceira, para cuidar da filha de ambos. A polícia belga já efetuou mais de 20 buscas durante a investigação e as autoridades gregas também abriram um inquérito.

O Parlamento Europeu comprometeu-se a endurecer as regras de conduta e vigilância dos eurodeputados e prometeu proibir todos os grupos informais de amizade com países. 

“Não é um problema isolado, é um problema sistémico”, afirma Vítor Teixeira, senior policy officer na Transparency International EU. Sediada em Berlim, a organização sem fins lucrativos mapeia o combate à corrupção e às atividades criminosas a ela associadas desde 2008. Nas últimas eleições europeias, em 2019, a ONG terá exigido à Comissão Europeia a criação de uma plataforma independente, capaz de analisar todas as questões de ética, transparência e responsabilidade nas instituições. "Já passaram três anos, e nada foi feito", alega o especialista.

Esta segunda-feira, Ursula Von der Leyen voltou a falar sobre o combate à corrupção nas instituições europeias durante uma conferência de imprensa, em Bruxelas. A presidente da Comissão Europeia comentou o mais recente escândalo, admitindo que as alegações contra Eva Kaili “são muito graves” e "da maior preocupação". "Está em causa a confiança das pessoas nas nossas instituições. E esta confiança nas nossas instituições exige elevados padrões de independência e integridade”, declarou, afirmando que já propôs em março deste ano "a criação de um órgão de ética independente que abranja todas as instituições da União Europeia". 

Até ao momento, apenas uma equipa de cinco eurodeputados, o Comité Consultivo para a Conduta dos Membros, tem vindo tratar estes casos. São nomeados pela presidente do Parlamento Europeu, e cada um dos elementos administra o grupo durante seis meses, de forma rotativa. 

No final, “é o líder do Parlamento, neste caso Roberta Metsola, quem tem que decidir sozinho se há realmente uma quebra de ética”. Durante os cinco anos da passada legislatura, “houve muitos processos que nem sequer foram vistos, e os 24 que foram não sofreram qualquer punição”.

Onde é que o Parlamento falhou?

Em primeiro lugar, argumenta Vítor Teixeira, "a punição por quebrar as regras de ética são extremamente lentas", tendo em conta que os deputados responsáveis por estes processos "não têm capacidade de investigação, não têm recursos, não podem passar sanções e só podem fazer recomendações". O próprio secretariado, do qual a vice-presidente Eva Kaili também fazia parte, terá vindo a impedir avanços nos últimos anos. Embora o Parlamento Europeu tenha poder suficiente para resolver todos os seus problemas até à criação de um órgão de investigação independente, "o sistema, simplesmente, não é funcional", critica. "É essencial que a Comissão Europeia pare de empatar e traga uma proposta para cima da mesa".

As regras aplicadas a países que não sejam membros da União Europeia, no âmbito das suas interações com eurodeputados, também devem ser revistas. “Não é considerado lobbying, mas sim serviço diplomático. Não devia ser”, argumenta. 

O especialista lembra que Eva Kaili não é a única responsável pelo escândalo atual, “ainda que já seja bastante grave”, mas também o são vários assistentes parlamentares, um antigo eurodeputado, supostas ONG’s e administradores do Parlamento Europeu. Em suma, “um monte de gente numa enorme variedade de posições”. Acima do aspeto de “lobbying ilegal”, considera esta situação “corrupção pura”, uma vez que se trata de pessoas alegadamente subornadas e acusadas de lavagem de dinheiro. “Não estamos a falar apenas da questão ética, mas de crimes”, sublinha, alertando para o enfraquecimento do controlo ético interno, a nível europeu.

Além disso, há também pouco incentivo a queixas por parte de whistleblowers. Por exemplo, um assistente de um eurodeputado que pretenda fazer uma denúncia, acabará sempre por ser prejudicado. As queixas anónimas são proibidas e, considerando o facto de o seu contrato estar diretamente ligado à pessoa acusada, corre o risco de perder o emprego. "Se o deputado for declarado inocente, o assistente que o denunciou pode perder o contrato, e se for declarado culpado, pode ser expulso do Parlamento e o assistente também tem que sair", explica Vítor Teixeira. 

Após o escândalo ter sido noticiado, Roberta Metsola escreveu no Twitter que o Parlamento Europeu se mantinha “firme contra a corrupção” e assegurou que iria cooperar “totalmente com as autoridades policiais e jurídicas competentes”. “Vamos ver se as palavras passam às ações ou não”, desafia o especialista em ética e transparência, que não ficou indiferente ao comunicado.

Mais de 40 milhões em parte incerta

Para além do salário base (mais de oito mil euros brutos), cada eurodeputado beneficia de um subsídio fixo de 4.778 euros por mês, que se destina a cobrir despesas provenientes de atividades parlamentares: arrendamento, gestão do gabinete, telefone, computadores, subscrições online e organização de conferências e exposições. Um subsídio que é reduzido para metade se os deputados não apresentarem justificações, ou se não comparecerem a metade das sessões plenárias durante um ano parlamentar. 

"Se o dinheiro não for gasto, tem que ser devolvido, mas isso nunca acontece", revela Vítor Teixeira. "São mais de 40 milhões de euros. Não se sabe se são gastos, como é que são gastos, há zero transparência."

O representante da Transparency International não considera que todos os eurodeputados sejam corruptos mas não descarta o risco de corrupção perpetuada por alguns indivíduos, colocando em causa a integridade da instituição europeia. "Claramente existem pessoas que veem as instituições europeias como extremamente influentes, e realmente são, mas estão vulneráveis", remata.

Idiotas, corruptos ou gente ingénua?

Sabe-se que um dos envolvidos naquele que é considerado por investigadores e jornalistas como o caso "mais chocante" dos últimos tempos, em Bruxelas, foi o presidente da ONG de defesa de direitos humanos Fight Impunity, Pier Antonio Panzeri. O antigo eurodeputado foi acusado de receber subornos do Catar para intervir politicamente a favor do país anfitrião do Mundial 2022, mas também os terá recebido de Marrocos. Um cartão de crédito com 100 mil euros - gastos em férias de Natal - terá sido enviado para o arguido e para a sua mulher, Maria Colleoni, também ela detida. 

"No fundo, Panzeri usava os direitos humanos para violar os direitos humanos", acusa a ex-deputada europeia Ana Gomes, descrevendo o italiano como "o cérebro da operação" e "perverso". Já em relação a Eva Kaili, acredita que esta tenha sido um instrumento nas mãos do líder da Figtht Impunity e do seu mentorando Francesco Giorgio, também namorado da ex-vice-presidente. A verdade é que Kaili terá sido "apanhada em flagrante" com 150 mil euros no apartamento, em Bruxelas, embora garanta não ter tido conhecimento de tal quantia. 

"O problema é o Parlamento Europeu admitir a integração de idiotas, corruptos ou gente ingénua", atira Ana Gomes. A diplomata manifesta preocupação com as repercussões que estas práticas corruptas possam ter, não só no Parlamento Europeu e na Comissão Europeia, mas também na política portuguesa. "40% da legislação que é feita em Portugal e noutros países europeus é feita com o Parlamento Europeu. Um deputado que ponha uma vírgula pode mudar tudo", alerta. "E, infelizmente, há muita gente lóbista que procura capturar deputados facilmente corrompidos".

Já Ana Gomes defende a ideia de que "o sistema vive na corrupção" e propõe mecanismos de controlo, nomeadamente o registo obrigatório de todos os contactos com representantes de Estado, e de outros políticos que tenham defendido países lóbistas. Ainda assim, e à semelhança da Transparency International, não dispensa a criação de um organismo independente de investigação.

Aliás, a própria foi uma das fundadoras do grupo ITCO - Integridade, Transparência, Corrupção e Crime Organizado, que nasceu após o escândalo "Cash for amendments". Funciona no seio do Parlamento Europeu, com base voluntária, e apresenta iniciativas para posterior aprovação institucional. "Fazíamos o registo de tudo, para dar o exemplo e mostrar que era possível", conta.

Não foi só o Catar

Apesar da sua dimensão e mediatismo, o "Catargate" não é caso único no histórico de escândalos que abalaram a instituição europeia em Estrasburgo. Basta recuar alguns anos na sua história.

  • Ashley Mote

Membro do Parlamento Europeu entre 2004 e 2009, representante do Partido da Independência do Reino Unido (UKIP), Ashley Mote foi expulso da sua família política após uma condenação por fraude de benefícios, em 2007. O Departamento de Trabalho e Pensões britânico denunciou quase 80 mil euros em apoios à renda e benefícios habitacionais durante seis anos, sem que o deputado tivesse declarado os seus ganhos mensais de mais de quatro mil euros. Esteve nove meses detido e foi descrito pelo juiz como “um homem verdadeiramente desonesto”. De acordo com a BBC, declarou mais de 100 mil euros em despesas falsas, alegando que seriam para financiar os seus advogados. 

Mote manteve o seu lugar no Parlamento Europeu, desta vez como independente, durante e após o período em que esteve preso. Em 2015 foi novamente condenado a mais cinco anos, por despesas indevidas de quase 500 mil euros. As acusações estavam relacionadas com pedidos de pagamentos a pessoas que assegurava serem denunciantes. É que enquanto isso acontecia, integrava o grupo "Plataforma para a Transparência" e levava a cabo uma campanha contra a corrupção e o uso indevido de dinheiro público na própria instituição europeia. 

  • "Cash for amendments" (Dinheiro em troca de emendas, numa tradução literal)

Dois jornalistas do The Sunday Times disfarçados de lóbistas abordaram cerca de 60 deputados do Parlamento Europeu, oferecendo 100 mil euros anuais em troca da apresentação de emendas em determinadas comissões da instituição europeia. O artigo publicado pelo jornal britânico em 2011 visava quatro deputados, acusando-os de tentarem influenciar a legislação da União Europeia através de subornos. Eram o romeno Adrian Severin, o austríaco Ernst Strasses, o espanhol Pablo Zalba Bidegain e o esloveno Zoran Thaler.  

O Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF) abriu uma investigação e Thaler foi condenado a dois anos e meio de prisão. Já Severin – da mesma aliança política de Eva Kaili – foi sentenciado a quatro anos, em 2016, mas libertado em fevereiro de 2018. Stasser demitiu-se do Parlamento Europeu após o escândalo e foi condenado pelos tribunais austríacos, e Zalba saiu ileso da situação, uma vez que terá rejeitado o dinheiro.

O caso ficou conhecido por "Cash for amendments" - dinheiro em troca de emendas - ou "Cash for laws" - dinheiro em troca de leis.

  • Sylvie Goulard

A deputada francesa que esteve no Parlamento Europeu entre 2009 e 2017, foi suspeita de ter pago com fundos europeus o emprego fictício de um dos seus assistentes parlamentares, aquando de uma investigação a irregularidades nas condições de contração do partido ao qual pertencia, o MoDem. 

Ainda sob indagação, deixou o Parlamento após o convite para integrar o governo de Emmanuel Macron e Édouard Philippe como ministra da Defesa. Um mês depois, citada no caso dos assistentes parlamentares do MoDem, interrompeu o seu trabalho no governo francês "para poder demonstrar livremente boa fé". Foi indiciada em 2019, e uma vez que não conseguiu provar que o funcionário tinha exercido funções entre 2014 e 2015, concordou reembolsar 45 mil euros aos serviços financeiros do Parlamento. O processo foi encerrado após a devolução desta quantia, mas a investigação voltou a ser aberta, desta vez pelo Organismo Europeu Antifraude (OLAF). 

Goulard tornou-se vice-governadora do Banco de França em 2018 e foi proposta, por Macron, para ocupar um lugar na Comissão Europeia no ano seguinte. O Parlamento Europeu recusou devido às suspeitas levantadas, que ainda aguardavam uma conclusão.

  • Marine Le Pen

A deputada francesa de extrema-direita terá desviado fundos da União Europeia, entre 2009 e 2017, para pagar a uma assistente parlamentar, que trabalhava na sede da União Nacional em Paris, e não no Parlamento Europeu. O tribunal concluiu que Le Pen não foi capaz de provar a atividade de Catherine Griset e, em 2018, a instituição em Estrasburgo exigiu o reembolso de quase 300 mil euros ao seu partido. A candidata às últimas presidenciais francesas recusou e anunciou que pretendia recorrer do acórdão de Justiça "em breve". Não houve desenvolvimentos até à data. 

 

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