A teimosia e a resiliência que sempre o definiram podem, agora, virar-se contra ele se não for capaz de sair de cena. Se, em vez de dizer adeus, fizer como o "Senhor do Adeus" que acenava aos carros e às pessoas no Saldanha: impecavelmente vestido, de sorriso estampado, e alheado da realidade
A prisão preventiva de Santos Cerdán, braço direito de Pedro Sánchez e número três do PSOE até há menos de um mês, é o fim da linha para o primeiro-ministro espanhol, ou deveria ser. Segundo o juiz do Supremo Tribunal de Espanha que ontem enviou Santos Cerdán para Soto del Real (a mesma prisão onde esteve Luis Bárcenas, antigo tesoureiro do PP), o ex-secretário de organização do partido socialista espanhol é a pedra angular de uma organização criminosa — uma estrutura corrupta bem organizada, com raízes fundas e ramificações no coração do Estado, mais concretamente no Ministério dos Transportes quando o titular era Jose Luis Ábalos, que também foi secretário de organização do PSOE (de 2017 a 2021), antes de ceder o lugar a Santos Cerdán (2021-2025).
Ou seja: estão a ser investigados por pertencer a uma organização criminosa os dois principais colaboradores de Sánchez ao longo de uma década, dois homens "de confiança" que tiveram as mais altas funções no PSOE e foram decisivos na carreira do chefe do Governo espanhol — em episódios como as primárias do partido que o elegeram como secretário-geral, em 2017, ou a negociação da amnistia com os partidos independentistas catalães que garantiram a sua investidura em 2023, apesar de não ser o líder mais votado nas últimas eleições gerais.
Para já, o único partido dos muitos que apoiaram a investidura que pede a demissão de Sánchez é o Podemos, entretanto, cindido do Sumar e, portanto, da coligação governamental. Mas o auto do juiz do Supremo, Leopoldo Puente, divulgado ontem alerta para outros implicados na "trama de las mordidas". As mordidas ou trincas são as luvas ou comissões ilegais que terão sido obtidas por Cerdán, ao longo de anos, de empresas agraciadas com contratos públicos. Cerdán seria o vértice superior do "triângulo tóxico" completado, na base, com Ábalos e o antigo assessor deste, Koldo García.
Sánchez e o seu novo círculo íntimo (cada vez mais reduzido e no qual destaca María Jesús Montero, vice-presidente primeira e ministra das Finanças) tentam afastar a corrupção do PSOE limitando-a ao tal " triângulo tóxico" Cerdán-Ábalos-García. Montero chegou ao ponto de dizer que Cerdán "não tem nada a ver" com o PSOE porque foi expulso há duas semanas, mas convém lembrar que a mesma Montero pôs em causa a presunção de inocência no caso Dani Alves (ex-futebolista brasileiro absolvido num caso de violação) e depois teve de pedir desculpas e recuar quando todas as associações de juízes e procuradores do país vizinho emitiram um comunicado que pedia evitar "comentários que possam esboroar a confiança" no sistema judicial espanhol e pôr em risco a sua independência.
Os comentários do círculo íntimo de Sánchez, e do próprio Sánchez, estão sob suspeita. Mais: estão sob o escrutínio de toda a oposição, de todas as instâncias judiciais e até de alguns dos mais fiéis apoiantes do primeiro-ministro espanhol. Uns e outros alegam que a situação de Sánchez é insustentável e suspeitam que os casos agora destapados sejam apenas a ponte do icebergue — porque as mordidas foram muitas, durante um período muito extenso e o lógico é concluir que terão chegado a muitas outras mãos, ou bocas.
Numa coluna publicada hoje mesmo no El País, o escritor Javier Cercas pede a demissão de Sánchez "sem subterfúgios". E mostra o caminho a seguir resumindo as palavras de António Costa na sequência da célebre nota da Procuradoria-Geral da República, no outono de 2024: "A dignidade da função de primeiro-ministro [...] é absolutamente incompatível com o facto de alguém, que é o primeiro-ministro, estar sob suspeição da sua integridade, boa conduta ou ser objeto de um processo-crime".
Cercas critica a argumentação de Sánchez, que diz que não se demite porque entregar o Governo à "direita e extrema-direita seria uma tremenda irresponsabilidade". O autor de Anatomia de um instante e Soldados de Salamina desmonta a justificação sanchista com dois argumentos: por um lado, as sondagens mostram que os escândalos de corrupção no PSOE e o imobilismo do primeiro-ministro socialista estão a fazer subir os partidos de direita e extrema-direita (ou seja, o PP e o Vox). Por outro, porque "a extrema-direita participa já no Governo; quem não souber isso é porque não quer saber: o Juntos pela Catalunha é oriundo de um partido de direita que o procés [o processo independentista na Catalunha] transformou num partido de extrema-direita (e ter feito desse partido um pilar básico do Governo foi o erro original da legislatura, o que a tornou quase impraticável desde o primeiro dia)".
Antigos dirigentes do PSOE também renegam de Sánchez, com destaque para Felipe González — o mais longevo primeiro-ministro da democracia espanhola, que diz que não vai votar no PSOE caso apresente o mesmo candidato. Noutro artigo de opinião recente, o antigo presidente de Aragão e ex-senador socialista Javier Lambán também dispara contra a atual direção do partido, pois "para governar com uma exígua minoria", além de "wokizarse" (segundo Lambán, isto significa privilegiar a luta de identidades e a defesa das minorias em detrimento da defesa das classes trabalhadores e dos direitos universais), "teve de se submeter às exigências de 'sócios' alheios à sua razão de ser e inimigos da Constituição".
Tal como Cercas, Lambán conclui que, nestas circunstâncias e com estes atores, o PSOE é um perigo para a democracia. Sugere por isso voltar aos princípios fundacionais da social-democracia em Espanha, alicerçados precisamente por González em 1979 com a renúncia ao marxismo. Ou isso, ou enfrentar outro tipo de socialismo "igual a tantos que ao longo da história acabaram fazendo o oposto do que prometiam, em detrimento sempre da democracia e, em última instância, do bem-estar dos cidadãos".
Javier Cercas, romancista célebre pelas obras de não-ficção e um dos intelectuais espanhóis mais respeitados, aposta noutra receita, mais realista: em vez de eleições antecipadas, "bastaria com que [Sánchez] deixasse o seu lugar a outro dirigente socialista, alguém capaz de obter a confiança do Parlamento, dar um abanão ao Governo e ao PSOE, tirá-los do mau caminho em que a corrupção e o abuso de poder os afundaram e permitir-lhes chegar às eleições de 2027 nas melhores condições possíveis".
Eu receio que nada disto esteja prestes a acontecer: nem o PSOE vai reverter a crise da socialdemocracia, envelhecida e cercada pela extrema-direita em toda a Europa e fora dela (Trump, Milei, Bukele e os aprendizes de bruxo que aí vêm), nem Sánchez parece ter a menor intenção de se demitir, pelo menos para já.
Além de se posicionar contra os abusos e as exigências de Trump (foi a voz discordante na cimeira da NATO na semana passada, a única que se opôs ao aumento da despesa com defesa até 5% do PIB), também é um referente na denúncia dos massacres autorizados por Netanyahu em Gaza. A primeira viagem do seu terceiro mandato foi, precisamente, a Israel, onde condenou os "ataques terroristas do Hamás" de 7 de outubro de 2023 e pediu um "cessar-fogo humanitário" na sequência da invasão de Gaza, vinte dias depois dos atentados.
Meses mais tarde, em maio de 2024, a Espanha, a Noruega e a Irlanda (e, posteriormente, também a Eslovénia) juntaram-se aos mais de 140 países que reconhecem o Estado palestiniano e reclamam a solução dos dois Estados como forma de alcançar a paz.
Mas a paz não vai chegar a curto prazo ao Médio-Oriente, e também não se vislumbra tão cedo para o Parlamento espanhol. O atrevimento de Sánchez face a Trump, ou a sua firmeza perante os crimes de guerra de Israel, ainda são motivo de orgulho para muitos espanhóis — e não só. Nunca um chefe do governo espanhol teve um perfil internacional tão marcante, nem muito menos um à vontade tão grande nas cimeiras onde se decidem os destinos do mundo (até agora, o normal era nem sequer falarem outra língua para além de espanhol, caso de Aznar, Zapatero, Rajoy...).
Sánchez fala bem inglês e desenvolve-se ainda melhor em qualquer cenário, mas tem a mulher, o irmão e o procurador-geral no alvo de inquéritos judiciais em curso. Sem orçamento aprovado e cada vez mais isolado, o autor de Manual de resistência (2019) e Terra firme (2023) está a ser cada vez mais pressionado para dizer adeus. A teimosia e a resiliência que sempre o definiram podem, agora, virar-se contra ele se não for capaz de sair de cena. Se, em vez de dizer adeus, fizer como o Senhor do Adeus que acenava aos carros e às pessoas no Saldanha: impecavelmente vestido, de sorriso estampado, e alheado da realidade.