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Psicólogo e Presidente da Delegação Regional do Sul da Ordem dos Psicólogos Portugueses

O Psicólogo Responde: Porque é que tenho tanta dificuldade em "largar o passado"?

2 nov, 10:00
Olhar para o passado (DR)

O Psicólogo Responde é uma rubrica sobre saúde mental para ler todas as semanas. Tem comentários ou sugestões? Escreva para opsicologoresponde@cnnportugal.pt

Função da memória na construção da Identidade

Recordar o passado tem várias funções importantes para o ser humano. Por um lado, a memória autobiográfica permite a construção da identidade, ao integrar experiências e narrativas pessoais. Assim, recordar ajuda a compreender quem somos, as nossas escolhas e valores. Além disso, a recordação tem um papel adaptativo: ao lembrar de eventos passados, especialmente de experiências desafiadoras ou traumáticas, o cérebro pode aprender com elas, de forma a evitar perigos futuros e melhorar o processo de tomada de decisões. A memória também está na base da aprendizagem, permitindo aumentar a eficiência da resolução de problemas. No plano emocional, o ato de recordar pode ter a função de processamento emocional, manter vínculos afetivos e dar significado às experiências.

Desafios Emocionais

Contudo, a função da memória nem sempre contribui para a resolução positiva das situações. Quando há excesso de ruminação ou fixação em memórias negativas (dificuldade libertar-se do passado), pode contribuir para o sofrimento e dificultar a obtenção do tão desejado equilíbrio emocional. A dificuldade em largar o passado é uma experiência comum e pode estar relacionada a vários fatores psicológicos. O passado pode permanecer presente na mente porque envolve emoções não resolvidas, traumas ou situações que geram sofrimento, como perdas, situações de vergonha, perceção de decisões mal tomadas ou frustrações. O cérebro tende a manter essas memórias ativas como forma de tentar entender, processar e evitar que algo similar volte a acontecer. Além disso, questões como apego a certas construções do discurso individuais, medo do desconhecido e da mudança, e a sensação de identidade ligada a estas experiências, dificultam o desapego. Do ponto de vista psicológico, pode haver uma resistência interna em confrontar-se com essas emoções, o que causa ruminação (um processo de pensar repetitivamente sobre temas negativos) o que mantém a pessoa presa ao que já foi. Algumas abordagens psicológicas ajudam a identificar e reformular pensamentos e emoções ligadas ao passado, promovendo uma reestruturação mental que tem como objetivo ancorar a vivência da pessoa mais no presente. Técnicas como mindfulness e aceitação também são importantes para aprender a conviver com o passado sem

que ele defina, ou que tenha menos impacto no presente. Superar essa dificuldade é um processo gradual, que requer auto compreensão, apoio emocional e, muitas vezes, ajuda profissional para cultivar a capacidade de seguir em frente.

Estratégias psicológicas que podem ajudar a gerir memórias difíceis:

· Aceitação e reconhecimento: aceder a estas recordações e aceitá-las como naturalmente difíceis, como parte da vida, sem tentar apagá-las, reconhecendo a sua influência nas emoções e comportamentos atuais.

· Reavaliação cognitiva: tentar olhar para estas recordações de uma perspetiva diferente, tentando entender o que se pode aprender com elas, em vez de o foco ser a dor ou culpa.

· Atenção plena (mindfulness): o esforço individual de estar presente no momento, assumindo a perspetiva de observar os sentimentos sem se deixar levar por eles, o que pode ajudar a separar o que é recordação do que é realmente o presente.

· Autoconhecimento e aceitação: tentar explorar as emoções que estão subjacentes às memórias e aprender a lidar com o que elas significam.

· Atividades que estimulem o pensamento: desenvolver atividades que implicam a utilização da nossa atenção e o nosso envolvimento, como ler, resolver problemas e aprender, porque podem ajudar a estimular as nossas competências cognitivas e a manter o equilíbrio emocional.

· Técnicas de relaxamento e hábitos saudáveis: práticas como respiração controlada, meditação, seguir princípios de regularização do padrão de sono e atividade física podem reduzir a ansiedade e melhorar a capacidade de lidar com memórias difíceis.

Largar o Passado com Saúde Mental

Deixar o passado no seu devido tempo e lugar, não significa esquecer o que foi vivido, mas aprender a conviver com as lembranças de forma mais leve e saudável. Cada momento vivido, experiência, mesmo as que parecem mais indesejadas, pode ser fonte de crescimento e autoconhecimento. Ao exercer espontaneamente a aceitação, procurar a construção de novas perspetivas e cuidar da saúde mental torna-se possível construir um presente com menos interferência negativa do passado. Se o processo parecer desafiador, lembre-se de que pedir ajuda é um sinal de coragem, e que o apoio profissional pode ser fundamental para transformar o passado em aprendizagem significativa e abrir espaço para novas possibilidades. O caminho para iniciar este processo começa com pequenos passos de autocuidado e esperança.

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