Folhetim de Voto: Voto no PSD é voto no PS, que é voto no PSD, que é voto no Chega, que é voto no PS, que é…

27 jan 2022, 07:48
António Costa desce Rua de Santa Catarina no Porto (Lusa/Miguel A. Lopes)

No derradeiros apelos ao voto, os partidos grandes apontam os efeitos perversos do voto nos pequenos, e os pequenos retribuem na mesma moeda. Afinal, o Chega favorece o PS ou o PSD? E como é que o PS beneficia o PSD, e vice-versa? Eles explicam e o jornalista de política Filipe Santos Costa ajuda a perceber estes votos às três tabelas, na sua análise diária à campanha. Faltam 3 dias para as eleições

Um voto num partido é um voto nesse partido. Uma rosa é uma rosa é uma rosa, como escreveu Gertrude Stein. Certo? As coisas são o que são. Verdade? Não na política portuguesa. Nesta campanha eleitoral, temos sido avisados de que um voto no PSD pode ser, afinal, um voto PS. Que um voto no PS pode dar força ao PSD. E um voto no Chega é, no fim de contas, um empurrão para o PS. Mas um voto no Chega também pode reforçar o PSD. E um voto no PAN é um voto no PS. Ou no PSD. Ou em ambos. Confuso? Sim. Mas é isto que nos andam a dizer os líderes partidários. 

 

Voto às três tabelas. Com o final da campanha a aproximar-se, os partidos grandes tentam demonstrar os efeitos perversos do voto nos partidos pequenos, e estes retribuem na mesma moeda. Sem maioria absoluta que se veja, e sem clareza total da parte dos dois principais partidos, um voto no PS pode dar força a comunistas e bloquistas ou a sociais-democratas, avisam uns. Um voto no PSD pode catapultar uma alternativa de direita ou um arranjinho de bloco central, alertam outros. Assim, como um voto às três tabelas. 

Na segunda-feira à noite, Manuela Ferreira Leite e Bernardino Soares comentavam, aqui na CNN Portugal, o facto político do dia: a mudança de discurso de António Costa, quando enterrou o pedido de maioria absoluta e apostou na disponibilidade para “conversar com todos os partidos, menos com o Chega”. Ferreira Leite jurou que a declaração de Costa tinha uma agenda escondida: “Não tenho dúvida que se ganhar as eleições vai tentar uma nova maioria com o PCP e com o BE.” Na resposta, Bernardino Soares viu o oposto: “A intenção dele talvez não seja essa que a Dra. Manuela Ferreira Leite aqui anuncia. (...) Eu acho que ele está a pensar, e talvez até já tenha tacitamente combinado isso com o PSD, ter a viabilização do PSD, está a pensar negociar com o PSD.” Nesta altura do campeonato, não há partido que não alerte para o potencial desvio do legítimo voto de cada eleitor - votamos num, mas reforçamos outro. Vamos por partes. 

 

O voto no PSD dá força ao Chega. Segundo António Costa, votar no PSD é abrir as portas do poder ao Chega. Segundo Costa, uma maioria liderada por Rio ficará sempre na dependência do Chega, e este PSD não dá garantias de que não acabará a negociar com a extrema-direita, como fez nos Açores. Conforme me pareceu evidente logo na altura - e então defendi - o caso dos Açores é o melhor argumento para a colagem do PSD à extrema-direita. O PSD não se limitou a receber o voto favorável do Chega, negociou-o e assinou um acordo com o partido de Ventura. Rio disse ontem que esse foi um acordo regional, com o qual se limitou a estar “concordante”, e que o Chega apenas exigiu em troca “quatro pontos absolutamente inócuos”. Como bem demonstrou Angela Merkel quando teve de tomar uma decisão semelhante perante uma eventual aproximação regional da sua CDU à extrema-direita alemã, não há nada de “inócuo” em negociar com a extrema-direita. Pode aceitar-se ou recusar-se, e isso tem consequências - Merkel decidiu recusar. Com isso travou o passo à extrema-direita alemã. Talvez no domingo se perceba o erro colossal que o PSD cometeu nos Açores, com a benção de Rio. 

 

O voto no Chega favorece o PS. Em resposta ao secretário-geral socialista, Rui Rio rejeitou a colagem ao Chega (já lá voltaremos) e avisou que a relação de simbiose existe, não entre PSD e Chega, mas entre o Chega e o PS. Não o disse assim, mas passou a ideia de que votar no Chega é, afinal, reforçar os socialistas: “Quantos mais votos forem para o Chega, mais facilmente António Costa fica como primeiro-ministro”, constatou Rio. E sim, é verdade, se os votos do Chega vierem do PSD - contra isso, compete a Rio fazer uma campanha competente. Mas os eleitores do Chega também podem vir de descontentes de vários partidos, e de abstencionistas, aquela fatia de eleitorado que Rio jurou que seria capaz de mobilizar mas não tem demonstrado que o esteja a conseguir. Costa declara-se como o “principal inimigo” do Chega? Rio, que nunca lutou por esses pergaminhos, acha que isso “não faz sentido” e “tem até um toque de hipocrisia”. 

 

Votar PSD é votar Costa. “Uma grande falta de vergonha na cara”, respondeu André Ventura, depois de Rio dizer que um voto no Chega facilita a vitória do PS e ter tentado demonstrar proximidades entre esses dois partidos. Pelo contrário, garante Ventura. “Um voto no PSD é um voto em António Costa”, acusa o líder da extrema-direita, ressuscitando a teoria de que o objetivo de Rio não é mais do que ser vice-primeiro-ministro de um governo do socialista. Ventura, aliás, já apelidou Rio de “mordomo de António Costa” e “traidor” da direita. 

 

Votar PSD é votar PS+D. Eis um ponto em que Chega, Iniciativa Liberal e CDS estão de acordo: se não forem eles a lutar pela honra de direita, Rio cairá alegremente nos braços de António Costa. João Cotrim Figueiredo voltou ontem a essa tese, segundo a qual um voto no PSD acaba por ser um voto numa espécie de PS. “Sem pinga de dúvida que um governo PSD sem a IL seria igual ao do PS porque há, de facto, um PS e um PS…D. O ‘D’ só existe verdadeiramente se houver uma IL por perto para lhe dar coragem e energia”, afirmou Cotrim. A energia, como já se sabe, é o comprimido de Viagra que o líder da IL traz no bolso.

 

Nem que seja o voto mais pequeno. O discurso de Francisco Rodrigues dos Santos sobre o PSD é parecido. Mas ontem, dia em que celebrou dois anos à frente do CDS, Chicão parecia ter outras preocupações. Desde logo, fazer “prova de vida” do partido. A expressão é sua, e prometeu que no domingo “dará uma extraordinária prova de vida em urnas”. As coisas mais importantes primeiro, até porque estar vivo é o contrário de estar morto. Confiando nisso, Rodrigues dos Santos já anunciou a sua recandidatura à liderança do CDS. Se as sondagens se confirmarem, e se a prova de vida não for assim tão extraordinária, até é possível que mais ninguém tenha interesse em fazer respiração boca a boca ao CDS. Talvez só a extrema unção.

 

Ponto da situação. Do ponto de vista dos líderes da direita, o voto em qualquer partido de direita que não o seu próprio partido, acaba sempre por beneficiar a esquerda em geral e o PS em particular. Por estranho que pareça, nestes bailaricos à direita, diz-se que no fim o PS ganha sempre. Nem se percebe porque razão andou o PS preocupado com as sondagens. Já visto da esquerda, o plano inclina ao contrário, e as portas abrem-se sempre para o PSD. Ou, pelo menos, as janelas.

 

Voto no PS abre a porta à direita. Jerónimo de Sousa voltou ontem à campanha, demonstrando que “não está acabado”, conforme constatou um seu camarada, e que “está vivo”, segundo a proclamação de outro. Para surpresa geral, também aconteceram outras coisas espantosas desde que o secretário-geral comunista se afastou da caravana para ser submetido a uma intervenção cirúrgica: Costa já não reclama uma maioria absoluta, já não se recusa a falar com a esquerda que não é “confiável”, já está disponível para dialogar com (quase) todos. 

Jerónimo leu nestas novidades boas e más notícias. As boas: Costa “caiu um pouco na realidade”. As más: “Diz que está disponível para dialogar com quase todos. É uma resposta que disfarça mal a vontade de se encostar ao PSD a seguir às eleições. Essa aparente ambiguidade do PS é tudo menos inocente”, alertou o líder comunista, que vê nas picardias entre Costa e Rio apenas e só “encenados confrontos”. “Prepara-se para um governo à Guterres. Governar lei a lei com o PSD é abrir a porta à política de direita. Não queremos que a direita entre nem pela porta nem pela janela”. Estais avisados: votar PS pode ser deixar entrar a direita pela janela. Ou até pela porta.

 

Voto no PS abre diálogo com PSD? Catarina Martins tem sido acusada aqui e ali, pelas gentes que encontra na rua, de ter provocado uma crise desnecessária e precipitado umas eleições de alto risco que podem dar uma vitória à direita. Quase não há dia sem que uma reportagem relate um diálogo desse tipo. A proximidade entre os dois lados nas sondagens agudizou essa perceção e carregou a pressão sobre a líder bloquista. Mas nos últimos dias aliviou. Porque a tracking poll da CNN voltou a inclinar-se para uma vantagem da esquerda (vantagem que Catarina já dá por garantida, quando está muito longe disso), e porque Costa voltou a disponibilizar-se para diálogos logo depois da líder bloquista o ter desafiado para uma cimeira a dois no dia após as eleições. O timing não podia ter sido mais feliz. Agora, é Catarina quem pressiona Costa para que clarifique que entendimentos admite fazer. “O PS não tem clareza, portanto será nas urnas, com o voto do povo, que haverá essa clareza”. “Está por saber se esse diálogo [do PS] será com PSD ou BE”, diz Catarina, sendo certo que boa parte da campanha do BE tem sido para apresentar PS e PSD como gémeos separados à nascença. No fundo, o mesmo que diz a IL sobre o centrão. Terá o BE o Viagra que fará o PS inclinar à esquerda?

 

Votar no PS e receber um Rio. Em risco de ser esmagado pelo voto útil à esquerda, Rui Tavares também entrou nos avisos sobre votos nuns que elegem outros. “Muita gente irá votar [PS] a tentar evitar uma vitória de Rui Rio e acabará a ter Rui Rio no Governo, ou a apoiar o Governo, ou de qualquer forma os dois maiores partidos a governarem em conjunto, o que é indesejável para o nosso país. Nós não precisamos dos dois maiores partidos, com as suas redes de interesses cruzados, com as suas opacidades, a aplicar os fundos do PRR”, alertou o fundador do Livre. “Votar no PS, como votar no PAN, é não saber se vão acabar a apoiar a direita ou não.”

 

PAN com todos. Pelo menos na parte sobre o PAN a frase de Rui Tavares não tem sombra de exagero. O partido de Inês Sousa Real admite mesmo viabilizar um governo socialista ou social-democrata. Talvez por isso é a única que não entra nestes avisos de votos que podem trazer gato por lebre. O PAN tanto está a favor do gato como da lebre. 

 

Não chega de Chega. Volto ao Chega e à centralidade que retomou nesta campanha. Houve um tempo em que o partido de André Ventura era o elefante no meio da sala da pré-campanha eleitoral. Lembra-se? Foi na fase em que Ventura escaqueirava os debates todos, e conseguiu que Rui Rio passasse o frente-a-frente entre ambos a comentar o “programa” (leva aspas porque é uma força de expressão) do Chega, admitindo certas modalidades “mitigadas” de prisão perpétua, concordando que é preciso acabar com a “subsídiodependência” das prestações sociais e anuindo a outras bandeiras do partido mais à direita. 

A atitude de Rio não caiu do céu aos trambolhões. Já havia o precedente dos Açores. Mas havia mais. Ao longo do tempo, Rio já considerou que o Chega não é de extrema-direita, e já se disponibilizou a falar com o Chega se este se “moderar”. Nesta campanha já admitiu negociar com o Chega, desde que isso não vá ao ponto de lhe dar ministros num futuro governo; e já garantiu que não negociará coisa nenhuma. E já explicou propostas do Chega para demonstrar que não são assim tão radicais. A principal queixa de Rio deve ser em relação ao seu próprio ziguezaguear nesta matéria. E à sua circunstância - é garantido que não haverá uma maioria de direita sem o apoio de André Ventura.

São estas ambiguidades que permitem ao PS cavalgar este tema. Mas, se o cavalga, é também porque foi o PS que voltou a puxar o Chega para o centro do debate eleitoral. Não é um acaso. Acontece quando o partido de Ventura começava a empalidecer, e coincide com a reorientação do guião de campanha do PS, agora com o mantra “falamos com todos menos com o Chega”. Enquanto PS e PSD atiram com o Chega à cara um do outro, Ventura agradece a publicidade gratuita.

 

Crossfire. Ontem à noite houve um Crossfire na CNN Portugal entre o socialista Augusto Santos Silva e o social-democrata David Justino que dá pistas muito interessantes sobre os dois fantasmas que assombram esta campanha: o Chega, de que tanto fala o PS, e o bloco central, de que tanto fala a restante esquerda. 

 

“Não traçamos linhas vermelhas”. Sobre o relacionamento futuro do PSD com o Chega, fica esta declaração de David Justino: “Não traçamos linhas vermelhas.” Explico: Justino reafirmou que, em caso de vitória do PSD, não haverá ministros do Chega, mas admitiu que no Parlamento este partido terá a influência e o poder que lhe derem os eleitores. Transcrevo o essencial do diálogo:

ASS: (...) O que está a prejudicar Rui Rio é incapacidade de retirar o Chega da equação.

DJ: Quem põe ou retira o Chega da equação é o povo português. Não é o dr. Rui Rio. São os eleitores. 

ASS: É esse o ponto que é muito perigoso. 

DJ: Não é perigoso. Estou a ser realista e pragmático, porque nós não traçamos linhas vermelhas…

ASS: Acho que fazem mal. (...)

DJ: Eu não posso ignorar que o Chega é uma força política representada no Parlamento.

ASS: Com o PS o Chega não é parte da solução política.

DJ: O Chega não faz parte de uma equação governamental para nós.

ASS: Tens é que tirar o adjetivo governamental, e dizer o Chega não faz parte de uma solução. 

 

“Acordo de cavalheiros”. “Retirar o Chega da equação” foi o pré-requisito colocado por Santos Silva para que se concretize uma outra possibilidade: um “acordo de cavalheiros” entre os dois maiores partidos, se as circunstâncias pós-eleitorais a isso obrigarem. Bloco central, portanto? Não. Mas sim... Mas não... 

Santos Silva defendeu que o PS, “não ganhando com maioria absoluta, tem de ter compromissos da parte dos restantes partidos que permitam formar um governo que seja estável e tenha um horizonte de 4 anos”. Se tal não acontecer, admite um “acordo de cavalheiros entre os dois partidos maiores, no sentido de um facilitar a vida ao que formar governo”. Não é um bloco central, no sentido de uma coligação de Governo PS-PSD. Até porque “é útil e saudável, se o PS formar governo, que o PSD lidere a oposição (eu não quero o Chega a liderar a oposição) e se o PSD formar governo o PS lidere a oposição.” Mas… “Vamos ver se isso é possível. Se for possível, é saudável.” 

Se não for possível, venha o entendimento do centrão. Registo outra frase de Santos Silva, entre muitas adversativas: “No limite podia ser necessária uma solução de bloco central, ninguém a pode afastar.”

Justino concordou com o essencial. “Tem de haver sentido de responsabilidade entre os dois grandes partidos”. Deve haver “maior sentido de compromisso, sem deixar que esse compromisso elimine aquilo que é fazer oposição.” 

Se houver um entendimento ao centro, começou a ser cozinhado ontem à noite, em direto e ao vivo na CNN Portugal. Santos Silva e Justino, que começaram a tratar-se por você, até se deixaram de fitas e acabaram a tratar-se por tu. 

Será que um voto no PS pode, afinal, beneficiar o PSD? E vice-versa? E o voto no Chega favorece alguém para além do próprio? Gertrude Stein, se fosse poeta portuguesa e se chamasse Gertrudes Pedra, escreveria, afinal, que uma rosa não é uma rosa não é uma rosa?

 

Full house. Esta quinta-feira vai ser dia cheio de sondagens. Para além da atualização da tracking poll diária da CNN Portugal/ TVI, haverá sondagem na RTP e na SIC.

 

Frase do dia. "António Costa sonhou com maioria absoluta. Eu, por exemplo, sonho com ganhar o Euromilhões. Mas o que é que a maioria absoluta tem a ver com o Euromilhões? É fácil: ambos prometem criar excêntricos todos os dias"

Joana Mortágua

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