Folhetim de voto: A maioria absoluta explicada por quem a conseguiu

2 fev 2022, 06:09

Luís Paixão Martins, o homem por detrás da campanha socialista, explicou a estratégia, as correções de tiro e os segredos da maioria absoluta, que não o surpreendeu. A opinião de Filipe Santos Costa, que ouviu e reteve a principal lição: “nunca houve empate nenhum” nas sondagens, mas PS e PSD agiram como se houvesse. Só que um reagiu melhor do que o outro

Incompreensão. “António Costa conquistou uma maioria absoluta sem mérito. Para além de a ter pedido e a de ter renegado a seguir, o primeiro-ministro não fez nada para que ela acontecesse. Caiu-lhe do céu, inesperadamente.” Arranca assim o editorial de hoje do Público, assinado por Amílcar Correia. São três frases notáveis. Nenhuma por boas razões. A incapacidade de compreender por vezes leva à desistência de compreender, e ao conforto de simplismos que apenas mascaram essa incompreensão, mas nada explicam. No limite, a ideia de que a maioria absoluta não teve mérito, caiu do céu e não resulta de nada que António Costa ou o PS tenham feito é apenas outra forma de repetir a já célebre “análise” da vice-presidente do PSD Isabel Meireles, segundo a qual no domingo “o que falhou foram os portugueses”. É uma hipótese. Não é a minha.

 

Sem medo de corrigir. António Costa e o PS estiveram longe de fazer uma campanha imaculada. Por vezes, não se via outra coisa que não desorientação. Escrevi aqui sobre a forma errática como Costa pediu maioria absoluta e depois se deixou disso, garantindo que os portugueses não queriam uma maioria absoluta (que afinal lhe deram); assinalei o erro que foi o seu momento cavaquista, na conferência de imprensa após o debate contra Rui Rio, em registo “deixem-nos trabalhar” que contrariava o perfil de Costa e décadas de demonização das maiorias absolutas por parte do PS. Mas também escrevi aqui sobre a necessidade de ler os sinais e corrigir esses tiros. E foi esse um dos maiores méritos da campanha de Costa: a agilidade perante os revezes, a capacidade de corrigir os tiros falhados, a sabedoria de aproveitar os erros alheios e a solidez de manter o foco perante alterações de circunstâncias. 

A melhor manobra de campanha do PS foi aquela que mais foi criticada pelos jornalistas e analistas (incluindo por mim): a decisão de, a poucos dias das eleições, mudar de estratégia, deixar de falar em maioria absoluta, trocar o chip “cavaquista” pelo chip da humildade e da disponibilidade para falar com todos, após toda uma primeira fase de campanha a zurzir em todos os potenciais parceiros de conversação. 

Quando essa reviravolta se consumou, escrevi no Folhetim de Voto de 25 de janeiro: “Costa perdeu em coerência o que ganhou em pragmatismo. Optou por não persistir no erro. A conversa da maioria absoluta estava a afugentar eleitores. Deu ao líder socialista traços de arrogância cavaquista, ao mesmo tempo que o fez queimar todas as pontes de diálogo com potenciais parceiros no caso de não alcançar esse objetivo.” Essa correção do discurso de campanha foi atempada e providencial. Não foi acaso, nem demérito, nem caiu dos céus. O demérito foi de quem, pelo contrário, não soube ler a realidade e adaptar-se às circunstâncias. 

 

LPM. Ontem à noite, a CNN Portugal teve em antena o homem que dirigiu nos bastidores a campanha socialista - Luís Paixão Martins, um profissional de comunicação política com muitos anos de experiência e bastantes vitórias no currículo. Ponto por ponto, explicou aquilo que, durante a campanha, nem sempre foi claro. Das sondagens às mudanças de estratégia (ou de “semântica”, na sua semântica), passando pela necessidade de fazer o trabalho de casa e entender o tempo comunicacional em que vivemos. Vale a pena ouvi-lo para perceber que isso de acasos não existe. E que mesmo a sorte, como se sabe, dá muito trabalho.

 

Sondagens. Falharam? Não. Mas sim. É complicado. Segundo Paixão Martins, acertaram numa parte e falharam noutra. O estratega de comunicação demonstrou-o com dois exemplos concretos de 20 de janeiro. Nesse dia, a sondagem da Católica para o Público indicava que as intenções de voto no PS estavam a cair - foi o dia em que tanto a sondagem do Público como a tracking poll da CNN deram pela primeira vez uma situação de empate técnico entre PS e PSD, facto que caiu como uma bomba na campanha e mudou tudo. Ora, no mesmo dia, o PS recebeu outra sondagem, encomendada à empresa GFK. Os números brutos dessa sondagem davam ao PS o mesmo que a sondagem da Católica: 29%. A questão é que a Católica fez a distribuição de indecisos de forma que a projeção de resultados para o PS indicou perda de terreno por parte dos socialistas. Perante os mesmos dados brutos, o PS fez outra extrapolação de indecisos, que não indicava uma queda das intenções de voto. Conclusão: pelas contas do PS, a maioria absoluta continuava a ser possível; pelas contas da Católica, os dois maiores partidos estavam em empate técnico. É todo um mundo de diferença.

 

Probabilidades. A probabilidade de uma maioria absoluta por parte do PS, segundo Paixão Martins, foi sempre maior do que a hipótese de o PSD ser o partido mais votado. “Durante todo o período eleitoral, foi sempre mais possível ao PS ter maioria absoluta do que ao PSD vencer as eleições, e isso nunca foi dito”, afirmou ontem Luís Paixão Martins. Não é bem assim. Escrevi exatamente isso aqui, no dia 18 de janeiro, para contrariar o discurso de Rui Rio, segundo o qual “a probabilidade de haver uma maioria absoluta seja do PS ou do PSD é muito próxima de zero”. Ao que atalhei: “O PS está mais próximo da maioria absoluta do que o PSD de ganhar as eleições.”

 

“A bolha mediática”. A verdade é que, a partir de dia 20 e das sondagens sobre “empate técnico”, todo esse cenário parecia estar em causa. Paixão Martins garante que isso não mudou, mas o facto é que o PS se assustou e Costa corrigiu o discurso. O guru da campanha socialista não nega isso. “O PS não mudou de objetivos, mudou de semântica. Por uma razão simples: uma campanha eleitoral não se faz a divergir da bolha mediática. Uma campanha eleitoral faz-se com a bolha mediática. (...) Quando se diverge da bolha mediática está-se a destruir a campanha e está-se a destruir a relação com os media.” 

Eis uma distinção central na abordagem da dimensão mediática da campanha: Rui Rio faz questão de fazer as coisas contra a “bolha mediática”, como se contrariar a expetativas e perceções dos media fosse, por si, uma virtude ou garantia de acerto; o PS fez questão de compreender as tendências da bolha mediática. Tendo em conta que esta campanha, talvez mais do que qualquer outra antes, se fez nos media, a segunda atitude parece avisada.

 

Mau arranque. A campanha do PS arrancou mal. A do PSD arrancou em força. Paixão Martins tentou explicar os “fatores que podem ter influenciado negativamente a perceção pública da nossa candidatura” no período após os debates televisivos - ou seja, no primeiro fim de semana de campanha e dias subsequentes. 

  1. Primeiro fator: o “arrefecimento da campanha pós-debates”. No primeiro dia de campanha, Rui Rio esteve em Barcelos e o país viu um banho de multidão com uma energia contagiante. E o mesmo nos dias seguintes, incluindo uma arruada na Avenida da Igreja em Lisboa que parecia levar em ombros o vencedor antecipado das eleições. As imagens mostravam grande capacidade de mobilização, numa campanha que ninguém esperava ver em plena pandemia. A questão, explicou Paixão Martins, era mesmo essa: não podia ser o primeiro-ministro o primeiro a ir para o meio de multidões em plena pandemia. “Entendeu-se que o comandante supremo das forças de combate da pandemia seria mal interpretado se fizesse arruadas no dia seguinte”, e por isso o PS decidiu fazer “uma espécie de hiato na campanha”. Daí o falso arranque dos socialistas, por contraste com a força demonstrada pelo PSD.

Infelizmente, as constantes interrupções às explicações de Paixão Martins não lhe permitiram desenvolver os outros fatores. Mas creio, do seu discurso, conseguir retirar o segundo:


 

  1. O pedido de maioria absoluta assumido por António Costa pode ter sido interpretado pelo eleitorado como sinal de arrogância. Ao mesmo tempo que Costa mostrava essa faceta, Rio fazia o papel do tipo porreiro que gosta de rir. Outro contraste que jogou contra os socialistas. Mais uma vez, a percepção mediática: não havia notícia e análise que não fosse sobre a suposta descontração de Rio e a aparente arrogância de Costa. “Não se pode fazer uma campanha de comunicação em divergência com a narrativa oficiosa da Comunicação Social”, repetiu ontem LPM. Por muito que, no quartel-general do PS, a leitura das sondagens fosse menos alarmista do que na bolha mediática, houve mesmo uma mudança de guião. “António Costa continuou a ter o mesmo objetivo [da maioria absoluta], continuou a ter a mesma estratégia, mas deixou de usar aquela palavra. Foi de propósito”. 

 

Por episódios. O repentino apagamento da maioria absoluta no discurso de Costa deu nas vistas, mas Paixão Martins sublinha que, independentemente do ricochete que essas palavras fizeram, esse nunca podia ter sido o alfa e ómega da campanha socialista. “Fazia algum sentido António Costa ocupar todas as intervenções de campanha a pedir maioria absoluta? Não fazia.”

A campanha, explicou o especialista em comunicação, foi delineada como “um documentário com vários episódios e em cada episódio contamos uma história diferente”. Deu alguns exemplos desses episódios:

  1. responsabilizar a esquerda sobre o óbito da geringonça
  2. contrariar a narrativa da direita sobre o crescimento anémico da economia
  3. dar centralidade ao programa do PS e ao Orçamento do Estado que traduzia esse programa em medidas concretas já este ano
  4. demarcação do PS em relação às propostas do PSD, seja as que estavam no programa social-democrata, seja as que ficaram fora do programa mas foram assumidas noutros documentos ou por outros protagonistas

 

Mudar o tema. Apresentar as propostas do PS era fácil: Costa até andava com a proposta de Orçamento que foi chumbada, repetindo as medidas positivas que avançariam já este ano. Com isso, atingia os antigos parceiros da geringonça - que chumbaram essas medidas - e distinguia-se do PSD com base em medidas concretas, contabilizadas e calendarizadas. “O PS teve a qualidade de alterar o tema central da campanha, que deixou de ser a questão do governo e passou a ser a questão das diferenças entre o PS e o PSD em relação a temas centrais, que ajudaram à deslocação de eleitores da base eleitoral comum ao PS, ao BE e ao PC, e da base eleitoral comum ao PS e ao PSD, para votar no PS. Foi aí que se deu o grande movimento de crescimento eleitoral”, segundo Paixão Martins.

 

“Nunca houve empate”. Não foi só. O voto útil acabou por ser determinante. E, para que o argumento do voto útil funcionasse, a percepção de empate técnico - logo, o risco de vitória do PSD - foi essencial. Segundo Paixão Martins, “nunca houve empate nenhum” nas sondagens. Mas o PS atuou como se esse empate fosse real. O PSD também. A diferença está na forma como um e outro lado reagiram a essa “realidade”.

O PSD viu no suposto empate a confirmação de que Rio estava no bom caminho, a crescer. Só precisava de manter o rumo, talvez continuando a partilhar fotos do gato Zé Albino, um estratagema que Paixão Martins confessa nunca ter percebido (“Andei à cabeçada à procura do racional de muitas das coisas que Rui Rio fez na campanha. O gato. Porque é que está ali o gato? Isto vai levar-nos onde? Que conteúdo é este? Qual é a estratégia?”). Por outro lado, quanto mais se convenceu de que podia ganhar, mais Rio se comportou como se já tivesse ganho. Começou a falar do governo que já tinha na cabeça, a distribuir pastas pelos futuros parceiros de coligação, e a aconselhar a Costa que perdesse “com dignidade”. Ou seja, quando Costa fazia uma inversão de humildade, Rio carregava na arrogância. Com isto, diz Paixão Martins, “Rui Rio deixou-se ser tratado como incumbente e António Costa foi o opositor ao programa do PSD. Essa foi a grande questão da campanha.”

O suposto empate que estimulou Rio a persistir num rumo errado, obrigou Costa a mudar de rumo. Deixou-se de arrogâncias e de maiorias absolutas, prometeu diálogo e humildade, e portou-se, para usar a expressão de Paixão Martins, como opositor ao programa do PSD e à suposta maioria de direita. 

Foi o que lhe permitiu agitar o risco de acordos com o Chega, ou da privatização da Saúde e da Segurança Social, ou de colonização do PSD por propostas radicais dos seus futuros parceiros numa maioria de direita.

 

Voto útil. Foi assim que Costa atraiu para o PS o voto útil da esquerda. Seria esse o único desfecho possível do “empate técnico” entre PS e PSD? Claro que não. “Parece que essa circunstância do empate só funcionou para um lado”, disse LPM, mas não tinha de ser assim. Já no passado o PSD beneficiou do voto útil à direita. “O voto útil é para o PS e o PSD. O que devemos perguntar é porque é que funcionou para um e não funcionou para outro.” 

A resposta, que o especialista em comunicação política não se deu ao trabalho de detalhar, é que não há acasos, nem vitórias que caem do céu. Um exemplo? Enquanto Costa desgastava os partidos à sua esquerda, nunca deixando de os responsabilizar pela crise política e pelos riscos que daí poderiam advir, Rio namorava os partidos à sua direita. “Rui Rio confundiu os partidos com eleitores. Ele achou que piscava o olho aos eleitores do Chega piscando o olho ao André Ventura num debate na tv. Foi um grande erro.” Apenas um de muitos. Por muito que Rio não reconheça erros na sua campanha e alguns analistas achem que as coisas acontecem por capricho dos céus.

 

PSD. Rio gere o seu silêncio, mas estão abertas as hostilidades. Abriram-se  dentro do núcleo-duro do ainda líder. David Justino deu como garantida uma demissão que Rio ainda não consumou. André Coelho Lima recomenda ponderação e pouca pressa. Salvador Malheiro apressa-se a lançar Luís Montenegro como “bom” nome para a futura liderança. Todos são, ainda, vice-presidentes de um presidente do PSD que ainda não abriu o jogo sobre o seu futuro. Por muito que Rio tivesse a ambição de mudar a natureza do partido, o PSD será sempre o PSD. Também nisso falhou.

 

BE. Caiu com estrondo o pedido de que Catarina Martins se demita, feito por Boaventura Sousa Santos, assumido eleitor do Bloco de Esquerda. A violência com que o sociólogo argumentou ontem a necessidade do BE mudar de líder e mudar de vida pairou sobre a audiência dos bloquistas em Belém. Catarina não lhe respondeu, mas dá sinais de querer manter-se à frente do partido. Se o votante Boaventura criticou o BE por ter criado uma crise desnecessária que culminou na maioria absoluta do PS, o militante Mário Tomé, uma relíquia da UDP, critica o Bloco por ter "dado a mão" aos socialistas. Uma regra sagrada das vanguardas é que há sempre alguém mais vanguardista... e do extremismo, é que há sempre alguém mais extremista.

 

PCP. João Oliveira deu ontem uma entrevista muito esclarecedora à CNN Portugal. Questionado pelo Paulo Magalhães sobre “responsabilidades” do PCP sobre o seu próprio resultado, Oliveira pareceu nem perceber a questão. “Que tipo de responsabilidades?”, questionou. “O que é que podíamos fazer mais, do que explicar aquilo que explicámos neste tempo todo?” 

Talvez não ter chumbado o Orçamento?... Nada disso, responde Oliveira, que não se arrepende do chumbo do OE, que continua a achar um mau documento. Aliás, retorquiu com outra pergunta: “O que é que hoje se diria se aquele Orçamento tivesse sido aprovado?” Boa pergunta. Mas já temos a resposta: o PS prometeu reapresentar aquele Orçamento, fez do OE chumbado um dos seus argumentos de campanha eleitoral, e recebeu em troca uma maioria absoluta para o executar. O Orçamento que o PCP insiste que não é de esquerda permitiu ao PS concentrar mais de 80% dos 2,8 milhões de votos recebidos pela esquerda. Tudo indica que o povo de esquerda gostou do Orçamento que uma parte da esquerda chumbou. 

Oliveira denuncia que o OE que o PS apresentou em outubro “foi verdadeiramente o primeiro passo para chegar à maioria absoluta”. É verdade - mas apenas porque PCP e BE fizeram o favor de o chumbar. Por estranho que pareça, o ex-líder parlamentar comunista faz um balanço positivo da influência do PCP na geringonça, ao mesmo tempo que justifica o fim da geringonça. Parece não ver aí nem uma contradição nem um problema.

Não houve, da parte de João Oliveira, uma palavra sobre erros próprios, embora admita que “havemos de ter feito alguma coisa mal”. Mas só em teoria.  Na prática, limitou-se a um discurso de vitimização, acusando o PS de ter feito uma campanha de “vitimização”. No fundo, no fundo, talvez também ache que “o que falhou foi o povo português”.

 

CDS. Nuno Melo anunciou a candidatura a executor testamentário do CDS. Louve-se a persistência e o espírito de sacrifício. Segundo a CNN, Francisco Rodrigues dos Santos não entrará nessa luta. A bem da clarificação interna, espera-se que José Ribeiro e Castro avance em defesa do chicãozismo. Afinal, foi ele o ideólogo desta liderança. 

 

Habituem-se. António Costa testou positivo à covid. Com sintomas ligeiros, mantém-se a liderar o Governo e a preparar a próxima equipa. Deu ordem ao seu gabinete que emitisse uma “nota de imprensa” denunciando que as especulações jornalísticas sobre a composição do próximo Governo são “puras especulações”. Nunca o tinha feito em relação a especulações semelhantes nos últimos seis anos. Como disse em tempos outro socialista, refastelado com outra maioria absoluta, “habituem-se!”

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