opinião

Os mui dignos guardiões da autonomia das mulheres

18 out, 13:19

É natural que costumes que demonstrem uma visão da mulher como um ser impuro, que merece ser escondido e calado, nos sejam repugnantes. É natural que não queiramos que a mulher seja propriedade do marido, e é natural que, com a nossa mundividência, pensemos que, se ela se cobre, é porque o marido lhe impõe que o faça. Mas, se isso acontecer, o direito penal já tem a solução. O crime de coacção.

E se elas quiserem cobrir-se de livre e espontânea vontade? Ai, não podem. Porque aí serão certamente os seus malévolos costumes que o impõem, e a tal mulher está certamente cega e sequestrada numa cultura que a oprime, e somos nós, o Estado, os bons, que temos de ir acordá-la do seu sonho e dizer-lhe: “Liberta-te, neste país és livre, nós aqui sabemos o que é melhor para ti.”

Mesmo que fossem lindas as intenções, bem-intencionadas e certamente muito feministas, este exercício é paternalista, condescendente, e aumenta o poder do Estado sobre as comunidades e sim, sobre as mulheres, e, por certo, não as respeita verdadeiramente.

A afirmação de que culturas ou determinadas expressões culturais são ou devem ser proibidas é perigosa e base para proibições maiores. Começamos por aqui e dizemos que toda a cultura destas mulheres é errada? Que somos superiores? Com que moral? Judaico-cristã não será, com certeza.

A utilização de proibições ou imposições para salvar fracos e oprimidos é normalmente argumento de esquerda para regular designações de género, organizações escolares ou de casas de banho, para libertar e não discriminar os visados. Salvá-los, também.

Este exercício não é muito diferente. Vamos libertar as mulheres que usam burca - dos seus maridos, da sua religião, da sua cultura - no fundo, de si próprias.

A liberdade religiosa é uma das liberdades integrantes do Estado de Direito português. O direito penal define os limites do exercício de todas as liberdades. O limite é o crime. Temos já previsto o crime de coacção. Se alguém ousar forçar alguém a fazer algo que não quer, como usar vestuário opressivo. Ou revelador, se se quiser. (vem o Kanye West à cabeça...)

Esta questão não tem sequer de se misturar com o islão em geral. Países em que o poder do Estado se mistura com a religião muçulmana são evidentemente castradores dos direitos das mulheres (e de todos os cidadãos). Regimes de mão pesada e morte indiscriminada. Certo - é uma mundividência diferente e incompatível com a de uma sociedade aberta e liberal. No entanto, é apenas de salientar que nunca se viu uma rejeição pública tão grande do islamismo como actualmente, com a justificação de que quem é muçulmano (todos) é extremista, não respeita os direitos das mulheres, e não tem lugar numa sociedade ocidental.

Dizer que todas as pessoas que praticam uma religião ou determinados costumes e que estes são imorais, errados, e devem ser, por isso, proibidos, automaticamente generaliza e estereotipa cada uma dessas pessoas (alienando-as da sua característica de indivíduo, sem identificação com o colectivo). Cada uma dessas pessoas pode mais facilmente ser objecto de quem queira atribuir-lhes a culpa colectiva pelos seus costumes ou religião. Da forma que quiser. Cada vez mais apoiada pelo Estado e pela opinião pública.

E, no meio, as mulheres continuam a não ter voz. E os grandes salvadores dos seus interesses e direitos não ficarão descontentes, é para o lado que dormirão melhor.

Curioso também é que quem parece ter uma maior sensibilidade com os costumes islâmicos castradores para as mulheres são aqueles que são também mais ortodoxos e conservadores, que propalam uma versão evangélica e messiânica do cristianismo - e que defendem uma visão de sociedade em que a mulher também teria um papel secundário, mais quieto e calado, pelo menos, e que recupera os estereótipos do lar que lhe eram reservados na sociedade dos anos 50, 60. Mas adaptados aos tempos que correm. Com contas de instagram que inundam os jovens de ódio às mulheres “modernas”.

Existe um movimento reacionário que se apelida de feminista e que defende e requenta este modelo. Porque, no fundo, nunca se conformou com as sociedades modernas. A princípio, mais suavemente, e depois mais veementemente. A julgar pela velocidade a que as coisas mudam - poderá ser em breve a visão dominante. Visão dominante que implica que as mulheres, habituadas a viver em sociedades liberais e abertas, venham a aceitar, sem protestar, o seu novo papel - não ter voz. Ou então, ter apenas uma voz unívoca, que amplie a visão que as diminui.

No final, o resultado é o mesmo. As mulheres têm a mesma falta de voz. O machismo está nos dois lados. A visão de que um ser - a mulher - é menos capaz de ter autonomia, ser dono do seu próprio destino.

São reflexos do tempo em que vivemos. Em que o ódio já domina o discurso, e as acções. Em que a perceção pública caminha a passos largos para as proibições, ou a permeabilidade às proibições.

O futuro não é brilhante.

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