Professores não incentivam os jovens a seguir a carreira docente. "Era uma boa e uma bela profissão" mas "passou a ser um mau emprego"

1 ago 2024, 00:01
Professores

Inquérito levado a cabo pela FNE e pela AFIET dá conta de um corpo docente envelhecido, cansado e desmotivado. A esmagadora maioria (82,8%) não incentivaria um jovem a seguir a mesma profissão. Consideram-se mal pagos, pouco reconhecidos socialmente e sujeitos a uma carga burocrática excessiva. Fomos ouvir uma jovem docente e um professor à beira da reforma sobre o que os motiva ou os demove na profissão

Sara tem na voz todos os sonhos que os 24 anos lhe permitem perseguir. Fala da escola, dos alunos, dos colegas com um entusiasmo e um carinho difíceis de descrever. Sara Ferreira terminou agora o segundo ano letivo a dar aulas de inglês ao 2º ciclo, numa escola de Sintra, onde esteve a substituir uma colega.

O ensino está-lhe no sangue. Com uma mãe professora, garante, contudo, que “nunca foi um sonho”. “Eu tenho a consciência do estado do sistema de ensino. Quando se vê tantos professores a ir abaixo… eu vi na minha mãe e nos amigos da minha mãe o que o sistema educativo pode fazer a um professor. Não lhe consigo dizer que foi um sonho. Foi uma coincidência. Era interessante, gostava, mas nunca coloquei como possibilidade vir a ser professora”, recorda Sara Ferreira, em declarações à CNN Portugal.

Sara Ferreira é filha de uma professora. Diz que entrou para a profissão consciente "do que o sistema de ensino pode fazer a um professor". (Arquivo pessoal Sara Ferreira)

No ano letivo de 2018/2019, esteve a fazer voluntariado numa escola no primeiro ciclo. Fez um curso da Cambridge, mas, confessa, a intenção sempre foi dar aulas a adultos. Diz que pensava não ter “calibre” para se “impor” perante “um grupo de 20 ou 30 miúdos”. “Houve uma altura que pensei em dar aulas só a professores”, diz.

“No primeiro ano, tive de lidar com polícia, tive de lidar com CPCJ… Mas fui gostando e as pequenas coisas contam mais do que isto. Tira-se mais da educação do que se pensa. Só estando lá dentro é que se sabe. Os colegas são fantásticos. Estão dispostos a aceitar pessoas novas e a ajudar-nos. Aliás, os colegas mais velhos sentem falta dessa dinâmica nas escolas”, conta.

Sara revela que teve “o privilégio” de estar a dar aulas ao lado daqueles que foram seus professores e recorda com carinho a emoção da sua antiga professora de inglês quando a viu sentada ao seu lado nas reuniões de departamento.

A "boa e bela profissão" que passou a "mau emprego"

Sara faz parte dos poucos professores jovens nas escolas públicas nacionais. Faz parte do lote de jovens que os professores mais velhos não incentivariam a seguir a profissão. Um inquérito aos professores e educadores portugueses, em que participaram 3570 docentes, levado a cabo pela Federação Nacional da Educação (FNE) e pela Associação para a Formação e Investigação em Educação e Trabalho (AFIET) indica que os professores portugueses estão desmotivados, cansados e doentes. Quase 83% dos professores inquiridos são perentórios em responder que não incentivariam, nem aconselhariam um jovem a ser professor.

Prestes a completar 67 anos de vida e com 43 anos de serviço, Fernando Carvalho é um desses professores que nunca aconselharia um jovem a seguir a carreira.

“Até 2005, ser professor era uma boa e uma bela profissão. A partir daí, passou a ser um mau emprego. Impuseram-nos mais tempo na escola, a chamada componente não letiva, cortes no ordenado, alterações na carreira… Fomos vítimas da tentativa de ter gastos menores no aparelho do Estado”, lamenta, sublinhando que “adora dar aulas”, mas que agora passou “a fazer os mínimos”.

O professor de matemática da Escola Secundária do Pinhal Novo garante que, “dentro da sala de aula, todos os professores dão o seu melhor”. Mas no que toca à carga burocrática e ao trabalho não letivo estão “desmotivados”. Diz isto, mas já podia estar reformado desde o dia 1 de dezembro do ano passado. Manteve-se na escola “para os meus alunos não ficarem sem aulas”.

O relatório da FNE e da AFIET mostra que a esmagadora maioria dos professores gosta do que faz. Numa escala de 1 a 5, quando questionados se gostam da profissão que exercem, 53,1% dos inquiridos assinalaram o nível 5 e 31,1% assinalaram o nível 4. Mas não se sentem reconhecidos socialmente – 87,7% dos inquiridos consideram que o reconhecimento social da profissão é negativo. Não encaram de forma positiva as perspetivas de desenvolvimento de carreira – 89,2% afirmam que essas perspetivas são pouco ou nada atrativas. Consideram-se mal pagos - 94,1% afirmam que a sua remuneração não está ao nível das qualificações e competências que são exigidas para o exercício da profissão. Mais de 29% afirmam mesmo que desejam reformar-se nos próximos cinco anos, 16,4% admitem fazê-lo ainda que antecipadamente e com a consequente penalização.

Quase 32% mostram-se extremamente preocupados com o próprio bem-estar emocional, 29,8% dizem-se muito preocupados e 26,9% dizem-se preocupados. O bem-estar da família e a própria saúde também são fontes de preocupação, de acordo com mesmo inquérito.

"Não deixa de ser curioso haver em simultâneo uma desilusão ao nível do reconhecimento social e do desânimo e um gosto enorme pelo que se faz. Aquela pessoa que não aconselha o filho a ser professor, que sente que a sociedade não reconhece o seu papel gosta do que faz. Tem de haver uma explicação para isto", sublinha Pedro Barreiros, secretário-geral da FNE. 

"Se soubesse o que me esperava…"

Entre os maiores problemas apontados pelos inquiridos estão o excesso de trabalho e a carga burocrática. Oitenta e seis por cento dos docentes afirmam estar extremamente ou muito preocupados com a carga de trabalho e com o excesso de burocracia. Mais de 70% dos participantes nesta consulta “afirmam com toda a clareza que as tarefas administrativas de que são incumbidos são inúteis e pouco úteis”.

Fernando Carvalho é um desses docentes que se queixa da excessiva carga não letiva e de trabalho burocrático a que tem de responder. “Aquilo que nós adoramos é estar na sala de aula. O problema é tudo o resto. Tentam condicionar o trabalho de professor com um conjunto de normas, de burocracias…”, lamenta.

Fernando Carvalho está a poucos dias de se reformar. Garante que não incentivaria um jovem a ser professor. (Arquivo pessoal Fernando Carvalho)

O professor de matemática garante que, se tivesse o poder de adivinhação, teria mudado de profissão há 20 anos: “Em 2005, se eu soubesse melhor o que me esperava, teria mudado de profissão. Tínhamos as aulas, a preparação das aulas, mas não tínhamos a carga burocrática que temos agora.”

“Agora, com tanta burocracia, normas e imposições, um professor que queira ser criativo na sala de aula não consegue”, acrescenta.

Pedro Barreiros destaca que a consulta aos docentes, da qual resultou o relatório que é conhecido esta quinta-feira, foi realizada entre 14 e 28 de junho, "no momento logo a seguir à recuperação do tempo de serviço". O responsável sindical considera que os resultados "ainda não refletem" os efeitos da medida negociada com os sindicatos, aprovada pelo Governo e só promulgada pelo Presidente da República na última semana. "Só vão começar a sentir os efeitos a partir do dia 1 de setembro. Acredito que no inquérito depois do primeiro período já vamos sentir resultados mais positivos", diz. 

Pedro Barreiras está convencido que se houver uma "redução da burocracia, uma melhoria das condições de trabalho, uma melhoria das condições remuneratórias dos professores", daqui "a quatro ou cinco anos", vamos sentir efeito no reconhecimento social dos docentes e no seu entusiasmo. "É a única forma de garantir que isso aconteça e que os mais novos digam aos pais 'eu quero ser professor'", sublinha. 

A "pequena indisciplina"

Fernando culpa os sucessivos Governos pela desconsideração social com que os professores são tratados atualmente. Não tem dúvidas que os professores “perderam a autoridade” dentro da sala de aula e lamenta que os níveis de indisciplina sejam crescentes.

“O problema maior nem sequer é aquilo a que chamam indisciplina. O problema maior é a pequena indisciplina. O professor perdeu autoridade e os alunos sabem que um professor para lhe abrir um processo disciplinar tem muito trabalho e uma carga de chatices tão grande que, às vezes, nem vale a pena. Mas o maior problema é o conversar na sala de aula, estarem distraídos… que, na prática, leva a uma desestabilização das aulas. Os alunos são alvo de muitas solicitações, são alvo de tentativas de contacto pelo telemóvel. Estão habituados a saltar de link em link e isso leva-os a uma dispersão na sala de aula. Conversam, comentam a informação que receberam no telemóvel…” exemplifica.

Questionados sobre a evolução do grau de indisciplina em sala de aula, a maioria dos professores (53,5%) que responderam ao inquérito da FNE e da AFIET consideram que é superior ou muito superior aos níveis do ano passado. Poucos são os docentes que consideram que os níveis de indisciplina diminuíram.

Sobre as maiores dificuldades para lidar com a indisciplina, os professores destacam a falta de apoio dos pais e das famílias e a sensação de stresse e de esgotamento provocada pela gestão constante do comportamento indisciplinado. Mas deparam-se também com limitações administrativas decorrentes do Estatuto do Aluno, com a insuficiência de recursos e com a falta de apoio da direção da escola.

As ferramentas digitais

As novas ferramentas digitais são vistas como um recurso para o ensino, mas o inquérito revela grandes preocupações em relação à sua utilização quer na sala de aula. Quase 56% dos inquiridos discorda da utilização em sala de aula, enquanto 44% concorda. Os docentes dos 2.º e 3.º ciclos e do ensino secundário e profissional são os que são maioritariamente favoráveis. Os docentes da educação pré-escolar e os do 1.º ciclo são os que maior discordância demonstram. Quanto à utilização dos telemóveis pelos alunos nos recreios, 80,3% discorda.

Quase 45% dos professores inquiridos afirmam que têm procurado acompanhar as transformações digitais e acompanhá-las na sala de aula. Vinte por cento acham que essas transformações vão dificultar o trabalho em sala de aula, enquanto 17,3% acham que as mudanças vão facilitar o trabalho na sala de aula. Apenas 22,5% afirmam recorrer a ferramentas de Inteligência Artificial Generativa para preparar as aulas e 66% consideram que os seus alunos não recorrem a estas ferramentas. Mais de 76% não se sente com conhecimentos para avaliar trabalhos dos seus alunos com recursos a ferramentas de Inteligência Artificial Generativa.

Fernando Carvalho já não conta regressar às salas de aula. Está à espera do deferimento do processo de reforma. Mas garante que nas aulas que dava ao 10.º e 11.º anos, “os telemóveis eram necessários” e que ele próprio “incentivava os alunos a usá-los nas suas pesquisas”. O desafio estava em “verificar o uso abusivo” dos aparelhos.

“Como dava matemática aplicada às ciências sociais, eram aulas muito práticas. Quando as aulas têm de ser mais expositivas, porque os conteúdos são imensos e os professores têm muito dificuldade em dar todos os conteúdos, acredito que o uso destas tecnologias pode atrapalhar”, considera.

"O meu objetivo não é ensinar só o verbo to be"

Sara Ferreira olha para as novas tecnologias com naturalidade. Assim como olha com naturalidade para a necessidade dos próprios alunos em terem professores mais próximos da sua faixa etária.

“Eles acham piada eu ver séries que eles veem, eu gostar de mangás, dos livros que eles gostam…”, admite, sublinhando, contudo, que a experiência dos mais velhos “é fundamental”.

Está a fazer um mestrado na área do ensino e já pondera avançar para doutoramento. Não esconde o entusiasmo e a motivação com a profissão. “Não lhe vou dizer que às vezes não é desmotivante.  Vejo pessoas da minha idade que não têm formação superior e que estão a ganhar mais do que eu, sem ter tantas preocupações. Mas sinto-me realizada com a minha profissão”, garante

Se incentivaria outros jovens da sua idade ou mais novos a serem professores, a resposta é um “nim”. “Não diria que não, mas também não iria dizer que sim. Experimentem, antes de se profissionalizarem. Só sabemos que temos perfil para aquilo se forem experimentar. Eu achava que não tinha [perfil], e afinal acho que não tenho feito assim tão mau trabalho (risos). Experimentem em AECs, centros de explicações… Depois é atirarem-se de cabeça”, aconselha.

Sara diz que está no ensino para fazer a diferença na vida dos alunos: “O meu maior objetivo não é tanto que eles saibam o verbo to be, mas que tirem alguma coisa dali para a formação como pessoa”.

“Se um dia me encontrarem na rua e vierem ter comigo dizerem-me que fui importante no seu percurso, acho que vai ser uma emoção”, remata.

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