"Ganhava mais como caixa de supermercado do que como professora", "os professores têm de pagar a reparação dos computadores das escolas"

6 jun 2023, 22:41

Os professores voltaram às ruas. Em protesto contra o que está no título. E contra o que não está. E sobretudo contra a teimosia. A teimosia? Sim, a teimosia - porque se antes "havia o papão da falta de dinheiro", agora é a teimosia. Eles explicam de quem

O rufar dos tambores a encabeçar a marcha podia fazer crer a alguém mais distraído que o ambiente ia ser de festa. Mas aos professores apetece tudo menos festejar. E alguns passos mais atrás já os gritos da luta eram bem audíveis: “Seis, seis, 23, já cá estamos outra vez!”. A grande bandeira vermelha da luta dos professores, a recuperação do tempo de serviço congelado (seis anos, seis meses, 23 dias), voltou a ser erguida em mais uma manifestação de professores - que voltaram a encher, agora esta terça-feira à tarde, as ruas de Lisboa. Isto depois de terem feito o mesmo no Porto durante a manhã.

Muito antes de ter começado a marcha rumo à Assembleia da República, já Sandra Duarte marcava presença na Praça do Marquês. Empunhava um enorme cartaz que denunciava que os professores tinham de se responsabilizar pelos consertos dos computadores das escolas.

“Ontem mesmo o meu computador estragou-se. Levei-o aos colegas de TIC [Tecnologias da Informação e da Comunicação], que são os responsáveis pelos computadores na escola e detetaram que era o disco rígido. Fui à direção da escola e foi-me dito que não há verbas para a reparação. E o meu trabalho está todo lá para as reuniões da próxima semana. Os sumários são eletrónicos, as reuniões são online, os recursos para as aulas são quase todos digitais.”

Ao lado, o colega de TIC e a de Físico-Química lamentam a falta de recursos e de verbas nas escolas para gerir o parque informático distribuído por professores e alunos. Também por isso fizeram greve e estão os três na manifestação. Além dos 6 anos, 6 meses e 23 dias do tempo de serviço congelado, querem melhores condições para trabalhar com os alunos.

Sandra viu o computador atribuido pelo Estado avariar na véspera do protesto. Foi-lhe dito que não há verba para o arranjo (Manuela Micael/CNN Portugal)

“Deixa passar, deixa passar! Sou professor e o mundo vou mudar”

A manifestação de Lisboa é uma boa amostra da faixa etária que compõe o corpo docente em Portugal: muitos cabelos grisalhos, poucas caras sem rugas. Poucos professores jovens na manifestação são o prenúncio da falta de docentes que já se faz sentir nas escolas.

“Há falta de professores nas escolas porque os jovens veem o nosso exemplo e não querem passar pelas mesmas dificuldades e não querem ir para a profissão. Este ano, na minha escola, houve três turmas sem Inglês o ano quase todo”, conta Ana Paula Pereira, professora de Geografia no Agrupamento de escolas Miradouro de Alfazina, na Costa da Caparica.

Talvez por isso não fosse difícil António destacar-se entre os manifestantes. Ao lado daqueles que lhe dão aulas todos os dias, na Escola Secundária de Rio Maior, António Coito segura a faixa com as frases de protesto e enverga a camisola com a frase “sou aluno e quero ser professor”. Do alto dos seus 18 anos, faz questão de explicar porque está ali: “Estou aqui a representar a associação de estudantes da qual sou presidente. Estamos ao lado dos nossos professores nesta luta. Mas estou aqui também a pensar no futuro. Quero ser professor e quero lutar por melhores condições de trabalho, por um início de carreira mais digno, contra os muitos quilómetros que muitos professores têm de fazer para conseguirem dar aulas, por uma evolução de carreira mais justa”.

Nas passadeiras, na berma da estrada, às janelas das casas, muitos populares filmavam e fotografavam a manifestação dos docentes. No exato momento em que protesto se fazia sentir no Largo do Rato, mesmo em frente à sede do Partido Socialista, o grito de luta de milhares de professores: “Deixa passar, deixa passar! Sou professor e o mundo vou mudar”. 

É essa mesma a ambição de António. Quer ser professor para mudar o mundo dos futuros alunos: “Quero transmitir-lhes a paixão pelo ensino. A mesma paixão que vi nos meus professores que tanto me marcaram e que foram, para mim, um modelo e um exemplo”.

António tem 18 anos e quer ser professor. Por isso também se juntou ao protesto desta terça-feira. (Manuela Micael/CNN Portugal)

“Ganhava mais como caixa de supermercado”

Soraia Dimas é professora de Inglês. Cristiana Santos é professora de História e Geografia de Portugal. Têm ambas 27 anos e a mesma paixão pelo ensino. Cristiana é de Vila Nova de Gaia e faz quase 500 quilómetros para dar aulas em Odemira. Soraia reconhece a sorte que tem em dar aulas sem sair do Alentejo que a viu nascer.

Cristiana é de verbo fácil e conta que as brincadeiras de criança passavam pelas “aulas fictícias” que dava às bonecas. “Nunca me irei arrepender de ser professora porque gosto mesmo muito. Mas sabe porque é que não vê mais jovens aqui? Porque não há jovens que aguentem as condições que nos impõem. Descontar as viagens, a renda que tenho de pagar… Eu ganhava mais como caixa de supermercado do que como professora.”

Soraia acrescenta aos lamentos da amiga o desrespeito que nota agora pela profissão: “Antigamente, os professores eram respeitados. Agora esses valores estão a perder-se por completo”. Soraia e Cristiana dão aulas numa escola com muita população imigrante, filhos dos que vêm para Portugal trabalhar nas estufas do litoral alentejano.

Mais perto de Lisboa, do outro lado do Tejo, dá aulas Eduarda Figueiredo, 59 anos, professora de Físico-Química. Considera-se uma privilegiada: “Ainda sou do tempo em que havia falta de professores na minha área e tínhamos logo colocação. Nunca andei de casa às costas”.

Fez greve hoje e voltará a fazer, porque “na escola e na rua a luta continua”, como se gritou hoje junto à Assembleia da República.

“Antes era o papão da falta de dinheiro, agora é a teimosia”

João Jaime Pires é diretor do mítico Liceu Camões, em Lisboa. Também ele fez greve esta terça-feira e também empunhou cartazes e juntou-se aos professores da sua escola na manifestação.

“A data de hoje, 6/3/23, marca um símbolo. E, antes de ser diretor, também sou professor. A Escola Secundária de Camões hoje está em festa, com o final de mais um ano letivo, mas hoje eu tinha de estar em greve. Hoje tinha de estar aqui.”

João Jaime defende que é preciso tratar bem quem faz falta nas escolas: “O país está a precisar de professores e os professores não precisam de ser maltratados. E a não recuperação deste tempo de serviço que eles trabalharam e que não lhes foi contado é tratar mal os professores. Antigamente era o papão da falta de dinheiro, agora já não me parece que seja uma questão de falta de dinheiro mas uma questão de teimosia”.

À semelhança do diretor do Liceu Camões, outros juntaram-se à luta. Vieram de Setúbal, de Faro, da Sertã… empunhavam cartazes e entoavam gritos de revolta. Estavam ali pelos 6 anos, 6 meses e 23 dias mas também por melhores condições para as escolas que dirigem. Juntos, deram voz a outro dos slogans da manifestação: “Escola unida jamais será vencida”.

Um dos cartazes empunhados pelos por um grupo de professores no protesto desta terça-feira. (Manuela Micael/CNN Portugal)

Ana Paula Pereira não é diretora de nenhuma escola mas conhece bem as condições da escola onde está e daquelas por onde passou. Nos 25 anos de serviço como professora passou por lugares tão distantes como Vilar Formoso e Guarda. Ainda é do tempo dos “miniconcursos” e andou 19 anos com a casa às costas. Deixava um filho com o pai, na Margem Sul, e levava outro com ela para onde fosse. Só em 2018 entrou em Quadro de Zona Pedagógica.

As “desigualdades e injustiças” com que se deparou quando chegou à profissão só têm crescido, assim como a falta de condições nas escolas. “Nas provas de aferição, os computadores não funcionaram, a internet não aguentou tantos computadores ligados ao mesmo tempo, as passwords que enviaram na véspera para as escolas estavam erradas”, exemplifica.

“E se isto não resultar, nós havemos de voltar”

Almerinda Bento já deixou a escola há quase década e meia. Foi professora de Inglês e Português a vida toda. Agora, aos 72 anos e reformada, não consegue ficar em casa e não larga a luta sindical. Faz parte do Sindicato de Professores da Grande Lisboa e não falha uma luta.

“Acho que devo continuar na rua com os meus colegas, apesar de já não sentir o sufoco que eles sentem. Sempre lutei enquanto professora. Sempre participei em todas as lutas que achei importantes e não vou deixar agora de o fazer.”

Além disso, “uma vez professora, professora toda a vida”. Almerinda não deixou o ensino e dá agora aulas de Inglês na Universidade Sénior do Seixal.

Também ela é a personificação de um dos gritos mais ouvidos nesta manifestação. Em uníssono, os professores gritaram: “E se isto não resultar, nós havemos de voltar”.

João Jaime Pires adivinha mesmo que vão voltar às ruas mais vezes já no próximo ano letivo: “Estou certo de que este movimento vai continuar, uma vez que os principais problemas que afetam o funcionamento das escolas continuam por resolver”.

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