Falhas na colocação de professores deixam vidas de centenas de docentes em suspenso: "Sou quadro de uma escola que não tem lugar para mim"

24 jul, 07:00
Escola

Concorreram ao concurso interno, foram colocados, mas as vagas afinal não existiam. Foram informados pelas escolas onde foram colocados que tinham de concorrer à mobilidade interna. Continuam sem saber onde vão dar aulas a partir de setembro

Eugénia Pereira tem 62 anos de vida e 38 de serviço. Vive no Porto e era quadro de escola no Agrupamento D. Afonso Sanches, em Vila do Conde, mas há quatro anos que estava em mobilidade por doença no Conservatório de Música do Porto. Por razões de saúde, precisava da garantia da aproximação à residência e concorreu ao último concurso interno de colocação de professores. Nem queria acreditar quando, no último dia 12 de julho, saíram os resultados e ficou a saber que tinha ficado colocada no Agrupamento de Escolas Carolina Michaëllis. Mas a alegria da professora de Biologia e Geologia durou pouco. Menos de uma semana depois ficou a saber que a escola onde tinha sido colocada não tinha afinal vaga para ela.

“Fui à escola, entretanto, e disseram-me que tinham uma vaga negativa e que tinham sido colocados lá eu e mais três colegas. Ao todo, foram colocados quatro colegas numa escola que tem uma vaga negativa. Um mais graduado do que eu e ainda duas pessoas atrás de mim. A todos os quatro disseram que não tinham horário para nós e que tínhamos de concorrer à mobilidade interna”, conta à CNN Portugal.

Eugénia fala num “concurso fictício”. “Ficámos colocados sim, perto de casa sim, mas não temos vaga. Agora, sou quadro de uma escola que não tem lugar para mim”, resume.

A professora vive agora a angústia de não saber onde vai dar aulas no próximo ano letivo e, apesar dos problemas de saúde, nem sequer pode concorrer agora à mobilidade por doença. “Não posso concorrer à mobilidade por doença, porque fui colocada. Numa colocação que é fictícia. Agora, tenho de concorrer na mesma quase como se estivesse na situação de contratada. Foi um presente envenenado. Vou acabar por ser prejudicada”, teme.

Na verdade, no concurso de mobilidade interna que agora decorre, Eugénia pode ficar colocada em qualquer escola do Quadro de Zona Pedagógica (QZP) 9, incluindo escolas geograficamente mais longe de casa do que a de Vila do Conde, de onde tinha saído em mobilidade por doença.

"Não sei onde irei parar"

“Isabel” pediu o anonimato, mas não hesitou em contar a sua história. Natural de Sobrado, no concelho de Valongo, vive em Porto Alto há seis anos. Aos 42 anos e com dois filhos, de 11 e oito anos, esteve, no último ano e “pela primeira vez na vida” a dar aulas perto de casa, a uma distância que lhe permitia “ir buscar os filhos à escola”. É professora do 1.º ciclo, com habilitações para dar Educação Musical no 2.º ciclo. No último concurso interno, foi colocada em Alverca.

De Porto Alto a Alverca são cerca de 30 quilómetros de distância e meia hora de caminho, mas ficou feliz por não ter de vir para Lisboa, Amadora ou Sintra, o que a obrigaria, dependendo do trânsito, a perder duas horas na estrada todos os dias. Duas horas que podia usar para acompanhar os filhos.

“Quando me apercebi que tinha sido colocada em quadro de agrupamento, fiquei um bocado incrédula. Pareceu-me bom demais para ser verdade. Mas permiti-me ficar feliz”, admite.

Também para “Isabel” a alegria durou apenas uma semana. Fez a aceitação na plataforma SIGRHE, da Direção-Geral de Educação, e, na última sexta-feira, chegou a surpresa indesejada. “Fui contactada pelo meu próprio agrupamento, onde estive a dar aulas este ano, a informar que tinham recebido um email do agrupamento onde fui colocada a informar textualmente que não tinham componente letiva para mim e que tinha de concorrer à mobilidade interna”, relata.

“Isabel” adivinha um início de verão pouco tranquilo para ela e para a família. “Vou concorrer para aqui, para o agrupamento de Samora Correia, mas vou ficar sem saber se vou ficar colocada na Amadora, ou em Sintra, por exemplo, porque tenho de concorrer a todos os agrupamentos do QZP em que estou colocada. À partida, sem trabalho não ficarei. Não sei é onde irei parar. Estava à espera de finalmente conseguir um pouco mais de disponibilidade, um pouco mais de tranquilidade. E, afinal, é isto?”, questiona.

"Amargo de boca" e "um murro no estômago"

Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), lamenta que o Governo não tenha dado ouvidos aos diretores e tenha optado por sobre dimensionar as vagas de que as escolas disseram ter necessidades. O diretor admite que casos em que as escolas se veem obrigadas a pedir a um professor para concorrer à mobilidade interna não são inéditos, mas que atingiram uma dimensão única este ano.

Filinto Lima diz que a situação causa angústia aos professores e às direções das escolas: “Nenhum diretor gosta de enviar os seus professores para a plataforma da indicação de componente letiva, por motivos de não ter horário para ele.”

O representante dos diretores alerta ainda para o facto de muitos dos docentes que estão agora nesta situação “são professores já com alguma idade, muitos deles à beira da reforma”. “Não deixamos de causar um amargo de boca a um professor. É um murro no estômago de um colega. É malta com 50 ou 60 anos. Não são professores em início de carreira”, sublinha.

A CNN Portugal contactou o Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI) para tentar saber quantos professores estão nestas condições e como seriam resolvidas as situações destes docentes, mas não obteve resposta. Nos grupos de professores nas redes sociais multiplicam-se as queixas, os desabafos e os pedidos de ajuda. Os sindicatos admitem um aumento de casos neste último concurso interno, relativamente ao anterior, e atribuem as causas também ao aumento da baliza mínima para atribuição de horário a um professor. Até agora, uma escola precisava de apenas seis horas para ter horário para um professor. Agora, se não tiver pelo menos oito horas para atribuir, estamos perante o chamado “horário zero”, a escola tem de convidar o docente a concorrer e o professor é obrigado a fazê-lo.  

A Federação Nacional da Educação (FNE) diz ter recebido, “ao longo dos últimos dias, um número crescente de contatos de docentes” nestas circunstâncias. Professores que foram colocados em agrupamentos de escolas, mas que, “posteriormente, foram informados pelas direções das respetivas escolas de que não possuem componente letiva e, consequentemente, serão obrigados a ser opositores ao concurso de mobilidade interna”. Pedro Barreiros, secretário-geral da federação sindical, aponta para "centenas" de professores nesta situação. 

"Porque é que isto acontece? Só o MECI pode responder. Se vivemos numa fase de falta de professores, o que é que justifica a falta de vagas para professores nas escolas? Dia 25 vamos estar sentados à mesa com o MECI a discutir o plano +Aulas +Sucesso, onde se vai discutir o alargamento para dez do número de horas extraordinárias, onde se vai discutir a contratação de professores reformados… Se há falta de professores nas escolas, porque é que deixam professores de fora?", questiona Pedro Barreiros, em declarações à CNN Portugal.

A FNE questionou o MECI sobre os critérios utilizados para o apuramento de vagas e abertura de lugares de quadro e sobre como será resolvida a situação dos docentes que foram colocados, mas que agora são obrigados a concorrer por falta de componente letiva. A estrutura sindical quer também saber “que medidas serão tomadas para garantir que estes docentes sejam colocados nas escolas onde têm direito e onde foram efetivamente colocados”.

Já na semana passada a FNE tinha questionado o Governo sobre outros problemas detetados no concurso interno de professores. A FNE falava de “um número significativo de docentes” que concorreram, mas “não obtiveram vaga”, apesar de terem concorrido para todo o país. “Estes docentes tinham a legítima expectativa de obter uma colocação”, lamenta a federação.

Ajuste de necessidades

Já a Fenprof desvaloriza e diz que “não há, na ótica da Fenprof, um verdadeiro problema”, já que considera que muitos destes docentes vão ser “repescados” na próxima fase da Indicação de Componente Letiva (ICL2), que deverá acontecer na segunda semana de agosto. “Há sempre processos tardios de autorização de turmas, definição dos créditos horários com que as escolas podem contar, que permitem às escolas ir chamar esses professores e retirá-los do concurso de mobilidade interna”, explica Vítor Godinho, dirigente da Federação Nacional dos Professores.

Se isso não acontecer já em agosto, nos próximos anos letivos estes professores deverão ocupar os lugares que agora lhes foram atribuídos, já que se prevê uma avalanche de reformas até 2030.

Vítor Godinho diz ainda que esta situação resulta de um ajuste de necessidades feito pelo Ministério da Educação ainda no tempo do anterior Governo. “A última vez que tinha havido concurso interno, foi há três anos. Nesse último concurso, houve cerca de 5 mil vagas para efeitos de preenchimento de necessidades permanentes de quadro de agrupamento. Nesse mesmo ano, foram preenchidos 25 mil horários. Fomos alertando o Ministério ao longo de anos sucessivos para a subavaliação das vagas em quadro de agrupamento. Pela primeira vez, o Ministério da Educação fez um apuramento não apenas com base no que os diretores pediam, mas também com o histórico das necessidades no passado”, analisa.

Aos 62 anos, Eugénia tem pouco ânimo para esperar que os colegas mais velhos se reformem, porque ela própria se aproxima dessa fase da vida. Nem ela nem Isabel têm esperança de serem “repescadas” na ICL2.

Sendo professora do 1.º ciclo, Isabel não espera, naturalmente, que lhe sejam atribuídas direções de turma ou responsabilidade por algum projeto que valha um horário e também não tem grande esperança que sejam abertas novas turmas. “Não conheço a realidade do quadro de agrupamento em que fui colocada, mas, para haver abertura de novas turmas, tem de haver autorização da DGEST. Não tenho grandes esperanças que isso aconteça”, antevê.

Numa escola com uma vaga negativa no grupo de recrutamento para que concorreu e com um colega mais graduado do que ela, Eugénia também não espera nada de positivo da ICL2. “Eles ainda estão à espera de poder abrir turmas. Mas, pelo que me foi dito, será impossível todos os colegas ficarem. Eu ainda por cima não sou a primeira da lista. Ainda tenho uma pessoa à minha frente…”, contabiliza.

“Se fosse uma empresa privada, isto valia uma queixa no Tribunal do Trabalho. Dizerem a uma pessoa ‘vais trabalhar para aqui’ e, na semana seguinte, dizer ‘afinal não vais e não sabemos para onde vais’… valia uma queixa. Mas é o Estado…  Nunca pensei chegar a esta idade, com 38 anos de serviço e ainda estar numa situação destas”, lamenta.

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