Como é que os supermercados vendem tão caro os produtos que compram tão barato? "É difuso", assume ASAE

21 dez 2022, 07:01
Supermercado (Foto: Getty Images)

Os fornecedores queixam-se de venderem o seu produto a um preço substancialmente mais barato do que aquele que é pedido aos clientes dos hipermercados. A inflação explica tudo? “Pode haver conceitos de lucros ilegítimos incorporados em alguns destes produtos", explica o inpetor-geral da ASAE

Os alimentos são diferentes, mas as queixas de quem é responsável por colocá-los no supermercado assumem uma tendência idêntica. “A discrepância não é 25%. Eles compram um quilo a um euro e depois vejo-o no retalho a 5 ou a 6 euros”, confessa um pescador de Sesimbra. “Vendo um produto a 0,30 cêntimos e depois vendem-no a 2,5 euros”, afirma um produtor de tomates de Benavente. Nenhum deles sabe justificar porque é que das suas mãos à mão do cliente o preço atinge margens tão exponenciais.

A própria Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica (ASAE) assume que este processo “é algo relativamente difuso” e que tem de ser analisado para além das questões inflacionistas. “Pode haver conceitos de lucros ilegítimos incorporados em alguns destes produtos, é isso que se tem de dissecar e ver”, afirma Pedro Portugal Gaspar, inspetor-geral da ASAE, à CNN Portugal.

Para essa análise, importa verificar que existe “mais ou menos uma certa prática de que ao longo da cadeia as margens de lucro situem-se entre os 10 e os 20%”, acrescenta Pedro Portugal Gaspar, sublinhando que, se em “alguma das fases dispara para 30 ou 35%” é “questionável se isso é permitido” ou se não se está perante a “questão do lucro ilegítimo”. “É um esforço que a ASAE terá que identificar e comunicar ao Ministério Público se estão reunidos esses supostos”.

Por outro lado, Portugal sendo uma economia aberta e livre não tem qualquer tabelamento relativamente às margens de lucro, a menos que o país viva alturas excecionais, como durante a pandemia, em que foram impostas limitações às receitas com máscaras e álcool gel, por exemplo. Isto permite, afirma o responsável máximo pela ASAE, “que a lei da oferta e da procura funcione em campo aberto”.

No fundo, acrescenta, a questão nasce de um problema “mais antigo e transversal” que se prende com a da formulação dos preços. “Podemos ter produtores que fornecem seis ou sete tipos de produtos diferentes para um vendedor final de uma grande superfície" e isso pode levar a que "alguns preços entrem em compensação".

Pescadores vendem mais barato na doca, mas peixe chega-nos mais caro

Simão é pescador em Sesimbra desde 2009 e vê quase diariamente o seu peixe a ser vendido na lota a um preço substancialmente menor do que aquele que chega ao consumidor final. “Pagam-me 74 cêntimos por um quilo de carapaus e mais de 80% das vezes ele está a ser vendido a 5 euros”, diz, garantindo que os seus “melhores clientes” são os representantes das superfícies comerciais, que são quem tem força para escoar o produto”. 

"No final de contas, não dormi com a minha mulher, trabalhei 15 horas e não levei nada disto", suspira.

Tudo isto acontece num momento em que os preços dos combustíveis colocaram muito maior pressão aos pescadores. Desde o início da guerra, Simão viu-se a braços com aumentos de 300 euros e 400 euros. “Estamos isolados”, comenta.

O aumento do preço dos combustíveis levou também vários pescadores a procurar outro tipo de soluções, como duplicar a quantidade de peixe capturado. Mas nem assim a situação melhorou. “O que está a acontecer não sabemos bem ao certo, mas estamos a vender o peixe em média 40 a 50% mais barato do que em fevereiro”, afirma o pescador Manuel Marques.

Marques, que falou com a CNN Portugal em outubro, conta que a sua estratégia e a de vários pescadores em Matosinhos foi a de efetivamente aumentar o volume de pesca para colmatar o aumento do preço dos combustíveis. “Por exemplo, em fevereiro, um quilo de sarda era vendido na doca a um preço médio de 3,24 euros. Com o aumento do preço da gasolina, em agosto, duplicamos as capturas e vendemos 3 mil quilos de pescada. Só que vendemos o peixe a um preço médio de 1,70 euros”, afirma, sublinhando que “o peixe está a perder valor comercial na primeira venda, mas a ganhar na última”. 

Para Simão, a única forma de “fazer justiça àquilo que recebe” é através da liberalização do leilão em que é comprado o peixe ao pescador. Isto porque segundo a Docapesca, a empresa estatal que gere a exploração das lotas, apenas podem lá comprar comerciantes de pescado ou proprietários de restaurantes. “O mercado tem de deixar de ser um nicho para estas pessoas, só quando tudo for liberalizado ao cidadão comum, se pode alterar esta situação”. 

Mas o fenómeno não é exclusivo da atividade piscatória. João, um agricultor de Benavente utiliza a venda do tomate, um dos produtos agrícolas que mais aumentou com a inflação, como exemplo. “Vendemos a um preço e, depois, chega ao consumidor a uma quantia mesmo muito superior”, afirma, destacando que, com a inflação, “há algum aproveitamento, não podemos esconder”.

Lucros excessivos na mira do Governo

Estas queixas vindas de produtores surgem na mesma altura em que o Conselho de Ministros fez aprovar a proposta de lei que regulamenta os novos impostos que vão taxar os lucros excessivos das empresas de distribuição alimentar. Só este ano, a Jerónimo Martins, dona das lojas Pingo Doce, encerrou os primeiros nove meses do ano com lucros de 419 milhões de euros, uma subida de 29,3% face ao período homólogo. Também a Sonae MC, que controla os hipermercados Continente, faturou 1,6 mil milhões de euros no terceiro trimestre deste ano, uma subida homóloga de 16%.

O inspetor-geral da ASAE afirma que, embora haja uma atuação em campos totalmente diferentes, há um denominador comum na proposta de lei aprovada e na ação da ASAE nos últimos meses, que é o de “perceber que há um maior lucro destes grandes operadores”. 

Em contraposição, tanto a Sonae, como a Jerónimo Martins rejeitam o conceito de lucros anormais ou excessivos. “Não vemos lucros extraordinários em nenhum dos nossos negócios como possível resultado de estarmos a tirar vantagem do contexto inflacionista. Pelo contrário”, afirmou João Dolores, administrador financeiro da Sonae, em conferência após a divulgação dos resultados em novembro, acrescentando que a dona dos hipermercados Continente, está “a sentir uma pressão tremenda na nossa base de custos e uma deterioração das margens”.

Também a CFO da Jerónimo Martins, Ana Luísa Virgínia, garantiu, citada pela Bloomberg, que o grupo que detém as lojas Pingo Doce rejeitou a mesma ideia, sublinhando que Portugal “tem o imposto de renda corporativo mais alto da Europa” e “não sabemos como virá a lei em termos de cálculo dos chamados lucros inesperados”.

Paralelamente, a Autoridade da Concorrência tem aplicado várias multas de muitos milhões de euros a grandes cadeias de hipermercados como a Auchan, Continente e Pingo Doce por participarem em alegados esquemas de concertação de preços. A última, em setembro, ascendeu a 5,6 milhões de euros. É um sinal de que o setor está sem regulação há muito tempo?

Pedro Portugal Gaspar garante que não sabe se é esse o caso, mas concorda que “há momentos em que as situações têm um envolvente que faz justificar uma outra atenção e relevância”. Agora, aponta, é o “momento de aprofundar a fiscalização”.

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