Presidente e juiz relator vão esta quarta-feira à Comissão Parlamentar de Economia explicar erros e contradições numa auditoria com duas versões, que se arrastou onze anos
No princípio do ano, o Tribunal de Contas (TdC) publicou um relatório de auditoria explosivo: em 2012, o Governo de Pedro Passos Coelho fez um “desconto” aos franceses da Vinci, no processo de concessão da ANA Aeroportos. “O preço de privatização (1,127M€) foi 71,4M€ inferior ao oferecido e aceite (1.198,5M€)”. O Estado “não salvaguardou o interesse público”, por “não ter sido maximizado o encaixe financeiro”.
O relatório provocou uma cisão sem precedentes na secção de auditoria do TdC, tendo sido aprovado à tangente, por cinco votos contra quatro. Nas declarações de voto, os magistrados dissidentes denunciavam conclusões “mal fundamentadas”, “intromissões” na esfera do poder político e propostas “sem suporte legal”. ´
Durante a campanha para as eleições legislativas, o documento incendiou o debate entre os partidos de esquerda e de direita. Depois das eleições, continuou a ser motivo de um braço de ferro. O PCP viu chumbada a sua pretensão de criar uma comissão parlamentar de inquérito à privatização. Mas obteve o acordo de todos os partidos para chamar à Comissão Parlamentar de Economia (CPE) os antigos governantes da AD, que refutam todas as acusações e lamentam não ter sido ouvidos em sede de contraditório na auditoria de 2024, ao contrário do que aconteceu há oito anos. O PSD, por seu lado, chamou ao Parlamento os responsáveis do TdC.
Onze anos, duas versões opostas
O processo de auditoria à privatização da ANA começou logo em 2013, na sequência de um pedido formulado ao TdC pelo grupo parlamentar do Bloco de Esquerda. Como a TVI e a CNN revelaram, um primeiro relato, datado de 2016, chegou a conclusões diametralmente opostas.
A privatização, no documento de 2016, “revelou-se adequada à luz do interesse dos contribuintes.” A ANA foi concessionada à empresa que apresentou “a melhor proposta” no concurso público internacional. E o encaixe financeiro com a alienação dos aeroportos contribuiu para salvar Portugal da bancarrota em tempos de Troika, “A privatização cumpriu o seu objectivo principal: a redução da dívida pública maximizando o valor da venda”, concluía o documento de 2016.
Ora, esse relato foi enviado pelo diretor-geral do TdC e pelo juiz relator aos ex-ministros da AD das Finanças, Maria Luís Albuquerque, e da Economia, Álvaro Santos Pereira; e ao ex-secretário de Estado das Infraestruturas, Sérgio Monteiro, responsável pela operação. O documento seguiu também para três ministros à época recém-empossados no primeiro governo de António Costa: Mário Centeno (Finanças), Manuel Caldeira Cabral (Economia) e Pedro Marques (Infraestruturas). Para além disso, o exercício do direito ao contraditório envolveu ainda três entidades reguladoras: Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), Autoridade da Concorrência (AdC) e Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC). Feito o contraditório, o relato passou a anteprojeto de auditoria, que estava pronto a ser votado em junho de 2016.
Informações erróneas e conclusões erradas
Nos últimos meses, o presidente do TdC foi bombardeado com sucessivos pedidos de esclarecimento, em particular por parte dos deputados do PSD. José Tavares optou, inicialmente, por só enviar ao Parlamento o “Relato” e não o “Anteprojeto” de relatório final. “O referido relato representa um documento de trabalho da equipa de auditores, que não traduz nem vincula o Tribunal de Contas, uma vez que sobre o mesmo não intervieram os juízes conselheiros que compõem o Tribunal”, escreveu aos deputados.
A TVI e a CNN revelam agora um documento interno do TdC, em formato Excell, que apresenta uma versão diferente dos factos. Trata-se do “Diário e Trilho da Auditoria”, que apresenta datas e factos relevantes sobre a sua evolução ao longo do tempo. O processo foi acompanhado, não só pelo juiz relator, Monteiro da Silva, como por três outros conselheiros do grupo de trabalho, criado no TdC em 2012, para acompanhar as privatizações: Pinto da Almeida, Santos Carvalho e Mira Mendes. Todos receberam o “Relato” antes de ser expedido para contraditório. Numa entrada com data de 8 de janeiro, ficou registado o envio de um exemplar “com vista à obtenção dos contributos e sugestões que se achem pertinentes, por parte dos Senhores Conselheiros”.
O mesmo documento regista uma cópia ao presidente do TdC, no dia 18 de janeiro, já depois do envio aos ministros, reguladores e empresas públicas citadas na auditoria. E regista alterações de redação, da iniciativa de pelo menos dois juízes, nas vésperas da elaboração do “Anteprojeto” de relatório final.
O presidente do TdC contou aos deputados que esse primeiro processo de auditoria foi “cancelado”, por deliberação do plenário de juízes da Secção de Auditoria, porque “os trabalhos desenvolvidos não apresentaram suficiente consistência”.
Acontece que o relatório aprovado à tangente em 2024 recupera significativas extensões de dados - e até de texto - dos documentos de 2016. Para além disso, a conclusão mais grave, que é inovadora, foi recebida com escândalo nos meios empresariais e técnicos ligados à privatizações de empresas. “Não houve qualquer desconto feito pelo Estado ao comprador, nem isso tem qualquer sentido do ponto de vista técnico”, considera João Caiado Guerreiro, advogado especializado em fusões e aquisições. O TdC revelou “falta de entendimento de como funcionam estes processos”, concorda João Caetano Dias. Este gestor e economista participou no concurso em representação da Empark, empresa que integrou o consórcio liderado pelos argentinos da Corporación América, e mostra-se ainda hoje conformado com a derrota e o resultado do concurso público. “Agora dizem que a VINCI está a ganhar muito dinheiro, mas na altura ninguém esteve disposto a chegar-se à frente com valores daquela ordem de grandeza, ninguém acreditava que fosse possível chegar àqueles valores”, desabafa.