A falta de profissionais de saúde em Estabelecimentos Prisionais não é um problema de agora. Já existia antes da pandemia e continua no período pós-pandemia. O investimento, garante o Ministério da Justiça, "tem vindo a sofrer alterações – no sentido de melhorias". Mas, aparentemente, continua a não ser suficiente. Os profissionais são escassos e há uma tentativa de "tapar buracos" com avenças e tarefeiros. Estamos, por isso, a colocar em perigo a saúde pública?
Nas prisões portuguesas há 22 médicos para 11.588 reclusos, segundo dados da Pordata. Isto dá uma média de um médico por cada 520 reclusos. Os enfermeiros são cerca de 186, ou seja, há um enfermeiro por cada 67 prisioneiros. A estes profissionais juntam-se 48 auxiliares de ação médica e 15 psicólogos. A Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) explica que a estes números acrescem profissionais “contratados em regime de avença com especialistas de várias valências". Todavia, não chega, segundo os profissionais de saúde. Este é o retrato dos 49 Estabelecimentos Prisionais (EPs) espalhados pelo país.
A falta de profissionais de saúde nas prisões não é um problema de agora. Já existia antes da pandemia e continua no período pós-pandemia. O investimento, garante o Ministério da Justiça à CNN Portugal, "tem vindo a sofrer alterações – no sentido de melhorias - nomeadamente com a substituição da prestação de cuidados via empresas, por profissionais do quadro, em complementaridade com profissionais com contratos em regime de avença". Mas, aparentemente, continua a não ser suficiente.
Os limites dos cuidados médicos prestados também é um problema e não fica circunscrito às quatro paredes de uma cela. O facto de não se poder realizar colheitas de sangue com a devida regularidade, não se diagnosticar e acompanhar o estado de saúde dos reclusos pode dar origem a surtos, que rapidamente passam para a comunidade. Estamos, por isso, a colocar em perigo a saúde pública? A resposta entre os especialistas não deixa dúvidas.
"As prisões são um ambiente propício a que haja transmissão de doenças contagiosas. Temos uma população que é frágil, com várias comorbilidades, que vive concentrada e na covid vimos bem isso. Rapidamente um vírus se contagia nesta população. Portanto, ao ter a comunidade prisional controlada, contribuímos para a segurança da população, porque estes estabelecimentos não são um mundo distante e fechado. Temos guardas prisionais que saem e entram todos os dias, temos as visitas e pode surgir um vírus que passa rapidamente para a sociedade", explicou Mário André Macedo, enfermeiro mestre em saúde pública no Hospital Fernando Fonseca (HFF), na Amadora, em Lisboa.
O caso do Estabelecimento Prisional de Sintra
O Estabelecimento Prisional (EP) de Sintra é exemplificativo da debilidade deste setor. A CNN Portugal teve acesso a vários documentos exclusivos que mostram que existem 116 reclusos com doença cardíaca, 149 que sofrem de doença endócrina, 145 com problemas imunológicos, 46 têm doenças respiratórias, 126 músculo-esquelética e 374 sofrem de algum tipo de doença mental. Atualmente, neste EP, são pelo menos 519 os reclusos medicados (80,09%).
Entre 2021 e 2022, houve um desinvestimento a nível dos cuidados de saúde e 2023 não vai ser diferente. De acordo com os documentos consultados pela CNN Portugal, de 2022 para 2023 vai haver menos dinheiro em clínica geral, farmácia e enfermagem. Esta última é a que regista o maior corte, passando de pouco mais de 90.000 euros para pouco mais de 50.000. Na psicologia mantém-se igual, contudo, já tinha havido um desinvestimento significativo de 2021 para 2022. Medicina dentária e psiquiatria são as únicas áreas que mantém os valores, cerca de 10.000 euros. Se em 2022 o total anual de avenças foi de 189.800 euros, em 2023 vai ser de 148.200. Um valor que fica abaixo do estabelecido em 2021: 160.962 euros.
Para agravar o problema, espera-se que em 2023 haja um corte nas horas anuais por valência neste estabelecimento prisional: menos 104 horas de clínica geral, o mesmo valor nos auxiliares de ação médica, menos 260 horas de técnico de farmácia e menos 1.574 horas de enfermagem (avençados e dos quadros).
Com tudo isto, existe uma série de atividades do EP de Sintra que podem ficar em risco no próximo ano: realização de análises sanguíneas ao abrigo do protocolo com a infeciologia do Hospital Fernando Fonseca (HFF); implementação do projeto de urgência/emergência; implementação das consultas por videoconferência com o HFF; implementação das consultas para as doenças cardiovasculares, endócrinas, respiratórias e de saúde mental; colheita de dados inicial aquando da entrada no EP; colheitas de análises internas; colaboração no programa PIPS; colaboração nas reuniões de equipa de saúde mental; formação em contexto escolar.
Versão diferente tem o Governo. Nas respostas às questões colocadas pela CNN Portugal, o Ministério da Justiça diz que, através de concursos e mobilidade, "foram alocados em todas as unidades orgânicas (incluindo, naturalmente, o EP Sintra) médicos psiquiatras, mais psicólogos, técnicos de Farmácia, médicos dentistas e, em 22 Estabelecimentos Prisionais (também em Sintra), nutricionistas".
E acrescentam: "Para além dos recursos de saúde da DGRSP (profissionais do quadro e de avença) foram elaborados, desde 2020 até à presente data, protocolos com o SNS (continente e regiões autónomas) que permitem a realização de teleconsultas com os centros de saúde e com os hospitais para o acompanhamento dos reclusos com doenças infeto contagiosas e de outras especialidades, quando necessárias, com um claro acréscimo da acessibilidade dos reclusos ao SNS, reduzindo o tempo de espera substancialmente. Releve-se que o Estabelecimento Prisional de Sintra foi o pioneiro na aplicação prática deste protocolo".
Fonte do EP de Sintra alega, no entanto, que não se trata de uma inovação, uma vez que este protocolo ainda se encontra em fase experimental e não implementado na sua plenitude.
Hugo Esteves, médico de saúde pública e docente na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, lembra que a população prisional "tem um status de saúde, já à entrada, menor ou inferior do que a população em meio livre, porque geralmente vem de um meio económico e social desfavorável e não teve acesso aos devidos cuidados de saúde".
"Ao contrário do que pensamos, os estabelecimentos prisionais não são fronteiras estanques e, por isso, a doença circula entre a reclusão e o meio livre, como vimos com a pandemia. Neste momento, temos grandes desafios. Alguns antigos, como as doenças transmissíveis e dou destaque para a elevada prevalência da SIDA, mas também das hepatites B e C ou em algum tipo de infeções, como a tuberculose", acrescentou.
Existe ainda um outro desafio relacionado com as doenças crónicas e degenerativas. Hugo Esteves trabalhou de perto com os EPs durante vários anos e referiu que existe agora um dado novo: a população prisional é cada vez mais envelhecida. "Os serviços prisionais não estavam preparados para esta realidade porque foram construídos, em geral, para homens e para homens jovens".
Em meio livre, uma pessoa é considerada idosa aos 65 anos, mas “nas prisões, isso está convencionado a partir dos 55 porque, para além da questão da saúde mental, sabemos que vai surgindo perda de mobilidade, perda de capacidades auditivas e visuais. Há um envelhecimento precoce em meio prisional e estas pessoas são vistas como a margem da margem da nossa sociedade", sublinha o mesmo especialista.
Contratos têm um limite de 25 horas semanais
Para assegurar os cuidados de saúde aos reclusos e aos jovens internados em centros de correção, uma vez que a contratação externa de profissionais de saúde a empresas não correu como o esperado, a DGRSP tem optado, desde 2022, pela celebração de contratos de avenças. Para o ano de 2023, estão previstos 786 contratos, com um valor total de despesa de 5.950.048,00 euros, por referência a diversas categorias de profissionais de saúde. O problema é que estes contratos têm um limite de 25 horas semanais.
"A meu ver, a única justificação é o não querer assumir que há uma necessidade permanente. No entanto, pelos dados que temos, há nitidamente necessidades permanentes que têm de ser satisfeitas. Mas para não terem de oferecer contratos a enfermeiros e médicos, fazem esses contratos de 25 horas. É uma forma de dar a volta ao texto da própria lei para não ocupar o lugar de forma permanente e sai-lhes mais barato", disse Mário André Macedo, médico de saúde pública no HFF.
Para Hugo Esteves, a questão-chave não passa pela penosidade maior, mas sim pela não abertura de concursos públicos em relação ao meio prisional e a preferência por tapar buracos. "Falando no caso dos médicos e médicas, em geral, quando há, eles concorrem. A questão é que se opta por uma estratégia de tapar buracos com tarefeiros e avençados em vez de contratarmos".
"O que é mais irónico é que esses tarefeiros e avençados, se houvesse abertura de um concurso, estariam a trabalhar nessas condições. (...) É fundamental percebermos que no contexto prisional toda a medicação que é dada aos reclusos é observada diretamente e para isso é preciso ter muitos enfermeiros. De um modo geral, temos 10 vezes mais doença do que em meio livre. Tarefeiros não são a solução, são uma má solução."
Apesar destes relatos, o Ministério da Justiça explica que entre 2020 e 2022 "entraram para o quadro cerca de 50 enfermeiros por concurso e também por mobilidade, e foram atribuídos horários acrescidos a cerca de 10 enfermeiros, o que permitiu a redistribuição das horas de avença de forma mais eficaz e o alargamento destes contratos a outros profissionais de saúde". Mas estes 50 enfermeiros correspondem a um número bruto e não líquido. O Governo não responde à pergunta: entraram 50 enfermeiros, mas saíram quantos?
No site da DGRSP é possível perceber que o último concurso público geral para colocação de enfermeiros em vários EPs já ocorreu há seis anos. Depois disso, houve em 2018 e este ano para alguns específicos. No caso dos médicos, por exemplo, o último concurso público aconteceu em 2018, mas apenas para "Técnico Superior (Psicologia Clínica)". Já no caso dos Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica, foi aberto concurso este ano para os EPs de Pinheiro da Cruz, Tires e Vale de Judeus.
Baixa remuneração, inexistência de carreiras - o que é que está a falhar?
Aparentemente, a fixação de profissionais de saúde nos EPs. "Em parte, o que está a acontecer nas prisões é que o que acontece nos hospitais, mas de forma mais agravada", considera Mário André Macedo. Trabalhar numa prisão é geralmente percecionado como um trabalho de risco. Se juntarmos a isso os baixos salários, a inexistência de carreiras, a falta de autonomia e projetos de melhoria da qualidade, temos o cocktail perfeito para a não atração de qualquer profissional de saúde.
"Os hospitais, de alguma forma, conseguem aliciar com carreiras, com melhores salários e com projetos aliciantes em termos de desenvolvimento profissional, como por exemplo as urgências". Por isso é que, na perspetiva do enfermeiro e médico de saúde pública, "as prisões deveriam ter a sua própria equipa de profissionais de saúde, de forma a serem mais autónomos e suficientes. E não estarem dependente de avenças e recibos verdes para uma necessidade que é permanente. As avenças deveriam ser pontuais ou extras".
A CNN Portugal sabe que há quatro anos foi oferecido a psicólogos €4/h para prestarem serviços em EPs. Em 2020, houve enfermeiros que receberam propostas de €7,50/h.
A questão da progressão de carreira é igualmente fundamental, porque, explica Hugo Esteves, "a carreira no Ministério da Justiça está um pouco parada. Nós não conseguimos avançar para dar uma carreira digna a estes profissionais, para que se sintam satisfeitos em relação à sua diferenciação técnica". Isto significa que um médico que trabalhe no Hospital Amadora Sintra, por exemplo, não tem a mesma progressão que um outro que esteja no Hospital Prisional São João de Deus.
A CNN Portugal soube, e a DGRSP confirmou, que existem enfermeiros a trabalhar nestas instituições que não são avaliados desde 2018. Sendo a avaliação um fator que contribui para a progressão e evolução de carreira. A justificação? A pandemia.
"Informa-se igualmente que os enfermeiros estão avaliados até 2018. No biénio 19/20, pese embora o facto de terem sido contratualizados objetivos, o SIADAP [sistema integrado de gestão e avaliação do desempenho na Administração Pública] não foi executado em consequência da Pandemia. Com efeito, a esmagadora maioria dos enfermeiros foram desviados para fazer face às exigências, que se impunham. No presente momento estão a finalizar-se alguns procedimentos para fazer a avaliação dos enfermeiros nos dois biénios (19/20 e 21/22). No que se refere ao pessoal clínico está a ser ultimado o despacho de designação do conselho de avaliação", esclareceram em comunicado.
Mário André Macedo vê esta justificação como mais uma prova de quem "a pandemia tem as costas largas". "Percebo perfeitamente que a atividade clínica e não clínica ficou condicionada. Mas não fazer avaliações já é esticar a corda. Os profissionais têm o direito de ser avaliados (...) o que vai acontecer é que, a longo prazo, não vão progredir, porque não foram avaliados. Foi isso que aconteceu nos hospitais".
Será culpa da gestão intermédia ou da gestão de topo?
Há sempre um passa culpas quando existem falhas nos sistemas que respondem perante o Estado. Mas de quem será a responsabilidade: da DGRSP ou de quem a tutela? Há quem fale em conivência, mas também há quem chame à responsabilidade o Ministério da Saúde.
"Penso que seja um misto entre a gestão intermédia, que quer poupar com a saúde, e a gestão de topo, por ter pouco conhecimento de causa. Há uma conivência do Ministério da Justiça, mas admito que seja por não estarem tanto dentro da área da saúde, ser um pouco de ignorância e a gestão intermédia toma esta decisão porque lhes sai mais barato", admite Mário André Macedo.
Pegando nesta linha de raciocínio, e concordando que numa primeira instância a tutela e a DGRSP são os primeiros responsáveis, Hugo Esteves admite que "a saúde não é a atividade central da justiça" e que é necessário um envolvimento maior do Ministério tutelado por Catarina Sarmento e Castro e o Ministério da Saúde, em relação ao Serviço Nacional de Saúde (SNS).
"Noutros países, este pelouro está totalmente na saúde. A minha convicção é o Ministério da Saúde assumir responsabilidades, porque o Ministério da Justiça não tem os recursos para cuidar destas pessoas. (...) O SNS, provavelmente, não está a cumprir com todas as suas atribuições em relação a esta população. Como o acesso a consultas de especialidade ou aos cuidados primários. A Saúde não pode assobiar para o lado e dizer que esta população está apenas ligada à justiça, até porque isto não é um investimento pessoal, é coletivo. Não é só uma questão de não termos recursos no Ministério da Justiça, é não termos articulação com o SNS", defendeu.
Hugo Esteves disse ainda que existe um problema com a opinião pública: "As prisões não dão votos. As pessoas acham que uma das consequências dos reclusos, além de estarem privados da liberdade, é terem menos cuidados. Mas isso não faz sentido do ponto de vista da saúde pública. As pessoas estão privadas do seu direito à liberdade, mas não do direito à saúde".
"Temos de reforçar muito mais os recursos humanos, temos de ter um esqueleto, uma coluna dorsal de recursos humanos e temos de articular muito melhor com o SNS e finalmente olharmos mais para a promoção da saúde e prevenção da doença", concluiu.