O susto das eleições francesas

24 abr 2022, 15:24
Segunda volta das eleições presidenciais francesas. Foto: EPA/Ian Langsdon

Acabou o tempo sem nuvens

Sempre nos habituámos a encarar as eleições livres e justas, onde quer que tivessem lugar, como um momento de grande festa. Mais do que em qualquer outra situação, a expressão da vontade popular através do voto sacraliza, simbolicamente, a forma democrática assim como o direito de autodeterminação do povo que assim diz ao que vem e aquilo que pretende.

Hoje, no entanto, os atos eleitorais passaram a ser um susto permanente. Deixaram, em não poucos casos, de ser uma opção sobre propostas alternativas de sociedade, para se assumirem como escolhas mais fundas e radicais que, em situações limite, podem contender com a própria sobrevivência daquilo que costuma caracterizar, como base, as democracias.

Princípio da separação dos poderes, um sistema de direitos fundamentais comummente aceite e defendido, que inclui, por exemplo, o consenso sobre um dever de proteção dos vulneráveis (quaisquer que sejam), pluralismo de valores, tolerância do outro, um sistema público mais ou menos desenvolvido que assegure que ninguém fique de fora – eis algumas das ideias que achávamos adquiridas para agora e, de facto, para a eternidade das nossas vidas finitas.

No continente europeu, quanto à maioria destes pilares, nem era necessária uma muito desenvolvida consciência cívica ou cidadã. As coisas eram assim, nem que fosse por uma questão de boa educação. E porque existe a União Europeia, e o Conselho da Europa e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Diria que estes tempos estão em crise, e crise estrutural. Ficámos embevecidos, até um pouco deslumbrados, diria, com o global. Passámos a ver o outro lado do mundo, mas, quantas vezes, negligenciámos o nosso próprio jardim. Deixámos de o regar, e agora é um ai Jesus!, de cada vez que o antipático do vizinho quer tomar conta dele.

O desenhar de um padrão

Como as atuais eleições francesas nos mostram, é bom, não era? Os processos eleitorais, mais vezes do que muitos gostariam, mas com cada vez mais a gostarem, tendem a questionar tudo, a deixarem de ser um momento de tranquila decisão integrada num modelo conhecido para serem, isso sim, uma opção extrema, que tende a evoluir para o binário e em que se joga a cave. Vai tudo a jogo, põe-se tudo em jogo, e seja o que Deus quiser.

É claro que, quando umas eleições, quaisquer que sejam, se transformam numa espécie de roleta russa, como no filme Deer Hunter, em que o gigante Christopher Walken, viciado em cocaína e viciado no risco, não consegue deixar de colocar a sua vida em jogo em bares sórdidos numa Saigão que estava prestes a cair, a adrenalina até pode ser grande, mas não creio que compense. Pois que, mesmo quem não viu o filme conseguirá adivinhar o que acaba por acontecer a Walken.

Roleta russa não será o meu forte, e espero que não seja o de ninguém. Mas, quando estamos a ficar empurrados, lenta, mas seguramente, para escolhas “decisivas”, ou ele(a) ou o caos, algo está muito disfuncional do ponto de vista sistémico.

A França e os outros

Em França, opõem-se Emmanuel Macron e Marine le Pen neste momento último de um processo que já começou há muito, como se vê por algumas das pérolas que se lançaram na corrida, como o muito perigoso Zemmour.

De facto, começou – e mal o pressentimos – quando o sistema político-partidário deu sinal de fissuras cada vez mais flagrantes. Sim, os partidos políticos transformaram-se no bombo da festa da originalidade democrática. Velhos, anquilosados, incapazes de se “abrirem” à sociedade (nunca consegui alcançar exatamente o que significa este cliché), era preciso, ou renová-los de alto a baixo ou encontrar, rapidamente, alternativas mais modernas e interessantes. Surgiu também, por essas alturas, o tipo de “político not”, personagem, ator político até ao tutano e para lá do tutano, que vive na e da política, que ressua política em cada gesto e cada pensamento, mas que constrói o seu perfil contra a política e, sobretudo, contra os “políticos” – porque não depende da política (diz ele), entrega-se ao povo, doa-lhe talento e as suas infinitas virtudes, esperando em retorno que o povo lhes agradeça devidamente. Hoje, temos disto por todo o lado, e cada um de nós terá a sua caderneta de cromos preferidos.

Olhemos para França, e o que vemos? Não sei bem, mas sei aquilo que se deixou de ver, e é muito relevante. Os dois partidos ou áreas partidárias sustentáculo da democracia francesa durante décadas (em sentido não muito rigoroso, a direita gaullista e o partido socialista), enfrentam agora o destino da “Capra pyrenaica pyrenaica”, subespécie da cabra-montês que vivia nos Pirenéus e se extinguiu há mais ou menos uma década. Anne Hidalgo, candidata do partido socialista e Presidente da Câmara de Paris, pôde ter 1,75% dos sufrágios? Pôde, claro – com o facto espantoso de, ainda em 2017, estar no poder François Hollande (do partido socialista). Cinco anos, mil e quinhentos dias, é ontem. Ora, entretanto, esse espaço não foi satisfatoriamente ocupado. Talvez por Mélenchon, em parte, talvez por Macron, também em parte, embora com um movimento (LRM) que ainda não conseguiu ser sociologicamente sólido.

Fosse só a França e, por muito que goste dos franceses, seria uma sua idiossincrasia. Estes novos dilemas, porém, são muitos mais, em muitas mais paragens (já nos esquecemos dos Estados Unidos?). Especificamente na União Europeia, não faltam os tais “sustos” eleitorais que nos colocam perante a alegada falência de um modelo político nacional (dos Estados enquanto tal) e internacional (porque a UE treme, atemorizada, porque aquilo que é depende em quase tudo da sustentação democrática dos seus membros).

O que fomos fazendo não abonará muito a nosso favor porque, não podendo ser o que queríamos que fosse, começou a ter que ser, bastante mais, a cedência aqui e ali, a aceitação, noutros casos, de que se não podes vencê-los, junta-te a eles. O ovo da serpente, aquele ovo da serpente do filme de Bergman, já está entre nós, só não lhe sei o tamanho e a letalidade do bicho que dali sair.

Foi ver como nos alambazámos, por exemplo, na dicotomia democracia liberais-democracias iliberais, um postulado conceptual que andou e anda muito na moda e que tem como vantagem principal adiarmos as coisas e fingirmos que a velhinha não está a atravessar a rua fora da passadeira com o camião TIR a aproximar-se a grande velocidade.

A instrução, portanto, a desgraçada estratégia, passou a ser mais ou menos a de irmos compactuando com o populismo, porque (acaba por ir-se sempre dar este raciocínio) é melhor sermos nós (porque somos os “bons”) do que os outros, e porque se não o fizermos as forças a-sistema ou antissistema vão derrubar as muralhas da nossa fortaleza civilizacional.

No pasarán!

Sim, é verdade, podemos transformar num slogan global o célebre grito de Dolores Ibárruri, a Pasionaria. Fica sempre bem, devo dizer, é mesmo bastante chique. Mas, da mesma maneira, tenho alguma dificuldade em esquecer que, ao contrário do dizia o grito, “eles” passaram, e de que maneira. Que o diga (em sentido figurado) Dolores Ibárruri, que só voltou do exílio quarenta anos depois, mais coisa menos coisa, quando o Generalíssimo morreu.

As “passagens”, mais ou menos ostensivas, pelos buracos na rede da decência têm sido cada vez frequentes. Estou convicto que hoje, especificamente hoje, ainda não é desta que tomba mais uma democracia para o campo que lhe é hostil. Mas a candidata que chegou à final vai formando a convicção (e outros e outras com ela) que, se ainda não for desta, acabará por ser. Amaciou a verve, está um doce, compreensiva, Putin e a Rússia foi um devaneio, nada de mais, liberdades sempre, defesa feroz dos franceses. Assim como assim, a verdade é que já ficamos bem contentes se não alcançar muito mais de 40, 45% dos sufrágios.

Aos costumes, nada. Como sempre nestas ocasiões, lemos apelos lancinantes e com um piquinho melodramático sobre o que representa esta “escolha”, como se estivéssemos já no último reduto, à espera do assalto de hordas ululantes. Talvez seja menos espetacular, é certamente menos melodramático, mas sugeria que, como orientação, nos dedicássemos mais a algumas tarefas bastante corriqueiras.

Por exemplo, que não fortalecêssemos o populismo mais desbragado com as abordagens sistematicamente sensacionalistas da realidade política e social, para, chegado o dia das eleições, não andarmos a dar lições sobre riscos e sobre a “incultura” dos cidadãos ou a forma como são manipulados.

Ou, então, que fôssemos esclarecendo que, com a desterritorialização do poder, aquilo que acontece no Donbass pode, instantaneamente, refletir-se dentro de processos políticos em curso noutros países (creio que o caso francês é bastante óbvio).

Ou que entendêssemos que a porosidade das decisões e das suas consequências nos devem fazer perceber, de uma vez por todas, que aquilo que defendemos lá fora tem custos cá dentro. Que, quando lançamos bravatas sobre o dever de a Alemanha, ou a França, cortarem de vez os laços económicos com a Rússia, pode haver um custo democrático instantâneo, com deslegitimação do poder estabelecido.

Foi perguntado aos franceses o que é que, nesta altura, consideravam mais importante para as suas vidas. Alguém achará surpreendente que tivessem sido três vezes mais aqueles que falaram do custo de vida, da inflação e da situação económica do que a guerra na Ucrânia? Por isso é que, quando algumas Pasionarias dão lições de cátedra a outros povos sobre o seu egoísmo, ou sobre a tibieza dos poderes políticos, ou sobre os políticos mais em geral (porque, como é bem sabido, são todos uns patifes), e uns dias depois voltam a dar lições sobre o cataclismo que pode ser a eleição daquela que vai a jogo contra Emmanuel Macron, apetece aconselhar algum bom senso. Falem à vontade, saturem-nos se lhes der para isso, mas tenham algum bom senso.

Os conselhos eleitorais

Ainda ontem à noite, uma excelente amiga, visceral democrata, me perguntava que razões é que eu conseguir apresentar-lhe para que fosse votar Macron, porque não gosta dele e, é verdade, detesta Marine le Pen. Sem querer, esta amiga expunha de forma crua aquela que é uma das nossas doenças. Queremos mais escolha, transformámos isto numa questão de apetites, só votamos se “gostarmos” mesmo, transformámo-nos em consumidores de democracia, queremos um voto sem glúten, magro, biológico, com poucas calorias e, sendo possível, sem lactose. E, definitivamente, o voto tem de ser umami.

Isto, é verdade, levou a que a oferta se diversificasse: os partidos políticos multiplicaram-se, com programas cada vez mais orientados para um determinado grupo de cidadãos, cada vez menos “nacionais”. Nas eleições francesas, também assistimos a esse tipo de comportamentos determinados pelo “gosto”. Mélenchon nem esteve especialmente mal, porque definiu, pelo menos, em quem não se podia votar (ainda assim, por uma sondagem que vi ontem ou coisa assim, 26% do seu eleitorado vai sair hoje de casa para ir votar le Pen). Outros dos candidatos, nada disseram. Outros, como Zemmour, foram céleres a anunciar a sua opção por Marine le Pen.

Bom, mas, afinal, porque é que quem vai votar hoje deve votar no atual Presidente? Eu respondi de forma simples à minha amiga: se estás a fazer este tipo de pergunta, é claro que nem me vou dar ao trabalho de arranjar razões para ires votar neste ou naquele. Se não sabes ainda, o problema não é “do” Macron. É de quem acha que hoje, no recato da cabine de voto, se está como no supermercado, dilacerado pela indecisão entre duas marcas de leite de coco.

Dúvidas impertinentes

Só há uma questão que continua a ser difícil enfrentar. Ainda estaremos tão longe, nas tais cedências, daquele que é, sem dúvida, o projeto da candidata que hoje enfrenta Emmanuel Macron?

Sendo Marine le Pen eleita, por exemplo, e com o desamor pelos direito fundamentais que tem evidenciado, até podia um dia lembrar-se de celebrar um acordo com o Ruanda para despachar para lá, com grosseira violação do direito, aqueles que batessem à porta de França para ali encontrarem refúgio, fugindo da perseguição. Bolas, parece que já vai ser feito por alguém.

Ou então, não ficaria admirado se decidisse que aqueles que estão detidos antes de serem deportados para o seu País de origem cumpram o tempo de detenção numa prisão estrangeira, sei lá, no Kosovo. Ai!, que maçada, já está a ser feito.

Ou então, vamos para um exemplo mais extremo. Não vai ganhar, claro. Mas, se ganhasse, Marine le Pen, com o seu perfil, ainda ia lembrar-se, para nosso escândalo, de construir um muro (chamemos-lhe vedação) ao longo das suas fronteiras terrestres, para impedir a entrada daquela gente cinda de sítios com nomes esquisitos. Bolas, já temos vários casos.

Bom, desta só Marine le Pen se lembraria: só ela é que decidiria dar prevalência ao direito francês sobre o direito da União Europeia. E, de certeza, só ela é que passaria a controlar o aparelho judicial, varrendo o princípio da separação de poderes, ou controlaria o sistema mediático, instaurando regras repressivas e, literalmente, a perseguição dos que se atravessem a infringir estes princípios tão saudáveis. Dizem-me aqui ao lado, num sussurro, que já está a ser feito, não seria novidade.

Pois.

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