Alimentos. Quem está a ganhar com a subida dos preços?

ECO - Parceiro CNN Portugal , Luís Leitão
13 mar 2023, 08:56
Inflação, preços, economia, mercearia, compras, mercado, fruta. Foto: Burak Akbulut/Anadolu Agency via Getty Images

Nem os distribuidores alimentares nem as empresas de energia aumentaram as margens de lucro. O impacto maior sobre a subida dos preços dos bens alimentares é causado pela elevada carga fiscal.

Desde outubro que a taxa de inflação em Portugal tem vindo a corrigir. Desde então, passou de uma taxa homóloga de 10,29% (valor mais elevado desde maio de 1992) para 8,25% em fevereiro. Porém, o abrandamento da subida dos preços da generalidade dos produtos não tem sido acompanhado pelos preços dos bens alimentares.

Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, a taxa de inflação dos produtos alimentares não transformados voltou a subir em fevereiro pelo terceiro mês consecutivo, fixando-se em 20,09% em fevereiro. É o valor mais elevado em 38 anos. E ainda este mês, a Deco Proteste deu nota de que o preço de um cabaz de alimentos essenciais, que agregam mensalmente, atingiu o valor mais elevado desde que começaram a fazer esta monitorização a 5 de janeiro de 2022.

A disparidade no comportamento das duas taxas de inflação levantou muitas vozes críticas, indiciando inclusive que alguém esteja a beneficiar tremendamente com a subida dos preços.

O ministro da Economia e do Mar, António Costa e Silva, chegou a dizer que existe uma “divergência muito grande em alguns produtos entre os preços de aquisição e de venda ao público”, notando que isso “não é criminoso” mas “é um alerta”.

A mensagem do governante tinha como destino, entre outros, as principais cadeias de distribuição alimentar, dado que o Governo está inclusive a estudar uma forma de pressionar o Continente, o Pingo Doce e outras cadeias de super e hipermercados a baixar os preços e as margens.

No entanto, quando se consulta as últimas contas dos dois principais players do mercado, os números revelam que nem as margens brutas nem as margens de lucro do Continente (do grupo Sonae) e do Pingo Doce (do grupo Jerónimo Martins) estão a aumentar. Pelo contrário, até caíram nos primeiros nove meses do ano, em comparação com os dados homólogos.

  • O Continente fechou os primeiros nove meses de 2022 com uma margem EBITDA subjacente (margem de lucro) de 9,31%, face a 9,90% no mesmo período do ano anterior. Significa que, entre janeiro e setembro de 2022, por cada 100 euros de vendas realizadas, a Sonae lucrou 9,3 euros, menos 6% que no mesmo período de 2021. Entre 2019 e 2021, a margem de lucro da Sonae MC (que agrega o Continente) foi de 9,9%. O mesmo sucede com a margem bruta (rácio entre vendas e custo das vendas de mercadorias), se bem que numa proporção mais reduzida: segundo as contas da Sonae MC, a margem bruta nos primeiros nove meses de 2022 foi de 41,9%, que compara com 42% no mesmo período de 2021 e 42% em 2019. Significa que por cada 100 euros de compras realizadas entre janeiro e setembro de 2022, o grupo Sonae faturou 41,9 euros.
  • As operações de distribuição alimentar da Jerónimo Martins em Portugal (Pingo Doce e o Recheio) fecharam os primeiros nove meses de 2022 com uma margem de EBITDA de 5,87%, que compara com uma margem de lucro de 5,92% no mesmo período do ano anterior ou de 8,31% em 2019. Ao nível da margem bruta, as contas da Jerónimo Martins não detalham os custos das vendas de mercadoria por segmento, sendo apenas possível calcular a taxa bruta do grupo. E, neste caso, verifica-se que se nos primeiros nove meses de 2021 a margem bruta da Jerónimo Martins era de 27,6%, entre janeiro e setembro de 2022 essa margem caiu para 26,8%.

Estes números mostram que nos primeiros nove meses do ano passado, um período marcado por uma forte subida dos preços da generalidade dos produtos, tanto o Continente como o Pingo Doce encaixaram nas suas contas parte da subida da inflação. “Baixámos as nossas margens para acomodar o aumento dos custos”, referiu Cláudia Azevedo, CEO da Sonae, numa carta enviada na sexta-feira aos funcionários do grupo.

No caso da Jerónimo Martins, não deixa de ser curioso o fato de o grupo liderado por Pedro Soares Santos ter conseguido acomodar mais o efeito da inflação na sua operação na Polónia (Biedronka) do que as operações em Portugal – nos primeiros nove meses de 2022, a margem de lucro da Biedronka era de 8,8%, face a 9,1% registado no mesmo período do ano anterior.

“Pela sua posição geopolítica e com um contexto energético diferente, a inflação nos custos foi superior na Polónia, pelo que a margem EBITDA da Biedronka foi mais pressionada nos primeiros nove meses de 2022 face ao ano anterior”, refere uma fonte da Jerónimo Martins ao ECO.

Decompondo a cadeia de valor até chegar ao Estado

Na semana passada, a Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED) referiu em comunicado que “a distribuição está a comprar os produtos cada vez mais caros, já em 2023, aos fornecedores (indústria e produção).”

A associação que representa o setor lembrou que “estes aumentos no início da cadeia refletem a subida dos custos dos fatores de produção decorrentes dos aumentos dos preços dos fertilizantes, das rações e de outros custos relevantes”, notando que “o índice de preços do lado da produção agrícola aumentou 33,6 pontos percentuais (de 2,3% para 35,9%), do lado da indústria alimentar aumentou 18,4 pontos percentuais (evoluiu de 13,3% para 31,7%) e o índice de preços dos produtos alimentares na distribuição/retalho alimentar aumentou 16,2 pontos percentuais (passou de 3,7% para 19,9%), sempre inferior ao da indústria alimentar em cerca de 10 pontos percentuais”.

É uma evidência que os preços estão a aumentar em toda a cadeia de valor. A questão está em perceber se, como o Governo questiona, estará a haver especulação dos preços por via do aumento considerável das margens de lucro das empresas.

Um alvo recorrente destas críticas são as empresas de energia, como a EDP e a Galp Energia. Mas mesmo nestes casos, apesar de as vendas e dos lucros terem subido consideravelmente no último ano, as contas de ambas as empresas mostram que também as suas margens de lucro não aumentaram. Pelo contrário, caíram.

Segundo as contas anuais da EDP divulgadas a 1 de março, a margem EBITDA da elétrica foi de 21,9% em 2022 contra uma margem de lucro de 24,8% em 2021 e 31,7% em 2020.

As contas da Galp, apresentadas há um mês, revelam também uma queda (se bem que ligeira) da margem de lucro no último ano, com a margem EBITDA a cifrar-se em 14,3% em 2022 face a 14,4% em 2021.

Restam as contas dos produtores. E, neste grupo, olhando para as contas dos maiores players da indústria como a Nestlé, a Unilever e a Procter & Gamble (P&G), verifica-se também que as suas margens também caíram.

A Unilever, por exemplo, que tanto comercializa bens alimentares como bens de higiene, fechou as contas de 2022 com uma margem de lucro de 19%, menos 3 pontos percentuais face aos 22% que tinha em 2021. O mesmo sucede com a P&G, que além de baixar a margem EBITDA de 28% para 26%, baixou também a margem bruta de 51,4% para 47,6%. E o mesmo sucedeu com a Nestlé, que fechou as contas do ano passado com uma margem de lucro de 20,4% face a 21,2% em 2021.

Fica apenas a faltar nesta equação o Estado, que atua no mercado através da carga fiscal que aplica sobre os bens de consumo através do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA). E de todos os intervenientes na cadeia de valor, o Estado foi o único que não fez qualquer alteração na sua margem de lucro: não baixou nem reviu o IVA sobre os bens alimentares básicos, como fez Espanha, nem parece ter intenção de o fazer. E o resultado da inação por parte do Estado é bem visível nas suas contas.

Segundo os últimos dados da execução orçamental, publicados pela Direção-Geral do Orçamento, a receita fiscal arrecadada pelo Estado em 2022 aumentou 11,6% para mais de 58,5 mil milhões de euros. No entanto, a receita gerada com a cobrança do IVA no último ano disparou 18,5%.

Nos últimos 10 anos que não se assistia a um desfasamento tão grande entre o crescimento da receita fiscal e o crescimento da receita gerada com a cobrança do IVA. E tudo isto aconteceu com o consumo privado a registar um crescimento de apenas 5,9% (segundo projeções do Banco de Portugal), cerca de um terço do aumento da taxa de crescimento da receita arrecadada em IVA.

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