Os meninos da academia cresceram, criaram laços e querem ganhar o mundo

10 dez 2022, 10:30
João Félix festeja o 2-1 no Portugal-Gana

João Félix e Dalot começaram a jogar juntos com nove anos, Vitinha e Diogo Costa são amigos desde oito, Bernardo Silva, Cancelo e Ricardo Horta estiveram sempre lá nos bons e nos maus momentos. A Seleção é hoje o ponto de encontro de jogadores de gerações diferentes que cresceram juntos e, muitas vezes, até aprenderam a ser homens debaixo do mesmo teto. Quem os conhece diz que estes laços são fortes e fazem a diferença nos momentos mais difíceis.

João Félix explicou a subida de rendimento na seleção, relativamente ao que está a fazer no At. Madrid, com as relações que construiu no interior do grupo.

«Estou com jogadores que conheço há muito tempo, por exemplo já jogo com o Dalot desde os nove anos. É normal entendermo-nos melhor e haver mais confiança.»

Ora esta frase de João Félix tem o condão de chamar a atenção para um facto que até podia passar despercebido: esta seleção junta vários jogadores que cresceram juntos. São os filhos das academias de Sporting, Benfica e FC Porto, muitos deles partilharam até as residências.

É o caso do próprio João Félix, que cresceu com Diogo Dalot e Diogo Costa, viveu com Gonçalo Ramos no Seixal, jogou com Ruben Dias no Benfica, Vitinha no FC Porto e Rafael Leão nas seleções jovens.

Já Bernardo Silva, João Cancelo e Ricardo Horta cresceram juntos na mesma equipa do Benfica, construindo uma relação que vem desde aí.

«O Bernardo Silva e o Cancelo desde muito novos que mantêm uma união muito forte. Todos nós sabemos do caso familiar que o João Cancelo viveu e lembro-me que na altura viviam como irmãos: onde estava um, estava o outro», conta Rui Caniço, antigo colega no Benfica.

«Notámos que eles se diferenciavam por isso, pela ligação que mantinham desde pequenos. Talvez desde os 12 ou 13 anos que há esta grande amizade entre eles.»

Para João Brandão, adjunto de Luís Castro no Botafogo e durante muito anos treinador da formação do FC Porto, esta é uma geração especial pelos laços que foi construindo ao longo do crescimento e esses laços tornam-se decisivos nesta altura de uma grande competição.

«É um pormenor decisivo, até porque o contexto seleção é diferente. Os treinadores falam muitas vezes da dificuldade em trabalhar automatismos, por falta de tempo e de treino. O facto de eles se conhecerem há muito tempo e de terem uma identificação grande entre eles acelera o processo de adaptação e o processo de assimilição de novas dinâmicas.»

«É uma seleção de jogadores que andaram juntos em Alcochete, no Seixal ou no Olival»

Luís Dias foi coordenador da formação do Sporting, trabalhou com todos os jogadores da Seleção Nacional que cresceram no clube, de Cristiano Ronaldo a Nuno Mendes, de Rui Patrício a Rafael Leão, e acrescenta que a amizade é determinante num Mundial.

«Esta relação afetiva mais forte pode ser decisiva nesta altura a eliminar, porque nos momentos mais difíceis os laços fortes é que permitem ultrapassar os problemas.»

Luís Dias recorda que, mesmo sendo de gerações diferentes, muitos jogadores partilharam a juventude. Rui Patrício e Cristiano Ronaldo, por exemplo, viveram juntos em Alvalade, o mesmo Rui Patrício viveu depois com João Mário na Academia, João Mário viveu com Rafael Leão e Rafael Leão viveu com Nuno Mendes.

«João Mário e William Carvalho também tiveram uma formação muito próxima na Academia e acabaram por ter um crescimento paralelo. É uma seleção de jogadores que, mesmo não sendo do mesmo ano, andaram juntos em Alcochete, no Seixal ou no Olival», frisa.

«Depois há outro fator importante: eles quase todos fizeram as seleções jovens. Por isso, mesmo sendo de anos diferentes, tiveram esse fio condutor, porque se cruzavam muitas vezes nas seleções e isso permite chegar à Seleção AA tendo uma grande identificação e comunhão de princípios com a realidade da Federação, dos diretores e das metodologias de treino. »

João Brandão acompanhou por dentro do FC Porto todo este processo de crescimento das várias gerações que agora se encontram no Qatar e assina por baixo o que refere Luís Días.

Para o antigo treinador da formação portista, o passado nas seleções jovens é um detalhe decisivo. E acontece por mérito dos clubes, que trabalham cada vez melhor a formação e prometem continuar a desenvolver um talento mais identificado com a Seleção Nacional.

«Eles acabam por jogar juntos nas várias seleções jovens porque os três grandes aumentaram a sua rede de propeção, têm os melhores jogadores nacionais mais cedo e isso permite que a Federação tenha também acesso aos melhores a jogar juntos muito cedo», revela.

«Quanto mais cedo os talentos forem captados pelos três grandes, mais cedo a Federação começa a juntá-los e mais cedo eles desenvolvem esses automatismos próprios de estar no ambiente Seleção Nacional, o que tem reflexo no sucesso de Portugal em vários escalões. Se calhar antigamente andavam dispersos por mais clubes e não entravam no radar das seleções jovens. Estando nos grandes clubes, permitem que as seleções os juntem mais cedo e mais cedo vão trabalhando o processo de identificação.»

«A espinha dorsal da seleção agora está na própria seleção: nas suas equipas jovens»

João Brandão faz até um paralelo curioso. Antigamente era normal as seleções de maior sucesso serem aquelas que tinham a matriz de um clube. Portugal no Euro 2004, por exemplo, tinha a espinha dorsal do FC Porto campeão europeu. Da mesma forma, a Espanha que ganhou tudo na última década tinha a espinha dorsal do Barcelona.

Agora, e provavelmente no futuro, a espinha dorsal da seleção nacional estará na própria seleção: no tempo de crescimento junto nas equipas nacionais jovens.

«O que se nota agora é que temos jogadores formados em vários clubes, cujo denominador comum são as seleções jovens e o tempo de crescimento junto nessas seleções.»

Fábio Rebelo, por exemplo, jogou no Benfica com Bernardo Silva, João Cancelo e Ricardo Horta, também foi algumas vezes chamado às seleções jovens e lembra-se do ambiente que essas experiências na equipa nacional criavam entre os jogadores.

«O Bernardo Silva sempre foi um jogador muito acarinhado por todos, tem a ver com a personalidade dele. Quando às vezes vejo que no Man. City gostam muito dele por causa da personalidade e lembro-me que isso já era evidente na altura. Muitas vezes quando somos jovens, os jogadores mais populares são os titulares. São desses que os colegas gostam mais. O Bernardo Silva não era o melhor, acho que só deu o salto físico nos juniores, mas mesmo assim era o centro do grupo, o jogador mais popular», recorda.

«Nós chamávamos-lhe Cabeças, acho que o Cancelo ainda agora lhe chama isso. E lembro-me que ele e o Ricardo Horta passavam muito tempo juntos, mesmo fora dos treinos.»

Rui Caniço, atualmente com 27 anos e a jogar no Benavente, também jogou com Bernardo, Cancelo ou Ricardo Horta. Mas  jogou ainda com Gonçalo Guedes, que podia perfeitamente estar no Qatar, e lembra-se das viagens que faziam juntos desde o Ribatejo até ao Seixal.

«O Gonçalo Guedes fazia parte da minha equipa e apanhávamos o Bernardo, o Cancelo e o Horta nas épocas de transição. Por exemplo, nós éramos juvenis de primeiro ano e eles eram juvenis de segundo. O Guedes é da minha zona e todos os dias fazíamos a viagem para o Seixal, ele vinha muitas vezes comigo. Depois foi-nos proposto ficar no Benfica Campus, o Guedes optou por ficar, eu não, porque o meu pai fazia questão de me levar todos os dias.»

Nas seleções jovens conheceu André Silva, por exemplo, e nos treinos no Benfica conheceu Ruben Dias. Conta que as relações de amizade que nasceram entre os jogadores são normais, até porque cresceram juntos, em percursos desportivos que caminharam lado a lado.

Ao recordar Ruben Dias não consegue evitar um sorriso, aliás.

«Ele era um ano mais novo, mas treinava com a nossa equipa, até porque andava muitas vezes à frente da idade dele. Desde muito novo que ele tem uma autoridade natural. Quando ia treinar connosco, e até mesmo em jogos-treino, tinha muito essa postura, aquela voz forte, e não nós gostávamos disso, porque ele era mais novo do que nós», sorri.

«É curioso que ele já contou que teve algumas dificuldades quando chegou ao plantel sénior, por exemplo com o Luisão, porque mantinha esse estilo de liderança, sempre a dar indicações, e claro que os mais velhos queriam pô-lo no lugar.»

«Lembro-me vagamente também do João Félix e do Gonçalo Ramos. Eu estava no Benfica Campus e lembro-me de falarem deles, porque já na altura faziam alguma diferença.»

É este grupo de jogadores que cruza gerações e clubes, mas tem vários pontos de contacto. Amizades que vêm da infância. João Félix e Diogo Dalot já se conhecem desde os nove anos. Vitinha e Diogo Costa começaram a ser amigos com oito. João Cancelo, Bernardo Silva e Ricardo Horta apoiaram-se nos piores momentos (e nos melhores também, claro). Gonçalo Ramos chegou ao Seixal pouco antes de João Félix e com ele aprendeu a viver sem os pais.

Quase todos eles têm passado nas seleções jovens. De muitos anos, muitas aventuras, muitos sonhos e aprendizagens. Eles são, no fim de contas, os filhos do Olival, do Seixal e de Alcochete.

São os meninos da academia. Cresceram, criaram laços e querem ganhar o mundo.

 

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