Na rua do Paraíso, a poucos passos da Igreja da Lapa, as instalações abriram as portas pela primeira vez a 28 de junho de 2021, evocando Stonewall, em 1969, e o Dia Internacional do Orgulho LGBT
A Livraria Aberta celebrou, na terça-feira, um ano desde que abriu as portas à cidade do Porto enquanto espaço ‘queer’ “sem julgamento em que as pessoas podem entrar como são, como querem”.
“Essa ideia de um espaço sem julgamento, em que as pessoas podem entrar como são, como querem, e não sentem que têm de esconder alguma coisa, ou parafrasear alguma coisa. Dou sempre este exemplo: quando as pessoas nos fazem reservas de livros, e não podem elas próprias vir buscar... Um menino disse-nos: ‘O meu namorado vai aí buscar’. Será que numa outra cadeia de livreiros teria dito isto e não um amigo?”, resume, em entrevista à Lusa, o responsável da livraria Ricardo Braun.
Braun tem trabalhado em teatro e cinema e chegou ao projeto ao lado do namorado, Paulo Brás, formado em literatura e com experiência no campo da produção cultural.
Os dois deram corpo à possibilidade “de algo tão simples poder ser dito tão abertamente”, como a de um namorado de uma pessoa do mesmo sexo poder ir buscar uma encomenda.
“No meio das grandes lutas, são pequenas conquistas”, acrescenta Ricardo Braun.
Na rua do Paraíso, a poucos passos da Igreja da Lapa, as instalações abriram as portas pela primeira vez a 28 de junho de 2021, evocando Stonewall, em 1969, e o Dia Internacional do Orgulho LGBT.
Contudo, a pandemia de covid-19, que até foi terreno fértil para a ideia ser concretizada, acabou por limitar a inauguração e o conceito em torno de programação, encontro e partilha que procuravam para o espaço, razão pela qual agora se preparam para uma “reinauguração”, com uma semana de programação em pleno 'mês Pride'.
“Queríamos criar um espaço dos dois, onde pudéssemos continuar outros projetos que temos. Porque isto foi pensado a meio da pandemia. A preocupação primeira foi criar uma coisa que fosse minimamente sustentável. (...) Neste momento, ainda não é inteiramente sustentável, mas continuamos a trabalhar”, refere Paulo Brás.
Ao mesmo tempo, “apesar de não haver um grande desejo verbalizado de um espaço destes”, procuravam ‘atacar’ a falta de “espaços ‘queer’ diurnos”, em que as pessoas se possam encontrar durante o dia, reforça Ricardo Braun.
“Um conceito lá de fora que se chamam ‘sober spaces’. Que é que tu não tens de ter um espaço para consumir álcool para teres de estar com pessoas ‘queer’”, comenta Paulo.
Não enfrentaram mais problemas por ser uma livraria ‘queer’ do que qualquer livraria independente por ser uma livraria independente, garantem.
A localização um pouco mais afastada do centro permitiu “crescer com alguma paz de espírito”, experimentar a seleção de livros, a comunicação e os eventos, num sítio em que não se “prega para os convertidos”.
“Não é um sítio turístico, é uma rua de trabalho, com as suas próprias dinâmicas. Os senhores das obras, a senhora das obras, a florista, a senhora do café... Nós é que estamos aqui de novo, tivemos de nos adaptar à rua, estamos a trazer pessoas de propósito à rua, a apoiar outros negócios, como outros vão lá e descobrem a livraria. Também me agrada que o senhor de 80 anos do prédio em frente venha espreitar a montra, e a montra é diferente, não conhece os autores. Sentimos que estamos a fazer alguma coisa, não sabemos bem o quê”, analisa Paulo Brás.
Um espaço “poroso”, aberto a artistas e outras pessoas que queiram partilhar o local, de troca de referências e conversa, é “muito importante”, assim como a vontade de lançar mais eventos, continuar a investir na secção infantojuvenil e intensificar o trabalho em rede com a comunidade e outros organismos culturais.
“Temos no Porto uma grande comunidade, mais nas áreas das artes performativas e visuais, uma comunidade alargada. Do ponto de vista literário, nunca tivemos nada especificamente ‘queer’. (...) Não criámos isto para suprir uma lacuna. Acho que vem do nosso trabalho. Estudando literatura, eu já estudava o erotismo, a representação da sexualidade na literatura, o exílio. O Ricardo, nos espetáculos que fazia, já tratava autores mais marginais”, explica Paulo Brás.
Agora, um ano volvido, parte da programação do primeiro aniversário é mesmo uma “reinauguração”, na terça-feira, para “um abraço” sem limitações de lotação ou outras, aproximando o espaço da sua vocação de incluir e partilhar.
A artista visual norte-americana Kate Rhoades, que esteve em residência no Porto, em Campanhã, estará na livraria na quarta-feira, pelas 18:00, para falar do trabalho desenvolvido em busca da população ‘queer’ mais velha, “do apagamento das vidas LGBT na terceira idade”, “e, sobretudo, se percebeu onde encontrar as lésbicas do Porto”.
Na sexta-feira, Amândio Reis e Daniel Ferreira apresentam “uma troca de leituras e interpretações mais ou menos ‘queer’ de textos mais ou menos desviantes em relação a normas e expectativas que variam caso a caso”.
No sábado, pelas 18:00, é inaugurada a exposição “Boys Apetite”, de Miguel Flor, sobre “o desejo pelo sabor da juventude, o corpo masculino e as suas expressões mais espontâneas”.
Entre esta segunda-feira e 1 de agosto, há uma “não-aula”, uma série de sessões informais moderadas por Paulo Brás, pelas 18:00 das segundas-feiras, sobre referências LGBTQ na literatura portuguesa, que Paulo Brás assumiu quase como “um dado adquirido”.
“Essas conversas vão ser moderadas por mim e a ideia é eu trazer para a mesa cópias e excertos, [que] lemos e comentamos em conjunto. Não sou professor, e depois, porque eu venho inicialmente desse contexto mais académico, de comunicações, e não sinto que isso proporcione um diálogo. Até porque eu não sei quem vem a essas conversas. Posso estar a falar do António Botto e está aqui um 'superfã' do Botto e que quer falar sobre ele”, explica Pedro Brás.
A programação é mais focada na comunidade LGBT, mas também há eventos planeados para julho ligados à questão da Palestina e aos estudos pós-coloniais, em linha com a seleção abrangente, que vai de Virginia Woolf e Jorge de Sena e outros nomes consagrados, a autores ligados às questões coloniais, ao feminismo e outros temas interseccionais, que serve tanto de proteção como para agregar comunidades num mesmo projeto.
Livraria Aberta quer ajudar a resgatar a história ‘queer’ em Portugal
A Livraria Aberta usa a curadoria de livros e avança para a edição própria para resgatar a história 'queer' em Portugal e "fixar conhecimento”.
Em entrevista à agência Lusa, a propósito do primeiro aniversário, os criadores e gestores da livraria explicam a vontade de entrar no campo da edição e também como “não há ainda uma grande preocupação em Portugal em escrever a história ‘queer’”, defende o primeiro.
“Nem há muitos livros publicados, ou os que existem esgotam e não são reeditados. Acontecem colóquios e as atas não são publicadas. O conhecimento não se fixa, parece que estamos sempre a começar do zero. Isto cria uma ideia geral de que ‘ah, os autores não existiram’”, acrescenta.
Com um catálogo “bastante abrangente” na livraria, sita na Rua do Paraíso, no Porto, o seu universo aborda questões não só do espectro LGBT mas também com “uma preocupação interseccional de ter textos feministas, narrativas raciais e outro tipo de exclusões”.
Para o movimento LGBT no país, “é preciso é haver conhecimento, investigação”, um trabalho que fazem, pela livraria, ao ir às editoras encontrar os livros que lá estão, e que “noutro sítio se calhar ficam perdidos”, encontrando estantes de onde não saem “após três meses de exposição”, com outro “tempo de vida”.
“Mesmo da parte das editoras que vão lançando coisas que se encaixam no nosso catálogo, se calhar há menos medo, ou pudor, em que as sinopses já levantem ou assumam que os livros falem dessas questões”, lembra Ricardo Braun.
As edições ligadas ao tema sofrem de um “código”, alerta, em que não se diz “que as personagens são LGBT, fala-se de amores proibidos ou tendências desviantes”, uma “maneira muito críptica de falar das coisas para não alienar ninguém”.
As editoras mais independentes, completa Paulo Brás, já criam “um diálogo”, seja a perguntar por livros especificamente ‘queer’ que ainda não estão publicados em português, num país sem editoras em papel especificamente dedicadas.
“Os próprios distribuidores foram percebendo que os livros LGBT não são só os livros com os meninos nus na capa a namorar, ou com LGBT na sinopse. Não são só esses. Um caso muito flagrante: na poesia, é preciso conhecer a obra, e por vezes a vida do poeta, para saber que o livro pode estar cá”, refere Paulo Brás.
A possibilidade de editar em nome próprio está “prevista desde o início”, mas ainda falta “dinheiro para isso”.
A sustentabilidade é a prioridade antes de assumirem esse risco, com o qual querem “suprir lacunas no catálogo”, e aplicar o conhecimento que têm para acrescentar e não duplicar.
Editar é para poder “contribuir para fazer história” do movimento no país, “para mostrar que aquelas coisas existiam”, que “tiveram o seu impacto” e trazê-las de volta, contornando a dificuldade da falta de acesso quando algumas obras – ou autores – esgotam.
“Não tiramos da mesa e percebemos a importância de também ajudar de alguma maneira autores ‘queer’ a tentar publicar sem conseguir. Há áreas pouco exploradas. Um autor trans português? Há poucas edições”, acrescenta Paulo Brás.
Para a frente, numa fase de primeiro aniversário, além da edição, é “importante que as pessoas percebam que a livraria tem de ser sustentável”, refere Paulo Brás, para que não corra o risco de ser “mais um projeto que dura dois ou três anos e desaparece”.
“Além disso, queremos intensificar a questão da programação, porque sabemos que são sempre momentos de cruzamento de muitas pessoas, e é importante para o ambiente que queremos na livraria”, acrescenta Paulo.
Para Ricardo, há pontes com outros agentes culturais e trabalho em rede que pode ser intensificado, e o espaço infantojuvenil, demarcado do resto da livraria, continuará a ser uma aposta para que livros infantis dedicados à temática possam “facilitar a conversa”.
“Para que pais, tios, avós, possam falar descomplicadamente destas coisas às crianças. O facto de virem cá, porque querem falar de algo à criança da família é bom, é ótimo”, acrescenta.