Quem são e como foram treinados os jovens e ativistas que querem bloquear o Porto de Sines

13 mai 2023, 08:00
Protesto junto à refinaria de Sines

João Camargo, Sinan Eden, Teresa Cintra, Jade Lebre e Dinis Costa são cinco das ativistas que garantem não desistir de lutar contra a crise climática. Para isso, participaram em formações onde são dadas as táticas para lidar com a polícia e onde têm acesso a conselhos sobre a melhor estratégia para agir em ações de protesto como a que este sábado está prevista para a maior entrada de gás em Portugal

Numa sala no antigo quartel militar da GNR, em Santa Cantaria, seis homens e três mulheres, entre os 20 e os 50 anos, ouvem atentamente as instruções de dois formadores. Estão todos ali, naquele fim de tarde de 20 abril, a preparar com todo o detalhe a estratégia e as manobras a aplicar na ação de protesto deste sábado, 13 maio, no Porto de Sines, onde pretendem impedir a entrada de gás em defesa do ambiente. A ação está prevista ainda para o período da manhã e os organizadores garantem que esperam juntar centenas de pessoas. Tudo foi preparado com rigor e os participantes treinados com minúcia para garantir que a iniciativa corre como pretendem.

Naquela tarde, e ao fim de duas horas a explicar como tudo se deve processar neste protesto, um dos dois homens que está a liderar a formação, a que a CNN Portugal assistiu, informa: “Agora vamos lá para fora”. Objetivo: aprender a reagir perante uma intervenção policial numa ação de massas, como a que estavam a planear. O treino, feito na rua, consiste em aprender a romper bloqueios policiais, a ser retirado nos braços dos agentes e evitar ferimentos.

A comandar está Sinan Eden, um turco de nacionalidade portuguesa, que é naquele dia o formador oficial, e João Camargo, da plataforma “Parar o Gás”. Já na rua, pedem que um dos presentes se dê como voluntário. Um dos homens senta-se no chão e mandam-no, então, colocar a cabeça entre os joelhos e os braços sobre os mesmos. “Esta é a melhor posição para evitar ferimentos, quando os agentes decidem retirar as pessoas do local”, explicam Sinan Eden e João Camargo, enquanto assumem, por instantes, o papel de polícias, levantando o voluntário, um de cada lado, entrelaçando um braço entre cada um dos membros superiores do voluntário no papel de manifestante. Treinam, depois, reações para várias hipóteses, como a de os agentes arrastarem os manifestantes numa posição vertical. Nesse caso, conta o formador devem deixar o corpo "morto", sem resistir ao movimento. E devem ter algo sempre em mente, avisam: "Se houver câmaras, sempre a olhar para elas".

Segue-se o treino para furar bloqueios policiais e João Camargo lembra: "Contornaremos pacificamente qualquer bloqueio de forças de segurança ou obstáculos".

João Camargo em entrevista na CNN Portugal, em novembro de 2022.

Ao longo dos últimos meses, ocorreram em Lisboa, Porto e Coimbra mais de 20 formações como esta. Ao todo foram treinadas mais de 200 pessoas, em regra com idades entre os 18 e os 30 anos, e a maioria deverá marcar presença este sábado em Sines onde dizem estar para defender o planeta da crise climática.

O propósito daquelas formações foi transmitir conhecimentos aos estreantes em ações de massas com o objetivo de garantir maior segurança a todos os envolvidos, evitar contratempos e potenciar a duração do protesto, evitando a dispersão dos ativistas, como explica João Camargo, um dos responsáveis pela plataforma "Parar o Gás", organizadora do bloqueio ao Porto de Sines. "Preparamos estas formações para as pessoas saberem o que vão fazer nos vários momentos da ação, para não serem apanhadas de surpresa, para conseguirem conceber cenários e para terem maior capacidade de ação."

João Camargo, de 40 anos, tem um mestrado em alterações climáticas e é autor de vários livros sobre a temática. Há cerca de dez anos, passou da teoria à prática e juntou-se a estas ações de ativismo. Conta que já foi identificado, detido e até condenado como resultado de alguns protestos, mas o receio e o nervosismo antes de uma ação nunca desaparecem: "Há um grande número de imponderáveis que estão sempre presentes. Nunca sabemos exatamente o que vamos encontrar”, diz. “Tenho receios, naturalmente. Tenho uma vida, tenho uma família." Para este sábado, João espera uma moldura humana com várias centenas de cabeças. Prefere não arriscar um número, mas acredita que vão as pessoas necessária para "cumprir a ação", lembrando que as manifestações das últimas semanas - como as das duas ativistas que se barricaram em greve de fome na entra da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa - contribuíram "para mais gente estar atenta e inscrever-se no bloqueio ao Porto de Sines".

A greve de fome

As jovens a que João Camargo se refere são Teresa Cintra e Jade Lebre. Têm 22 e 19 anos, respetivamente, são ambas estudantes do segundo ano de Psicologia na Universidade de Lisboa e pertencem ao grupo de ativistas "Fim ao Fóssil: Ocupa!", regularmente, conhecido como "as Ocupas". 

Foram as protagonistas de um protesto na última semana, que começaram na terça-feira, às 6:00, quando se barricaram na entrada principal daquela faculdade e deram início a uma greve de fome que ameaçaram só terminar quando a reitoria apelasse à população para se juntar ao bloqueio do Porto de Sines. A vontade acabou por não se realizar e elas tiveram de desistir da ação por razões de saúde. A greve de fome durou cerca de 52 horas. Terminou na quinta-feira. "A mensagem passou e foi bem recebida pela sociedade. Espero que tenha dado força a mais pessoas para se juntarem a nós em Sines", disse Jade Lebre à CNN Portugal já nesta sexta-feira, dia 12 maio.

Quando na quarta-feira estavam há mais de 36 horas sem comer qualquer alimento, Teresa e Jade explicaram à CNN Portugal porque decidiram avançar para aquela forma de protesto: "Tínhamos de escalar, bloquear de alguma forma a Faculdade e obrigar as pessoas que se cruzassem connosco a olharem para o problema sem que o pudessem ignorar", detalhou Teresa, que nesse dia comemorava o 22.º aniversário. A fraqueza e o cansaço já se faziam notar nas momentâneas falhas de raciocínio durante o discurso. Durante as perguntas e respostas, o INEM chegou ao local para avaliar o estado de saúde das jovens, que mostraram relutância em desmontar a barricada. Horas depois, chegou às redações um comunicado do grupo ativista que dava conta que os profissionais de saúde detetaram "níveis preocupantes de glicémia" em ambas as jovens.

Teresa Cintra foi uma das ativista que esteve cerca de 52 horas em greve de fome. (direitos reservados)

Teresa Cintra classificava esta ação como "a primeira grande obra ativista" do seu currículo. A estudante confessou que "era uma novata" até ter visto colegas a serem "arrastadas pela polícia na Faculdade de Letras". "Aí decidi que chegou a minha vez: ‘também tenho de tomar ação’", relembra a jovem ativista, que caracterizou o que sente a cada protesto: "Há sempre receio, mas toda a ansiedade e receio que sinto em fazer estas ações, por exemplo, ao entrar neste espaço que é bastante claustrofóbico ou o medo da polícia, é mínimo face ao receio que sinto ao olhar para o futuro se continuarmos com as políticas que temos.  Portanto, há receio, sim, mas eu estou disposta a viver esse receio  se isso for a mudança".

Jade Lebre, de 19 anos, também passou as mesmas horas sem comer. Conta que ainda não sabe o que quer ser no futuro, mas sente que vai passar pela psicologia clínica. Sentiu-se "fraca, com tremuras, dores de cabeça e com sintomas semelhantes a uma febre, mas a estudante de Psicologia não se arrependeu. Garante que os danos emocionais e físicos que sentiu eram mínimos, quando comparados com a “ansiedade e a raiva que tem em relação à inação do governo e à crise climática”.

Depois de 52 horas barricada e em greve de fome na entrada da Faculdade de Psicologia, da Universidade de Lisboa, Jade Lebre destaca o sentimento de missão cumprida (direitos reservados)

Jade esteve presente numa ação de protesto, em novembro de 2022, que passou por invadir a Ordem dos Contabilista. Nessa altura, recorda, viu “jovens a terem de ser assistidos depois da intervenção policial”. Um deles era menor, tal como muitos outros de várias escolas secundárias que são presença recorrente nas manifestações e para quem Jade não tem mais do que elogios: "Existe um sentimento de proteção, mas de admiração também, eles [os mais novos] têm resultados incríveis e estamos sempre a aprender algo".

"Um pequeno sacrifício que temos de fazer pelo nosso futuro"

Um destes casos é Dinis Costa. Tem 16 anos, mas garante que já foi a "vários protestos e a bastantes manifestações". É estudante no Liceu Camões, já "ocupou" a escola duas vezes e, à CNN Portugal, explica a motivação: "Acho que é necessário, porque o meu futuro não está garantido se não o fizer".

Dinis já tinha tudo planeado para rumar a Sines, este sábado, juntamente com alguns amigos, mas um imprevisto de última hora trocou-lhe as voltas. Este adolescente refere que já viu amigos serem detidos em protestos. "Um pequeno sacrifício que temos de fazer pelo nosso futuro", diz , garantindo  que “muitas vezes, a polícia usa força que não deve e já feriu amigos” seus.

"Tenho um imenso receio como qualquer pessoa. Toda a gente tem. Mas, também tenho um medo muito grande de não conseguir ter um resto de vida sossegado, um planeta sem estar cheio de problemas", explica Dinis, lembrando que os pais o apoiam, mas que "gostam sempre de perceber bem como é que as coisas vão funcionar". Para este sábado, o jovem só tem um desejo: "Espero que não seja só mais uma, espero que seja a maior, mas sei que isso vai fazer alguma diferença na reação da polícia".

Dinis Costa em cima do portão do Liceu Camões, durante uma das ocupações dos estudantes (direitos reservados)

Apenas com 16 anos, Dinis diz ter consciência que, por vezes, estas ações não correm como previsto. Jade e Teresa também o sabem e, por isso mesmo, participaram em formações, como a que a CNN Portugal assistiu no antigo quartel da GNR e antes de entrar para este mundo de ativismo e ações de massa.

"Participei e adorei, porque junta a teoria à prática. Eles explicam como é que se tomam ações consensuais num curto espaço de tempo, algo que acho que é super importante para garantir que estamos a tomar as decisões que o grupo todo quer tomar e não deixamos pessoas de parte. E ao mesmo tempo, sinto que é um espaço super inclusivo. Recomendo a toda a gente ir às formações e a ir ao Porto de Sines connosco", diz Teresa.

As formações em ação de massas

Estas formações não são apenas os exercícios sobre como atuar no terreno perante a ação polícia. É também explicado em que consiste a desobediência civil e porque, em determinadas circunstâncias, é necessária. Passam-se conhecimentos de base legal sobre as consequências jurídicas que podem advir de cada ação, partilha-se o Manual de Apoio Legal e pede-se aos participantes que formem grupos de afinidade, compostos por entre cinco a dez pessoas e cujo propósito é garantir que ninguém fica isolado durante uma manifestação.

A formação no Largo Residências foi dada por Sinan Eden, membro da Fermente, um colectivo de formações para os movimentos sociais. Este grupo de formadores foi constituído por um pequeno núcleo de ativistas, tendo por base a ideia de "construir em cima da experiência, aprendendo com os sucessos e erros".

"A formação em ações de massas é basicamente um ato de desmistificação do que é que é uma ação. Dizer que toda a gente consegue fazer e depois apresentar umas ferramentas para que as pessoas se sintam um pouco mais confortáveis", explica o formador.

Sinan nasceu na Turquia, chegou a Portugal em 2011 e já tem nacionalidade portuguesa. É um dos rostos mais recorrentes nas ações de protesto em território nacional. Lembra que a primeira vez que participou foi ainda no tempo da Troika, explicando que a esta se seguiram muitas mais. Em determinados contextos, afirma, simplesmente não consegue ficar em casa: "Um dos melhores exemplos que eu tenho para isso foi o bombardeamento de Kobani, em 2014, quando eu organizei uma concentração. No Rossio, abrimos uma faixa, tiramos umas fotos e lemos um texto, um apelo internacional. Lemos aquilo e fomos para casa. Só não podia não fazer nada, porque eu perdi um amigo da faculdade lá. Foi morto".

Contudo, por mais anos e manifestações que faça Sinan Eden garante que há coisas que nunca mudam: as ansiedades e os medos. "A minha coragem está dentro do meu medo, não é ao lado do meu medo, não é em vez do meu medo. Eu tenho medo e dentro dele eu encontro a coragem. É uma luta dos medos dentro de mim que me fazem ficar lá. Eu nunca tenho medo da polícia, ou do Estado, ou do juiz, sei lá, tenho medo das consequências". 

João Camargo, que também assumiu o papel de formador ao lado de Sinan Eden durante toda a formação, explica que aquelas três horas servem também para as pessoas se sentirem mais confiantes e saberem no que estão a entrar. Não descuidando a imprevisibilidade inerente a cada ação, o membro do "Parar o Gás" assegura que "as pessoas que sabem exatamente o que estão a fazer são as que vão estar em locais onde o risco é maior". Já quem aparecer sem aviso prévio no Porto de Sines acrescenta, terá lugar nas zonas periféricas do protesto, de modo a garantir a segurança de todos. "Queremos que toda a gente esteja em segurança ", explica João Camargo.

No meio do protesto vão estar alguns grupos de afinidades que são pequenos núcleos - de cinco a dez pessoas -, escolhidos pelos participantes e que devem andar sempre juntos. Esta prática torna toda a ação num processo mais hierárquico e democrático, porque cada decisão é tomada por estes grupos. "Os grupos de afinidade acabam por ser a família mais pequena dentro de uma família maior de uma ação", descreve João, que explica o que os leva este sábado ao Porto de Sines: "Não estamos a agir só por desespero estamos a agir porque estamos vivos".

O “Parar o Gás”, a plataforma de ativismo a que pertence, quer o fim da entrada de gás em Portugal pelo Porto de Sines e está ciente e disposto a enfrentar as consequências socioeconómicas que isso iria representar para o País. "Muitos ativos industriais que hoje existem têm que se transformar em ativos encalhados e muitas dessas empresas, e nós sabemos isso, têm que falir", explica João, acrescentando: "Não ignoramos as contradições, mas cada euro que vai para mais indústrias fósseis é um euro que vai para o lixo, diretamente para o lixo e ao mesmo tempo cava mais a nossa cova".

Quanto ao ímpeto ativista que tem exacerbado Portugal nos últimos tempos, Camargo diz que a questão "climática não se predispõe a pequenas vitórias”. Ou seja, diz: “Ou vamos ganhar ou vamos perder".

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