Questão de identidade

14 jun 2000, 18:30

Humberto Coelho, cujas conferências de imprensa são tantas vezes redundantes e defensivas, tocou, desta feita, num ponto fundamental ao explicar a vitória portuguesa diante da Inglaterra. «Preocupamo-nos apenas com a nossa maneira de jogar, não com a do adversário. Cedo ou tarde, sabíamos que o nosso jogo ia aparecer e as hipóteses de vitória também», declarou ainda a quente, perante uma plateia de jornalistas estrangeiros rendidos à qualidade do espectáculo visto no Phillipstadion. 

Mais do que a vitória, o jogo de segunda-feira fica a marcar a mais clara afirmação de identidade feita por uma selecção portuguesa na era pós-Eusébio. Mais ainda do que em Berlim-97, onde o memorável banho de bola vermelho e verde se traduziu num empate-derrota com a Alemanha, que mais acentuou a nossa reputação de perdedores com classe. 

Ganhar aos ingleses, da forma como o foi feito, revela duas coisas: que o modelo de jogo está perfeitamente estabilizado e interiorizado pelos jogadores ¿ ficou provado que a utilização de dois médios defensivos, longe de ser uma opção conservadora e timorata, é uma condição imprescindível para a libertação dos talentos criadores de Figo, Rui Costa e João Pinto; e que, ao contrário do que acontecia há não muito tempo, os jogadores têm confiança absoluta nas virtudes do sistema e, principalmente, na sua capacidade de desequilibrar com eficácia o bloco adversário. 

Só assim se explica que, pela primeira vez em 34 anos, Portugal tenha sido capaz de dar a volta a uma situação de dois golos de desvantagem. E só assim se explica que o tenha feito com a teimosia cega de quem acredita ser assim mesmo (com passes curtos, circulações demoradas, falsos movimentos de entrada e paciência infinta no ataque ao adversário, quase como num jogo de andebol) que se derruba uma muralha quando não se dispõe de carros de assalto. Uma selecção confiante e orgulhosa de ser como é: eis a refrescante moral do encontro de Eindhoven.  

De entre a galeria de momentos inesquecíveis que o encontro proporcionou, há um que sintetiza melhor do que qualquer outro a afirmação do «portuguese way»: foi quando, de forma quase arrogante e inconsequente, Abel Xavier, Paulo Bento e Rui Costa cozinharam em lume brando uma interminável troca de passes na direita, perante a passividade intrigada dos ingleses. Durante quase um minuto assistimos à negação de cem anos de ensinamentos que nos explicam ser necessário encontrar o caminho mais rápido e directo para a baliza. A máquina de tricotar inventada pelos três portugueses permitiu a João Pinto ganhar uma fracção de segundo ao gigante Campbell, para marcar o segundo golo. Um golo em que o movimento explosivo e a rapidez dos últimos gestos nasceram de uma lentidão deliberada, que trocou os ponteiros aos relógios ingleses. 

Se no sábado Portugal fôr capaz de manter a mesma personalidade diante de um adversário de características tão diferentes como a Roménia, estaremos por certo diante de um momento marcante na história do futebol português. Aquele em que a sua Selecção se meteu finalmente na pele de um grande, acreditando que, como o Brasil, a Alemanha, a Holanda ou a Inglaterra, é explorando a fundo os seus traços de identidade futebolística que o caminho para o sucesso se torna mais curto. E se para tal for necessário «dar de avanço», como na segunda-feira, venham daí essas abençoadas falhas defensivas...

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