A exposição “Saints, Sinners, Lovers and Fools” [Santos, Pecadores, Amantes e Tolos] destaca traços de personalidade presentes na arte renascentista - e nos perfis das redes sociais contemporâneas
O que significava tornar-se viral em pleno Renascimento? No norte da Bélgica, que passou por um crescimento socioeconómico meteórico entre os séculos XV e XVIII, isso acontecia através da arte, já que a forma como as pinturas eram encomendadas foi completamente transformada devido a uma emergente classe média-alta que buscava símbolos do seu estatuto. Em complemento, a nova tecnologia de impressão em massa disseminou as imagens por todo o lado, a um ritmo acelerado.
À medida que a região se tornava um centro da prosperidade capitalista e colonialista - tendo inclusive um importante papel no comércio de escravos levado a cabo pelos impérios português e espanhol -, as cidades de Antuérpia, Bruges e Gante viraram pólos cosmopolitas. Isto marcou um momento relevante na história da arte, levando os artistas a ganhar o estatuto de estrelas e transformando as pinturas em objetos de desejo.
“Quando alguém tem dinheiro, quer gastá-lo. E uma ótima forma de o fazer é comprando arte para as paredes da casa nova”, diz Chloé M. Pelletier, curadora da exposição “Saints, Sinners, Lovers and Fools: Three Hundred Years of Flemish Masterworks” [Santos, Pecadores, Amantes e Tolos: Trezentos Anos de Obras-Primas Flamengas], patente no Musée des beaux-arts de Montréal. A exposição apresenta 137 obras de arte deste período, bem como desenhos, esculturas e impressões. O título é uma referência aos arquétipos retratados pelos pintores Pieter Bruegel, Peter Paul Rubens e Jacob Jordaens (assim como muitos outros) que, além de demonstrarem a devoção religiosa, pintaram cenas do quotidiano - e as vaidades que essas mesmas cenas implicam.
Não é algo muito diferente daquilo que fazemos hoje quando publicamos no Instagram pedaços meticulosamente orquestrados das férias em Amalfi ou de um casamento de luxo. Naquela época, um colecionador emergente poderia, em busca da atenção do público, exibir a sua riqueza ao posar para um retrato que ostentasse triunfo e prosperidade. Vejamos, por exemplo, uma pintura de meados do século XVII de Michaelina Wautier, que mostra um homem sentado, vestido com uma camisa negra de seda, a posar em frente a uma pintura de Rubens que ele adquiriu.
Esta nova classe de colecionadores inaugurou o mercado da arte tal como o conhecemos hoje. Livres da longa tradição de criar obras a pedido de patronos religiosos ou aristocráticos, os artistas começaram a produzir pinturas por encomenda - para serem promovidas e vendidas por uma nova profissão: o negociador de arte.
As cenas daquela época situavam-se entre o divino e o mundano, desde a luminosa cena da natividade de Hans Memling, datada de cerca de 1480, à representação feita por Bruegel de uma mulher a carregar para casa o seu marido embriagada, produzida na década de 1620. A popularidade de uma cena ou tema poderia levar a que fossem criadas 10 ou mais versões diferentes - quer fossem cenas de porrada em bares ou o Menino Jesus.
À medida que uma classe cada vez mais rica procurava ilustrações alegres e bem-dispostas do quotidiano para mostrar riqueza, a presença crescente das máquinas de impressão fizeram disparar a circulação destas cativantes pinturas, desde a casa dos colecionadores até às casas das pessoas comuns, sem esquecer as ruas. Ou seja, este novo método de divulgação em massa tornou-as virais.
Stephanie Porras, historiadora de arte e autora de “The First Viral Images: Maerten de Vos, Antwerp Print, and The Early Modern Globe”, que aborda precisamente a questão destas primeiras ‘imagens virais’, conta à CNN por email que a ideia de viralidade “parece abrir uma nova maneira de pensar sobre questões que os historiadores de arte não costumavam considerar: as formas pelas quais o movimento das imagens pode ser moldado e canalizado através dos agentes que funcionam como filtros e das redes sociais” que existiam naquela altura.
Os colecionadores de arte daquela época possuíam, em média, 30 pinturas em casa, nota Chloé M. Pelletier. Um dos passatempos comuns durante as reuniões sociais daquela altura era adivinhar o pintor de uma obra, ou mesmo se o autor era o mestre ou um aprendiz.
“Eram elementos que alimentavam conversas e gargalhadas”, diz. A curadora considera o rebuliço em torno das estrelas do mundo da arte, prova de um novo estilo de vida flamengo, são um “momento inicial da cultura pop”.
A arte pela arte
O envolvimento no mundo da arte era também uma oportunidade inicial para a autopromoção e construção de uma personalidade enquanto marca. A obra “Elegant Couple in an Art Cabinet” [Casal Elegante num Atelier de Arte], pintado por volta de 1675 por Pieter Neefs, o Jovem e Gillis van Tillborch, por exemplo, mostra o casal rodeado por uma orquestração imponente da sua coleção no coração do seu palácio - os #miudosricosdorenascimento, talvez.
“Estavam interessados em mostrar os seus melhores lados para construir a melhor imagem possível”, explica Chloé M. Pelletier acerca desses influenciadores à moda antiga. Por outro lado, esses sujeitos faziam questão de sinalizar que os seus egos eram construídos com respeito pelo divino, incluindo detalhes que lembraram que eram mortais, o chamado “memento mori”. São disso exemplos uma caveira ou uma citação da Bíblia em latim, para promover a humildade e essa consciência da finitude. “Gostavam de mostrar os seus estilos de vida, mas também queriam afirmar que eram cristãos virtuosos, que sabiam que as roupas boas e as casas acabariam por desaparecer”, reforça a curadora.
Era comum que uma abordagem viral, semelhante a qualquer assunto que ganhe destaque hoje nas redes sociais, fosse alvo de ataques, desvalorizações ou mesmo de gozo. A curadora nota que as reações a pinturas acabadas de revelar incluíam comentários satíricos, ilustrações cómicas através de panfletos ou insultos em plena praça principal da cidade.
“A arte era a derradeira forma de entretenimento e de espetáculo social”, resume Pelletier.
E também havia muito humor, “se o outro lado quisesse entrar na brincadeira”, nota. Uma obra de Jan Massys, produzida por volta de 1530, mostra dois homens de sorriso despreocupado a brincar com uma tigela de papas, por exemplo. Por cima dele estão quatro ícones: a letra D, um globo, um pé e um violino.
Esses sinais constituem um quebra-cabeças para o espectador decifrar. Quando dito em voz alta em holandês, o quarteto rima “o mundo alimenta muitos tolos”, graças à semelhança naquela língua entre as palavras “pé” e “alimentar” [voet e voeden, respetivamente]. Essa frase é também o título da pintura.
Galeria em transformação
A par do glamour encenado ou dos códigos para decifrar, também as falsas informações se espalharam junto do público através destas imagens virais. Narrativas enganadoras sobre os povos indígenas, tal como o canibalismo ser comum entre os habitantes das Caraíbas, ajudaram a justificar a colonização do novo mundo. A exposição integra obras de arte que mostram esse alarmismo - incluindo um quadro do final do século XVI de Jan van der Straet que retrata o explorador italiano Amerigo Vespucci a encontrar pessoas a assar uma perna humana. Deste modo, evidencia o impacto poderoso de uma imagem assente na desinformação, seja desenvolvida por estratégias imperialistas ou, agora, pela inteligência artificial.
Hoje em dia já não estranhamos a forma como as imagens são usadas para autopromoção, assinalar virtudes ou espalhar ideias perigosas online. Contudo, na altura, esse era um território novo, já que as pinturas forneceram ao público o vocabulário visual necessário para interiorizar uma mudança rápida na paisagem social.
A disseminação mais rápida de imagens impulsionou também a abundância de conhecimento - seja ele útil, enganador ou simplesmente tolo. É algo semelhante ao fluxo contemporâneo de dados que penetra hoje em dia, sem pausas, as nossas mentes. A historiadora de arte Stephanie Porras nota uma ligação clara entre as obras de arte dessa época e as imagens virais dos nossos dias, ambas com leituras maleáveis.
“Para nós, é claro como uma imagem viral pode ser alterada, podendo afastar-se tanto do seu contexto original ao ponto em que este se torna irreconhecível”, diz. A especialista recorre a um exemplo familiar, em contraste com uma cena de devassidão mundana com 400 anos: “Basta pensarmos em todas as repetições do meme [imagem humorística] da namorada ciumenta, que vem de uma fotografia de base de dados”.