"A única liberdade está na cabeça e chama-se vontade. Se não a usamos, não somos livres", dizia Pepe Mujica. Foi guerrilheiro, esteve preso, entrou na política para defender o amor e a natureza e acabou por ser eleito presidente do Uruguai - e tornar-se um ídolo para os idealistas da esquerda em todo o mundo
“Quero dizer-vos que, na minha vida, a morte rondou-me mais do que uma vez. Desta vez, por motivos óbvios, parece-me que vem de foice em riste”, escreveu “Pepe” Mujica, num breve comunicado divulgado nas redes sociais em abril de 2024, anunciando que tinha um tumor no esófago, cujo tratamento seria dificultado por uma doença autoimune de que o antigo presidente uruguaio sofria há mais de duas décadas. “Entretanto, enquanto puder, continuarei a militância com os meus camaradas, fiel à minha forma de pensar.” Continuou assim até hoje. José Alberto "Pepe" Mujica Cordano morreu aos 89 anos.
Na juventude, Mujica lutou num movimento guerrilheiro anticapitalista e depois passou mais de uma década na prisão sob a repressiva ditadura militar que governou o Uruguai na década de 1970 e início dos anos 1980. Tinha 74 anos quando os uruguaios o elegeram presidente em 2009. Desde o início, evitou os rituais normais de poder. Recusou-se a mudar para a residência presidencial em Montevideu, preferindo permanecer na sua quinta de sempre, em Rincon del Cerro, nos arredores da capital, onde continuou a cultivar crisântemos com a sua mulher, Lucía Topolansky, ex-guerrilheira que também foi presa e depois entrou na política, como ele. Continuou a conduzir o seu velho carro, não tinha empregados, nunca usava gravata e doava quase 90% do seu salário presidencial a instituições de caridade. A sua equipa de segurança eram dois polícias à paisana estacionados numa estrada de terra. “Na vida, deve-se aprender a andar com pouca bagagem”, costumava dizer.
No Uruguai, a austeridade pessoal de Mujica fez dele um objeto de fascínio. Mas foi o seu discurso na Assembleia Geral da ONU, a 24 de setembro de 2013, que deu início a um culto global a Mujica. Ao contrário da maioria dos outros políticos, este parecia ser sincero e falava como "um de nós". Durante 45 minutos, bradou contra o capitalismo selvagem. "Sacrificámos os antigos deuses imateriais e agora ocupamos o templo do deus do mercado", disse, em espanhol. “Este deus organiza a nossa economia, a nossa política, os nossos hábitos, as nossas vidas. Parece que nascemos apenas para consumir.” "Há marketing para tudo! Há marketing para cemitérios, para serviços funerários, para maternidades, para pais, para mães, avós e tios! Tudo é negócio! O homem comum do nosso tempo vagueia entre instituições financeiras e a rotina entediante dos escritórios. Sonha com férias e liberdade. Sonha em poder pagar suas contas, até que um dia seu coração para”, vaticinou.
“Levamos uma vida de consumo e desperdício. Mas esta é uma contagem regressiva contra a natureza, contra a humanidade futura. É uma civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais, e contra as coisas mais importantes: Aventura. Solidariedade. Família. Amizade. Amor. A crise é mesmo a impotência da política. Mas, hoje, é hora de começar a lutar."
Nos meses que se seguiram, repórteres de todo o mundo, do The New York Times à Al Jazeera e até uma equipa de televisão da Coreia do Sul, viajaram até ao Uruguai para saber mais sobre este “profeta” que os recebeu na pequena cozinha que ele próprio limpava. Aqui estava um presidente que rejeitava a cultura do materialismo - “Não se deixa de ser um homem comum só porque se é presidente”, disse ao The Guardian. Na internet, multiplicavam-se os elogios ao herói do povo uruguaio. Tinha nascido o “Mito Mujica”.
De jovem revolucionário a governante amado pelo povo
José Mujica nasceu em 1935 numa família pobre de segunda geração, descendente de imigrantes bascos e da Ligúria. O seu pai, um fracassado nos negócios, morreu falido quando Mujica tinha oito anos. O pequeno Pepe teve de trabalhar numa padaria e vender flores para ajudar a família. Os políticos de esquerda locais, defensores dos mais pobres, tornaram-se as suas figuras paternas.
No final dos anos 50, o paraíso socialista erguido pelo presidente José Batlle Ordonéz começava a fraturar-se. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e da Guerra da Coreia, a procura global pelas exportações agrícolas do Uruguai caiu. Instalou-se uma inflação maciça. Impulsionados pelos movimentos de "poder para o povo" em todo o mundo, os estudantes saíram às ruas para protestar contra a situação dos trabalhadores agrícolas. O governo reprimiu os protestos, desencadeando ainda mais revoltas estudantis. Em meados dos anos 60, o Uruguai - outrora chamado de “Suíça da América do Sul”, um país tão pacifista que usava os seus poucos soldados para recolher lixo nas praias - voltou a sofrer com o derramamento de sangue.
Surgiram as guerrilhas. Os Tupamaros, que se autodenominavam assim em homenagem a um rebelde indígena peruano chamado Tupac Amaru II, inspiraram-se na revolução cubana. Mujica, agora com vinte e poucos anos, juntou-se à sua cruzada. As ações do grupo podiam ser inofensivas - como quando pintou com spray "todo mundo dança ou ninguém dança" na parede de um bar. Mas também podiam ser violentas. Os guerrilheiros bombardearam uma fábrica da Bayer em 1965 e mantiveram e torturaram reféns. Algumas pessoas temiam-nos e odiavam-nos, outros viam-nos como heróis. Mujica diria que o grupo “tentou por todos os meios evitar assassínios”, mas também reconheceu eufemisticamente os seus “desvios militares”.
Como membro do Movimiento de Liberación Nacional-Tupamaros - MLN-Tupamaros, Pepe Mujica participou da insurgência armada durante as décadas de 1960 e 1970 contra o governo de Jorge Pacheco. Baleado seis vezes pela polícia num bar, foi para a prisão e fugiu duas vezes. No final, porém, os Tupamaros contribuíram para criar uma governação de direita muito mais autoritária do que aquela contra a qual protestavam. Com o argumento de que era necessário preservar a ordem, o presidente Juan María Bordaberry instituiu em 1973 uma ditadura militar e prendeu os rebeldes para sempre. Na década seguinte, o país teve a maior taxa de encarceramento político per capita do mundo. Um em cada 500 uruguaios passou longos períodos na prisão e um em cada 50 foi interrogado pela polícia, muitas vezes também torturado.
Pepe Mujica passou 14 anos na prisão, incluindo mais de uma década em confinamento solitário, muitas vezes num buraco no chão. Durante esse período, passou mais de um ano sem tomar banho, e os seus companheiros, contou mais tarde, eram um sapo e ratos com quem dividia migalhas de pão. Os líderes dos Tupamaros temiam que a experiência estivesse a deixá-lo louco. Conta-se que ele uivava produzindo estranhos ruídos e estava obcecado em conseguir um minúsculo banheiro portátil para a sua cela. Mas após o fim da ditadura, em 1985, Mujica foi libertado e emergiu como o mais eloquente de entre eles, o sábio resistente dos Tupamaros. “Aprendi que é sempre possível começar de novo”, disse ao NYT. Em vez de alimentar o desejo de vingança, o tempo passado na prisão ensinou-o a amar: "Eu não odeio. Sabe o luxo que é não odiar?"
À medida que o grupo se reajustava à liberdade, a maioria dos seus membros queria evitar o regresso à guerra de guerrilha, embora não fosse claro qual o caminho a seguir – os direitistas ainda mantinham o controlo sobre grande parte do governo. Mujica defendeu a entrada na política partidária tradicional e organizou fóruns públicos conhecidos como “mateadas”, reuniões realizadas nas praças das aldeias com cabaças cheias de chá mate forte. Mantinha as paixões igualitárias da juventude, mas a prisão tornou-o mais filosófico. Tornou-se um político eloquente. Rapidamente conquistou seguidores entre os trabalhadores mais pobres e, em meados dos anos 90, ingressou no parlamento - para onde ia de “vespa”. Após a subida ao poder, em 2004, da Frente Ampla, uma coligação de partidos de esquerda e sociais-democratas mais centristas, foi nomeado ministro da Pecuária, Agricultura e Pescas.
Foi nesse cargo que Mujica ganhou aclamação nacional, falando em termos quase bíblicos sobre como as políticas governamentais afetavam o homem comum e defendendo um regresso aos valores tradicionais do país, com uma responsabilidade partilhada. A maior luta de Mujica como ministro da Agricultura foi garantir o acesso dos uruguaios pobres ao churrasco, o prato tradicional de costela de boi grelhada. Incapazes de comprar a carne, as classes mais baixas costumavam comer cortes mais baratos do pescoço. “O pescoço é inaceitável”, dizia Mujica. Quando se começou a vender churrasco mais acessível, as pessoas apelidaram-no de “asado del Pepe”. Uma sondagem de 2007 mostrou que ele se tinha tornado, de longe, o membro governamental mais popular do país, e foi assim que decidiu concorrer à presidência.
Em 2009, liderou com sucesso a candidatura presidencial da Frente Ampla, tornando-se um dos presidentes latino-americanos mais populares da época. A sua abordagem governamental não convencional e o seu estilo de vida despretensioso atraíram muita atenção da comunicação social. Os seus discursos públicos ganharam reconhecimento internacional graças à sua mensagem humanista como representante dos pobres e sem-terra na América Latina. A sua voz crítica a favor dos valores humanos e contra o capitalismo e a globalização, devido ao seu impacto negativo nas alterações climáticas, era ouvida em comunidades aonde outros políticos não conseguiam chegar. Tinha carisma e sabia prender as pessoas com as suas palavras.
Em 2012 na conferência Rio+20 criticou o consumismo desenfreado. “O que aconteceria a este planeta se os indianos tivessem o mesmo número de carros por família que na Alemanha?”, perguntou à audiência. “Quanto oxigénio sobraria?” Na ONU, no ano seguinte, disse aos delegados para pararem de ir a cimeiras dispendiosas que não resultam em nada. Alguns chamaram-lhe o Nelson Mandela da América Latina, recordando os seus anos de prisão. Outros viam um liberal social, que introduziu a legislação sobre canábis mais inovadora do mundo, bem como o casamento gay e o aborto legal. Principalmente, porém, ele era famoso pela maneira como vivia, mais do que pelas suas políticas efetivas.
"Vivo como penso" - o legado de Mujica
Mujica concentrou o seu discurso inaugural de 2010 no apelo a uma reforma radical das escolas do Uruguai. “Tudo o que extraímos da sociedade sai do poço da educação”, disse, mas as suas medidas nesta área acabaram por não ter os resultados esperados, como, aliás, aconteceu com tudo o resto. Num artigo publicado em 2015, no final do seu mandato presidencial, Eve Fairbanks, concluía: “É uma boa pessoa, mas não é um bom presidente”. O mito de Mujica era só mesmo um mito, concluía a jornalista, explicando que a desigualdade e a pobreza aumentaram no país durante os anos de Mujica. Isso em nada diminuiu o seu prestígio - dentro e fora de portas.
Em 2018, o documentário "El Pepe, Uma Vida Suprema" do cineasta sérvio Emir Kusturica - que o considerava "o último herói da política" - foi premiado no Festival de Veneza. Em outubro de 2020, Pepe Mujica anunciou a sua retirada da atividade política. Durante a pandemia, viveu em completa reclusão uma vez que, devido a uma doença autoimune, não pôde receber vacinas. Segundo Mujica, esta pandemia trouxe à tona o lado pior da humanidade ao acentuar o egoísmo dos países ricos e revelar a falta de solidariedade entre as pessoas.
Pepe Mujica revelou-se ainda um crítico atento das novas tecnologias e viu rapidamente como estas poderiam ser usadas pelos partidos mais extremistas. “A civilização digital tem muitas coisas maravilhosas a seu favor, porque qualquer velho imbecil agora anda por aí com uma biblioteca no bolso. Mas também deu voz e plataforma a toda a incrível estupidez que vemos agora. Isto por si só não seria o pior, mas acrescente-se a isso os muitos atores de má-fé e a tecnologia cada vez mais afinada que permite que as mensagens sejam individualizadas de acordo com os perfis das pessoas”, disse Mujica. “A pior ditadura do mundo nunca poderia sequer sonhar em ter um mecanismo que lhe permitisse entrar no subconsciente das pessoas, e o pior é que está nas mãos de empresas privadas que vendem os seus serviços. Tudo isto está a criar uma verdadeira doença na democracia representativa e não sei qual é a cura. São tantas as fontes e mecanismos em ação que produzem hiperinformação que acabam confundindo e obscurecendo o mais essencial.”
“Obviamente, tudo isto contribuiu para o aparecimento dos Trumps e dos Bolsonaros no mundo, mas também tende a desacreditar geralmente o papel da política e, em vez disso, gera uma espécie de niilismo na opinião pública que diz que tudo é igual, que toda a política é inútil”, explicou, defendendo um regresso à comunidade para contrariar a individualização fomentada pela tecnologia. “A ideologia mais prevalente hoje prega que todos devem enfrentar o mundo sozinhos. Somos ensinados que se não cuidar de si mesmo, ninguém fará isso por si, e isso multiplica exponencialmente o nível de egoísmo que carregamos dentro de nós. Concordo com a velha afirmação aristotélica de que o homem é um animal político. Ele precisa da comunidade, da sociedade, mas quando se retira, quando desconfia, quando não acredita em nada, assume também uma posição política que é venenosa para toda a sociedade."
"A vida é bela, mas gasta-se e acabamos por cair. É preciso recomeçar sempre que se cai, e, se houver raiva, transformá-la em esperança. Lutem pelo amor, não se deixem enganar pelo ódio."
“Vivo como penso”, dizia o antigo presidente. Mujica não tinha pretensões a ficar para a história: “Tenho uma árvore, uma sequóia, e lá em baixo enterrei a minha cadela, Manuela, que foi minha companheira durante 22 anos. Quando eu morrer, devem queimar-me e enterrar as cinzas lá. A vida é assim: sempre há um fim. Às vezes perguntam-me: como quer ser lembrado? Vaidade das vaidades! Amenhotep IV foi provavelmente uma pessoa importante que teve 300.000 pessoas a construir o seu túmulo durante 20 anos. Mas quem se lembra de Amenhotep IV? Talvez só algum fã de história.”
“Quero transmitir a todos os jovens que a vida é bela, mas gasta-se e acabamos por cair. É preciso recomeçar sempre que se cai, e, se houver raiva, transformá-la em esperança”, disse Mujica à imprensa uruguaia no momento em que anunciou a sua doença, deixando alguns conselhos: “Lutem pelo amor, não se deixem enganar pelo ódio. Se forem apanhados pelas drogas, não fiquem sozinhos, ninguém se salva sozinho. Peçam ajuda, lutem. A única liberdade está na cabeça e chama-se vontade. Se não a usamos, não somos livres.”