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Colunista e comentador

O ‘Rei’ Pelé e a sua mensagem, o nosso ‘Rei’ Cristiano, Messi e Maradona e um treinador-exemplo chamado… Roger Schmidt

30 dez 2022, 17:25
10.	Pelé surge de coroa e cetro, enquanto o Brasil é distinguido como vencedor do mundial de 1970. (imagem Getty)

Rui Santos escreve sobre Pelé e de uma entrevista que lhe concedeu no Japão em 1994. A partir dela, o comentador da CNN/TVI afirma que a mensagem do ‘Rei’ deve ser reflectida e dá como exemplo actual o que está a fazer Roger Schmidt na Luz, no sentido de salvar o futebol-espectáculo (como Pelé proclamava)

Maio de 1994, em Tóquio.

Estou no Japão para perceber quais eram as propostas da candidatura da ‘Terra do Sol Nascente’ ao Mundial-2002.

Visito os estádios, ando de cidade em cidade (já tinha ido no comboio-bala a Hiroshima, preparando-me para viajar até Kobe, ao encontro das instalações do FC Verdy) e a certa altura, por ocasião do 4.º Congresso do Comité Organizador do Campeonato do Mundial, dou de caras com Pelé que, nessa data, ainda não havia completado 54 anos e ainda com o inglês Bobby Charlton, outra figura mítica do futebol.

Apesar de terem estado neste certame 12 jornalistas de 9 países diferentes de todo o Mundo, e considerando a importância das relações entre o Brasil e Portugal (João Havelange era muito amigo dos portugueses e o astro-rei havia feito, recentemente, as pazes em Tobago com o então presidente da FIFA), Pelé acedeu ao meu convite para me conceder uma entrevista em exclusivo e estivemos à conversa durante quase uma hora.

Recordo com gosto a sua simpatia e disponibilidade e os seus modos amáveis e graciosos.

No Congresso, Pelé havia criticado o governo japonês por não ter concedido o visto de entrada a Maradona e, na entrevista, mostrou-se um indefectível apoiante da candidatura japonesa ao Mundial naquele país (“o futuro do futebol está no Japão”), à qual se juntaria a Coreia do Sul, e, na manifestação desse apoio, juntamente com Bobby Charlton, já havia estado na Tunísia, em vários países europeus e também em Tobago, onde tivera o já citado importante encontro com Havelange.

Na entrevista — e estamos a falar de uma conversa com 28 anos — perguntei a Pelé se, apesar da ‘explosão’ do futebol no Japão, não era preocupante o rumo que o futebol estava a tomar? O ‘Rei’ respondeu:

— No tempo do Eusébio, do Simões, do Coluna e, mais recentemente, por exemplo, com Zico, as equipas tinham 5/6 excelentes jogadores. E eram esses os jogadores que faziam o espectáculo. O futebol caminhou no sentido de potenciar as virtudes do futebol colectivo [e isso não tem problema]. Toda a gente me pergunta: mas por que razão é que, mesmo assim, os valores não aparecem ou estão a escassear? Porquê? Eu digo-lhe [aqui] a razão: muita táctica e muito dinheiro!

E mais à frente:

— Os treinadores adquirem o medo de perder e não arriscam. Para muitos técnicos, o pensamento não é 'como ganhar,’ mas em vez disso ‘como não perder’. E isso obviamente prejudica o futebol. Como se resolve isso?  Só há uma maneira: inverter essa tendência através dos escalões mais baixos.

Pelé tocou há quase 30 anos numa ferida que continua aberta:

— Infelizmente, também a esse nível alguns técnicos não estão a contribuir para o desenvolvimento do futebol-espectáculo!

No último Mundial, que Pelé conquistou, no México, em 1970, com 30 anos, muito pela forma como Mário Zagalo o recuperou depois de um tempo em que João Saldanha, já depois de ter classificado a ‘canarinha´ para esse Campeonato do Mundo, parecer disponível para não o tratar como o ‘Rei’ merecia, tendo sido rendido precisamente por Zagalo antes do certame no México ter começado; no último Mundial que Pelé conquistou, dizia, o Brasil tinha Jairzinho, Rivelino, Carlos Alberto, Clodoaldo, Gersão e Tostão, tudo craques, e a equipa fazia a apologia do futebol-espectáculo.

Lá está: de acordo com o que Pelé gostava e pretendia e de acordo com o que me disse na entrevista concedida no Japão e já aqui citada.

Curioso que, depois da frustração do Mundial de 1966, a colocar Eusébio na galeria dos notáveis-de-sempre, Pelé achava que não ia disputar mais nenhum Campeonato do Mundo, e ainda bem que não aconteceu, porque teve a oportunidade de se despedir ‘em grande’, como merecia.

A mensagem dirigida por Pelé na entrevista que me concedeu é forte e devia ser reflectida hoje por todos os treinadores e talvez seja  esta a verdadeira ‘Lei Pelé’, e não aquela que, tendo sido importante, foi formalizada no Brasil, quando o ‘Rei’ foi ministro do Desporto, entre 1995 e 1998.

Recuando a 1970, um ano antes da sua despedida da Seleção, Pelé serviu também para amenizar o clima tenso que existia no Brasil, devido à ditadura militar que controlou o país-irmão entre 1964 e 1985.

Depois de 1950, ainda sem TV e na digestão do fracasso frente ao Uruguai, Pelé surgiria mais tarde na ‘época de ouro’ do futebol brasileiro e da sua emancipação, sendo muito importante o que Pelé fez pelo Santos mas também o que Santos fez por Pelé. Em quinze anos ao serviço do clube de São Paulo, Pelé mostrou a sua dimensão absolutamente ímpar e hoje, nos tempo das redes sociais e da comunicação instantânea, não há forma de valorizar tudo aquilo que foi feito no século passado, nas décadas de 50, 60 e 70. Extraordinário!

Os mais novos que nunca se esqueçam daqueles que conquistaram o Mundo num tempo em que a comunicação e os seus efeitos não eram instantâneos.

Ainda sobre a mensagem de Pelé, temos felizmente hoje treinadores que continuam a valorizar o futebol-espectáculo, como é o caso de Klopp e Guardiola, embora sabendo que as equipas, hodiernamente, tenham de saber defender para poderem sobreviver, e em Portugal o caso mais recente é o do alemão Roger Schmidt que, ao serviço do Benfica, é claramente um treinador que gosta de futebol-espectáculo e de ver a sua equipa numa atitude permanentemente ofensiva, à procura de mais golos, como aconteceu em diversos períodos com Jorge Jesus também na Luz e, por exemplo, com Artur Jorge no FC Porto.

Talvez a melhor forma de homenagear o ‘Rei Pelé’ é reflectir e aplicar a sua mensagem: vamos salvar o futebol-espectáculo!

Olhemos, a-propósito, para o exemplo de Cristiano Ronaldo o ‘nosso Rei’. Olhemos para tudo o que ele fez pelo futebol-espectáculo. Sejamos gratos a ele, mas também a Maradona, Messi (exemplar nesse domínio!!!), Eusébio, Garrincha, Zico, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho, Zidane, Platini e tantos outros que elevaram o futebol a uma rara dimensão estética e dinâmica.

Obrigado, Pelé. Pela mensagem e por tudo o que fizeste pelo Futebol.

Descansa em paz. Foi um prazer conhecer-te. Estarás para sempre no reino dos deuses.

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