O PCC "é uma multinacional do crime". Há inspetores do Fisco e famílias a ser ameaçados pelo grupo criminoso brasileiro

2 jun, 07:00
Apreensão de droga (Getty)

Os primeiros elementos do Primeiro Comando da Capital (PCC) terão chegado a Portugal antes da pandemia e começaram a alargar a sua rede em 2021. São altamente organizados e profissionais no que fazem e o tráfico de droga é a sua maior fonte de rendimento. Começam por comprar empresas legais e, aos poucos, constroem uma rede para o branqueamento de capitais. Ninguém escapa às ameaças, nem as famílias de quem os investiga

Os primeiros homens do Primeiro Comando da Capital - PCC terão chegado a Portugal antes da pandemia e, em 2021, começaram a alargar a rede. Fizeram contactos com grupos criminosos nacionais - na área do tráfico de droga - e foram, aos poucos, controlando os bairros mais problemáticos onde queriam entrar. Compraram empresas legais e com o tempo criaram redes de mais empresas. O branqueamento de capitais é uma necessidade extrema no tráfico de droga e o PCC é perito. É aqui que entra a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), chamada muitas vezes a colaborar com as investigações judiciais e tendo, ela própria, algumas investigações da sua autoria. "Infelizmente, não é nada que surpreenda", explica à CNN Portugal Nuno Barroso, presidente da APIT - Associação Sindical dos Profissionais da Inspeção Tributária e Aduaneira e vice-presidente da UFE - Union of Finance Personnel in Europe. Em entrevista, este responsável explica que este grupo é "uma multinacional" que adquire negócios legais, para ocultar os negócios do crime.

Duas grandes operações da Polícia Judiciária expuseram junto da opinião pública uma realidade que já era conhecida pelas autoridades. Uma foi a operação de combate à corrupção, em alguns dos principais portos marítimos do país, que visava funcionários das alfândegas. Funcionários que trabalharam para o PCC e ajudavam a droga a sair dos portos. Ou a detenção no Montijo de Gabriel Martinez Souza, um brasileiro de 38 anos, com um posto elevado na estrutura brasileira do PCC. Era um alto emissário em Portugal daquela entidade criminosa. Na entrevista à CNN Portugal, Nuno Barroso admite ainda que há inspetores da AT que já foram ameaçados por elementos do grupo e que nem as suas famílias escapam como alvo.

Já não há dúvidas da presença do PCC em Portugal…

Infelizmente não é nada que surpreenda. Primeiro pela relação fácil dos brasileiros com outros países, pela deslocação simples, pelo facto de se poderem instalar com relativa facilidade. Os vistos feitos para os cidadãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) permitem uma abordagem a Portugal com outra facilidade comparando com outros países, mesmo na União Europeia. E a língua.

Quando chegam a um país não começam logo a atuar de forma criminosa?

Nunca nos podemos esquecer que estamos a falar de uma multinacional. E temos de encarar o PCC como uma multinacional, onde o negócio é o crime. Mas é uma multinacional e, portanto, eles já têm preparadas várias formas de entrar nos mercados, de encapotar os seus negócios.

E como é que fazem?

Quando chegaram soubemos que eles foram agindo de várias formas. Começaram por fazer parceiros, junto de alguns gangues nacionais, pessoas que trabalhavam sobretudo no tráfico de droga. Estes começaram por ser uma espécie de peões do PCC e foram abrindo as portas a esse negócio, sobretudo no controle de alguns dos bairros mais problemáticos.

Quando digo que são uma multinacional é porque eles diversificam a estratégia. Como, por exemplo, entrar em Portugal comprando empresas que estão estabelecidas no mercado, ou empresas que estão com dificuldades. Ou empresas que tenham determinados negócios que podem ser interessantes para eles ou estão a iniciar atividade. A vantagem de comprar uma empresa que já está no mercado é, obviamente, ela já ter uma relação com o fisco, uma relação com a segurança social, tem clientes, tem fornecedores, portanto, tem um negócio. Depois, a partir desse negócio, começam não só a efetuar o branqueamento de capitais, mas a utilizar essas empresas para criar outras empresas, para criar toda uma network de empresas e de relacionamentos comerciais. Tudo isto permite criar um negócio que, aparentemente, tem toda a legitimidade, mas que estará como centro de outras operações.

São organizados, com uma estrutura definida? Não ocupam logo o espaço?

Quando estas multinacionais do crime se instalam num país, não entram propriamente a matar, não tentam conquistar imediatamente o seu território. Já aprenderam que essa é uma forma fácil de cair nas teias das forças de segurança. E, portanto, tentam, obviamente, criar toda uma imagem de homens de negócios, de empreendedores. A vantagem que lhes é dada por essa capa de legitimidade permite-lhes depois utilizar esses negócios para fazer importações, exportações, que acabam com fraude fiscal, evasão fiscal, a que se junta sempre para o branqueamento de capitais, a que se junta a corrupção.

Funcionam como uma verdadeira empresa?

A própria Polícia Federal brasileira assume que o PCC é regido como sendo uma multinacional. Têm um conselho de administração, têm especialistas em finanças, têm especialistas em transporte, têm especialistas em importação e exportação.

Há uma ideia de quando chegaram a Portugal?

É difícil fixarmos no tempo o momento em que começaram a trabalhar com o mercado português. A noção que temos, e falo da experiência sobretudo do lado do fisco, foi, sobretudo, é que entraram um pouco antes da pandemia e a começarem a aumentar a rede a partir de 2021. Em 2022 fizemos um alerta, inclusive no dia internacional contra a corrupção, que teríamos de olhar de uma forma multidisciplinar para a realidade do PCC, não apenas a Polícia Judiciária, mas deveríamos estar a falar da inspeção da AT, da inspeção da Segurança Social, da inspeção de Trabalho. Todas teriam de trabalhar em conjunto para que o combate a esta rede criminosa fosse o mais eficaz possível.

As operações da PJ mais recentes, que apanharam elementos do PCC e droga não são inesperadas?

Era expectável que começasse a acontecer. Também vamos começando a perceber a forma como estão a atuar no mercado e a forma como utilizaram os criminosos, a sua expertise e a forma como foram desenvolvendo o seu trabalho. Quando dizemos que eles estão em Portugal e começaram a montar uma série de negócios, sobretudo por Lisboa, eles não ficam em Portugal. Espalham-se já pelo Norte de África, por Espanha, por Itália. Eles não pretendem ficar parados num país tão pequeno e que só serve de porta de entrada para um mercado europeu.

O facto de conseguirem pessoas que ajudam, seja nos aeroportos, nos portos nacionais…

Eles sempre agiram dessa forma. Procuram encontrar todas as pequenas falhas, todos os pequenos espaços que possam ser explorados. Depois, obviamente, há pessoas que podem ser mais facilmente recrutadas para trabalhar com eles. E essa é uma atenção especial que tem de ser dada por todas as entidades. Só que a AT tem um problema, neste momento, na sua vocação e na missão que lhe está atribuída. Estamos cada vez mais focados no resultado dos impostos e temos vindo a deixar de lado aquilo que é a inspeção e a investigação criminal. Temos um grupo de profissionais altamente especializado e altamente preparado para ajudar e que, na nossa opinião, está a ser desperdiçado.

Temos uma lógica que divide de alguma forma aquilo que são os crimes que são restritos à atuação da Polícia Judiciária ou de forças policiais. Mas há dois crimes que estão imediatamente ligados, quer com a droga, quer com este tipo de atividades criminosas, que poderiam ser mais bem explorados que é a questão do branqueamento de capitais e a questão da corrupção. As vertentes fiscal e aduaneira são muito importantes e iria ter rapidamente resultados.

E ao nível de dinheiro, como é que eles fazem? Usam dinheiro físico? Criptomoedas? 

Utilizam tudo o que se possa imaginar na aplicação e transferências de dinheiro. Tudo o que existe no mercado. O início da atividade é muitas vezes feito com dinheiro legal. A partir do momento em que existe essa fachada de legalidade, é mais fácil o branqueamento de capitais. É cada vez mais fácil trabalhar com bancos online e nem todos estão regulados. Depois tens a realidade das criptomoedas e dos NFTs, que facilita a transferência de dinheiro entre eles e que nos dificulta o rastreamento. É possível, mas não conseguimos fazê-lo de forma tão rápida como seria o ideal. E uma coisa é congelar contas bancárias, outra coisa é congelar uma carteira de criptoativos.

Falou em falta de investimento na fiscalização e investigação na AT...

Temos mais de 10 mil trabalhadores na Autoridade Tributária. Três mil são inspetores tributários e aduaneiros, mas apenas um terço deles, pouco mais - cerca de 1.000 - é que estão a fazer inspeção e investigação criminal. Se conseguíssemos desviar um outro terço, outros 1.000 trabalhadores, e colocá-los com maior atenção no combate ao branqueamento, ao controle de criptoativos e afins, haveria imediatamente resultados. E se não houver resultados imediatos, serão a médio prazo. É uma realidade que tem de ser cada vez mais tida em conta pelas autoridades tributárias. Há uma preocupação especial, na maior parte dos países europeus com equipas especializadas em lidar com criptoativos, equipas de inspeção e investigação.

Há relatos de ameaças do PCC a quem os investiga noutros países. Há casos em Portugal?

Quando lidamos com este tipo de criminosos, temos necessidade de olhar para a AT e alterar a sua forma de funcionar. Temos de pensar em reestruturar operacionalmente. A AT está, em muitos casos, a trabalhar como trabalhava há 20 ou mais anos atrás. Vemos este grupo em específico, o PCC, agir de forma criminosa para com colegas de outros países. Quer com ameaças de morte, quer mesmo com tentativas de assassinato. Quem lida com pessoas que foram depois relacionadas com o PCC fala numa animosidade latente e que muitas vezes é expressa em ameaças. Curiosamente a Inspeção Tributária e Aduaneira é a única inspeção do país à qual não é atribuído um suplemento de risco. Temos inspetores a trabalharam de forma isolada, por exemplo, a dirigirem-se sozinhos para empresas e não a trabalhar em brigada como acontece com praticamente todos os outros corpos inspetivos do Estado, somos também os únicos inspetores que não têm um subsídio de risco, um suplemento de missão, chamem-lhe aquilo que desejarem. E há outra coisa. A maior parte dos meus colegas continuam a usar o próprio veículo familiar ao serviço do Estado. Ou seja, as suas deslocações são feitas no seu veículo. E sabemos a facilidade com que muitas vezes a partir de um determinado dado, como a matrícula de um carro, permite conseguir outro tipo de dados.

Há casos concretos em Portugal que tenha conhecimento?

Já nos foram reportados. A tentativa de condicionamento acontece sempre, mas já há ameaças sim. 

E que tipo de ameaças são? O que dizem?

Essas ameaças apresentam informação, que não sabemos como é que terá sido obtida, a envolver a família. Sobretudo o marido ou a mulher ou os filhos. Todas as forças policiais que se envolvem com este tipo de grupos criminosos, sejam o PCC, sejam outros nacionais ou internacionais, têm de lidar com este tipo de ameaças. E os inspetores da AT acabam por estar numa posição diferente das restantes forças policiais. Mais desprotegidos.

O PCC é conhecido pela forma fria e violenta como age…

Felizmente, não temos o hábito de lidar com grupos extremamente violentos. Eles existem, mas normalmente não é uma realidade da sociedade portuguesa. Atualmente, o PCC não é o único deste género a atuar em Portugal. São grupos que lidam de uma maneira muito mais fria, muito mais violenta quando estão encurralados.

Os outros grupos são de onde? 

Temos grupos vindos da América do Sul, mas também temos em Portugal a presença de máfias do centro e leste da Europa, já com muita força em determinados setores de atividade. E aí há fraude fiscal qualificada de muitos milhões de euros. A droga está quase sempre presente neste grupo de criminosos, mas há também o contrabando de tabaco e a falsificação de tabaco, a fraude fiscal. Estes grupos também são altamente especializados. Veja-se o caso das burlas. Ainda recentemente tivemos um aviso da parte da Polícia Judiciária e da PSP com a questão das criptomoedas. E são grupos que entram em Portugal, atuam durante alguns meses e quando acham que estão próximos de ser apanhados, saem para outro país. Podem voltar ou não. Podem também mudar o modus operandi de forma a não se conseguirem ser identificados. E esses são também grupos altamente especializados, estes sobretudo mais do centro-norte e leste da Europa.

Crime e Justiça

Mais Crime e Justiça