"Tento obter justiça para as mulheres... vingança também": Paula Rego (1935-2022), que foi "chocante e excitante"

8 jun 2022, 14:14

"Vai-te embora daqui que isto não é um país para mulheres", disse-lhe o pai. E ela foi. Paula Rego celebrou "a esplêndida riqueza da vida" através de imagens "sombriamente sexuais, profundamente sinistras, repletas de drama, violência e simbolismo". Morreu esta quarta-feira, haverá luto nacional

Dizia que só queria “fazer uns bonecos” e contar umas histórias. Olhava para a sua obra com um desprendimento incrível – “isto que faço é tudo desenho, isto não é pintura a sério”. E, no entanto, com os seus "bonecos" Paula Rego foi uma extraordinária intérprete dos nossos sonhos mais cândidos e dos nossos pesadelos mas horríveis (e até escondidos).

Nossos, das pessoas deste tempo, mas também se poderia dizer nossos, das mulheres, porque na sua obra a mulher toma quase sempre o papel protagonista – a mulher oprimida, a mulher submissa, a mulher que se revolta, a mulher que dá vida, a mulher que tira a vida, a mulher-menina, a mulher que envelhece, a mulher que cuida, a mulher que deseja. Claro que há outros temas – a infância, a família, as suas memórias, a opressão, o sexo, a “brutalidade bela”, como ela lhe chamava, a morte – e há um mundo muito próprio e muito onírico que se revela na sua obra, que é toda ela atravessada por esse tema predominante: a condição da mulher na vida íntima e na vida social. "Tento obter justiça para as mulheres... pelo menos nas pinturas... Vingança também”, disse numa entrevista à BBC.

A pintora Paula Rego, de 87 anos, considerada um dos nomes mais importantes na arte contemporânea, morreu esta quarta-feira, em Londres - "calmamente em casa, junto dos filhos". O Governo decretou, em articulação com o Presidente da República, luto nacional.

Quando começou a trabalhar, nos anos 50, a arte figurativa não estava na moda, o que mostra bem a sua determinação e originalidade desde o início. Nasceu em Lisboa em 1935. "Vai-te embora daqui que isto não é um país para mulheres", disse-lhe o pai. E ela foi. Mudou-se para Londres em 1952 para estudar na Slade School of Art, onde conheceu o artista Victor Willing, com quem viria a casar em 1959.

"Na década de 1950, o consenso era que as mulheres não podiam ser artistas", disse numa entrevista. "As mulheres estavam lá para serem parceiras e apoiantes de seus maridos artistas. Eu não era uma delas. Eu queria estar no clube dos 'rapazes crescidos', com os grandes pintores que admirava. Assim como queria ser Robin Hood e não a Lady Marion. Na verdade, eu tinha uma roupa de Robin Hood", contou.

Paula Rego viveu entre Ericeira e Londres, onde foi bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian para fazer pesquisa sobre contos infantis, até em 1975 se estabelecer definitivamente no Reino Unido, apesar de continuar a expor regularmente em Portugal - onde era, desde 1978, representada pela Galeria 111.

Em 1988 realizou a sua primeira grande exposição no Reino Unido, na Serpentine Gallery, e assinou com a galeria Marlborough Fine Art o passo que faltava para a internacionalização. No ano seguinte, Willing morreu e um ano depois Paula Rego foi nomeada para o Prémio Turner, a mais importante distinção para as artes plásticas no Reino Unido. "Fiquei muito feliz por poder vender os meus quadros. Tínhamos grandes dificuldades financeiras na altura", comentaria a propósito do reconhecimento tardio: "Finalmente estavam a levar-me a sério."

Em 1990 foi a primeira artista associada da National Gallery e em 2001 recebeu o Prémio Celpa/Vieira da Silva de Consagração. Com exposições em instituições como o Centro Cultural de Belém e o Museu de Serralves, a Tate Gallery e a Tate Modern (Londres), o Reina Sofia (Madrid) ou a Pinacoteca (São Paulo), Paula Rego conseguiu concretizar um sonho antigo e em 2009 foi inaugurada em Cascais a Casa das Histórias (porque ela não gostava da palavra museu mas, em compensação, precisava de histórias que são o principal alimento dos seus desenhos), um espaço projectado por Souto de Moura onde estão depositadas centenas de peças doadas ou emprestadas pela artista.

 

Depois de em 2006 ter pintado o retrato oficial do então Presidente da República Jorge Sampaio, em 2010 foi a vez de a Rainha Isabel II lhe atribuir o título de Dama. Desde 1917, o título já foi concedido a mais de 700 actrizes, escritoras, bailarinas e outras. Mas apenas quatro pintoras tinham tido esta distinção. Como comentou então o escritor Hélder Macedo: "Extraordinária artista que não pode ser mais establishment - foi-lhe dado recentemente o título de Dama do Império Britânico -, mas que mantém a portugalidade na pintura e um sentido teatral que promove um sentido operático na sua pintura e no carácter obsessivo de uma infância que se transforma nos horrores da vida adulta".

Depois da aclamação da crítica, Paula Rego tornou-se também uma das artistas mais procuradas nos leilões. Em 2008, "Baying" (em português Uivando), uma tela a pastel de 1994, foi vendida por 738 mil euros na Sotheby's de Londres - um recorde para a artista até então.

O valor internacional da sua obra evidenciou-se em 2015 com a venda num leilão em Londres da obra "The Cadet and his Sister" (1988) (“O cadete e a sua irmã”, em tradução do inglês), por 1,6 milhões de euros, tornando-se um novo recorde da artista portuguesa.

A vida transformada em quadros

“Os meus pais tiveram um casamento com muito amor, mas também complicado, com muita dor, muito sofrimento”, contou o filho, Nick, durante a apresentação da sua última exposição no Museu de Málaga, em abril. O filho falava abertamente das infidelidades da mãe a propósito de “Red Monkey Offers Bear a Poisoned Dove”, uma das pinturas da série “The Red Monkey”, do começo dos anos 1980: o urso, explicou Nick, era o amante de Paula Rego, que nela se representa como a pomba que o marido (o macaco, naturalmente) entrega a outro homem.

“As pinturas desta série dão permissão à minha mãe para fazer algo que ela tinha medo de fazer e que acabou por não chegar a fazer – cortar a relação com o meu pai, que viveu muitos anos doente, na cama. A minha mãe teve outros namorados enquanto estava casada com o meu pai, divertiu-se muito, mas nunca deixou de ser a mulher do Vic Willing", dizia Nick Willing, o filho que em 2017 nos deu  a conhecer um pouco melhor a pintora com o documentário "Paula Rego: Histórias e Segredos", aproveitando muitos dos filmes da família - os mais antigos pertenciam ao pai dela, José Figueiroa Rego, os mais recentes feitos pelo próprio Nick, que começou a gravar imagens da família logo nos anos 70. 

Essas imagens de Paula Rego na infância e na intimidade juntaram-se depois às entrevistas feitas pelo filho e às muitas horas que ele passou a vê-la trabalhar. "Ela esquece-se de que está lá uma câmara de filmar porque eu sou a única pessoa que lá está, não há operador de câmara ou técnico de som. Ponho as três câmaras e deixo correr. Ficamos ali a conversar e a brincar, a falar da vida e a contar histórias", disse Willing. "Mas ela não consegue analisar os quadros que faz, ela só pode falar da história do quadro e de como o faz. Se eu pergunto 'porque é que estás a fazer isto?' ela não sabe. E diz 'se eu soubesse não poderia pintar, eu pinto para descobrir porque é que estou a pintar isto'."


 

Neste documentário, Paula Rego assume na primeira pessoa muitos dos temas que já tinha abordado nas suas pinturas: a violência sexual, os abortos, a depressão. Fala da importância da sua relação com o marido, que viria a morrer em 1988 depois de ter vivido com esclerose múltipla por mais de 20 anos, os últimos dos quais confinado a uma cama.

"A mãe está muito mais bem disposta do que era antigamente", contava Nick Willing em 2015. "Ela sempre teve bastantes segredos e era muito fechada mas agora tem 80 anos e já não se importa com o que os outros pensem dela, está mais livre para falar das coisas de que quer falar - para contar como era a vida dela nos anos 50 e 60, o meu pai, a luta contra o fascismo, a luta para ser uma mulher pintora." Paula Rego continuava a ir todos os dias para o seu atelier em Londres. "Mas ela está um bocadinho frágil e muito cansada. A mãe tem vivido muito bem a vida e também tem trabalhado às vezes de mais", admitia o filho.

Imagens chocantes e infantis juntam-se na última retrospetiva da artista

As histórias, reais ou imaginadas, acompanharam a vida da pintora Paula Rego, um fascínio que começou na infância quando a tia lhas contava - e que inspirou os seus quadros. Na sua obra, a violência e a dor conviviam com um universo infantil e onírico, com muitas referências aos contos infantis. "[Com as histórias] pode castigar-se quem não se gosta e elogiar-se quem se gosta. E depois inventa-se uma história para explicar tudo", comentou na inauguração de uma das suas exposições.

Em 2021 conseguiu tornar real um dos seus maiores sonhos como artista: expor no museu Tate Britain, em Londres, uma casa de exposições que sempre viu como um baluarte masculino. Ali apresentou uma exposição retrospetiva - com mais de 100 obras dos seus 60 anos de carreira -, que acabou por ser a maior e mais completa exposição de Paula Rego no Reino Unido, incluindo - além da pintura - esculturas, colagens e desenhos desde os anos 1950 até aos mais recentes, incluindo a série "Mulher Cão", dos anos 1990, e “Aborto”, uma das que mais impacto político e social tiveram em Portugal, produzida durante a campanha pela despenalização do procedimento no país. A exposição está atualmente no Museu Picasso, em Málaga, Espanha, onde pode ser visitada até 21 de agosto.

"Paula Rego é uma grande artista e uma artista subestimada", disse na altura à BBC a historiadora de arte e curadora Catherine Lampert, sublinhando como o seu trabalho sempre foi atual: "Quer aborde a guerra ou a morte de 'honra', nada escapa à sua consciência dos desafios da vida... Ela às vezes é chocante e excitante - mas esse é um dos papéis da arte." A historiadora não tinha dúvidas de que as obras de Paula Rego ajudaram a quebrar tabus falando da raiva e da dor das mulheres.

A grandiosidade da obra de Paula Rego foi reconhecida de muitas formas. A artista foi galardoada, entre outros, com o Grande Prémio Amadeo de Souza-Cardoso em 2013, além de ter sido distinguida com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada em 2004. Em 2019 recebeu a Medalha de Mérito Cultural do Governo de Portugal.

No ano passado foi considerada uma das 25 mulheres mais influentes do ano pelo jornal inglês Financial Times (FT). "As imagens obsessivas desta artista possuem um poder enorme, muitas vezes inquietante", escreveu Jan Dalley no perfil que fez da artista portuguesa, recordando que Paula Rego cresceu numa família religiosa e "profundamente convencional" e que depois se mudou para Londres, onde continuou a lutar pelos seus direitos no mundo da arte, dominado por homens. E, apesar de tudo, "Rego tornou-se provavelmente a pintora figurativa mais significativa dos nossos tempos", escreveu o FT. "As suas imagens intensas e contundentes - sombriamente sexuais, profundamente sinistras, repletas de drama, violência e simbolismo" inspiram-se "na fantasia e no mito" e, ao mesmo tempo, celebram "a esplêndida riqueza da vida".

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