Estados Unidos, China, Rússia, Índia ou África do Sul mostram-se a favor da medida, mas União Europeia, Reino Unido e Suíça são forças de bloqueio
A Organização Mundial do Comércio (OMC) devia ter tomado uma posição esta sexta-feira sobre o levantamento das patentes das vacinas contra a covid-19, mas a reunião que devia ter decorrido entre os dias 30 de novembro e 3 de dezembro não chegou a realizar-se. Por causa da nova variante, a Ómicron, a organização decidiu adiar “indefinidamente” o encontro.
Trata-se de mais um passo em falso numa questão que muitos especialistas e políticos apontam como essencial para acabar com a pandemia. Acreditam os cientistas que a chegada de vacinas de forma equitativa a todos os países vai permitir controlar os surtos que vão surgindo no globo, impedindo também de forma mais eficaz o aparecimento de novas variantes.
O que está em causa é um acordo mundial entre os 164 membros da OMC. Daí espera-se que saiam as medidas globais, cabendo depois a cada governo “obrigar” as farmacêuticas a deixarem outras empresas aceder à informação sobre os produtos.
Ainda antes do cancelamento da reunião, a diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, admitia que o processo estava "preso", pedindo compromisso aos governos.
O que significa o levantamento das patentes
O levantamento das patentes de vacinas é uma cláusula prevista no Acordo de Aspetos de Propriedade Intelectual (Trips, na sigla original). Este acordo foi celebrado pela OMC em 1995, e prevê que os produtos passem a ter uma proteção mínima da propriedade intelectual.
Na prática, se o levantamento das patentes entrar em vigor, qualquer empresa do mundo vai poder desenvolver vacinas contra a covid-19, sem que isso possa significar um processo legal por parte da empresa que detinha a patente original.
O antigo presidente do Infarmed, José Aranda da Silva, não tem dúvidas: a solução para controlar a pandemia vai passar certamente pelas vacinas, apontando três vias diferentes para lá chegar:
- Novos acordos com preços mais baixos para os países em vias de desenvolvimento;
- Dar licenças de fabrico a outras fábricas, que terão de pagar uma taxa para a produção;
- Levantamento das patentes, o “segredo mais bem guardado”, de acordo com o especialista em farmácia.
Sem essa democratização das vacinas, defende, o mundo estará sempre mais próximo de gerar uma nova variante, que provavelmente vai aparecer num país em vias de desenvolvimento, como foi o caso das que apareceram em países como Índia, Brasil ou África do Sul.
“É mais fácil surgir uma nova variante onde o vírus tem um terreno mais fértil”, avisa, em entrevista à CNN Portugal, lembrando as baixas taxas de vacinação em muitos países fora da Europa e América do Norte.
Sobre a disparidade nas vacinas que cada país tem ao dispor, Aranda da Silva vê a questão como simples: “Estão a fornecer os países mais ricos porque eles pagam mais”.
Para controlar a situação, o especialista pede intervenção pública, uma maior regulação do mercado e uma estratégia global que funcione, criticando a Covax, mecanismo criado pela Organização Mundial de Saúde para uma distribuição igualitária das vacinas pelo mundo, que “não está a funcionar”.
O também ex-bastonário dos Farmacêuticos dá mesmo um exemplo concreto: “As vacinas que foram enviadas para África estavam a acabar o prazo de validade”, diz, referindo-se às doses que vão sendo enviadas por países europeus para o continente africano.
A opinião de Aranda da Silva ficou manifestada numa carta aberta assinada por várias personalidades portuguesas, desde médicos a atores.
Do mesmo entendimento é Guadalupe Simões, dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses. Em conversa com a CNN Portugal, a responsável diz que a organização está contra a comercialização e privatização dos serviços de saúde, inserindo-se até num grupo que luta contra isso.
Para a enfermeira, o levantamento de patentes deve acontecer de forma imediata: "No nosso entendimento é inadmissível" que a situação prossiga, diz, lembrando a questão do investimento público nas fases de pesquisa e investigação.
"Houve um investimento público para a criação destas vacinas. Quando há países mais ricos que decidem não levantar temporariamente as vacinas e doam as vacinas isso significa que continuam a ter de as comprar e a engrossar os lucros das farmacêuticas", acrescenta.
Quem está contra e quem está a favor
África do Sul e Índia foram os primeiros grandes países a pedirem o levantamento das patentes das vacinas contra a covid-19. Não por acaso, foi precisamente naqueles dois países que surgiram algumas das variantes da doença (a Beta e a Delta, respetivamente). Mais recentemente foi identificada a variante Ómicron, também originada na África do Sul.
Num comunicado emitido a 2 de outubro de 2020, que também pede o acesso generalizado a medicamentos contra o vírus, aqueles dois países chegavam-se à frente, pedindo à OMC que levantasse as patentes das vacinas.
Já com Joe Biden na presidência, foi a vez dos Estados Unidos, a 5 de maio, pedirem o levantamento das patentes, numa decisão que também saiu de uma reunião na OMC. Entretanto juntaram-se outras potências como Rússia e China.
Atualmente, dos membros com maior poder na OMC, apenas a União Europeia, o Reino Unido e a Suíça mostram resistência ao levantamento de patentes. Embora os 27 adotem sempre uma postura de diálogo, nunca disseram de forma explícita que defendem a medida.
A principal razão parece ser a defesa das farmacêuticas e empresas de biotecnologia. É o caso da Alemanha com a BioNTech, da França com a Sanofi ou do Reino Unido com a AstraZeneca. Essa mesma razão parece não ter influenciado os Estados Unidos, país onde estão três das farmacêuticas que distribuem mais vacinas em todo o mundo (Pfizer, Moderna e Johnson & Johnson). Austrália e Canadá também têm mantido posições ambíguas nesta matéria.
Num debate realizado em maio deste ano, PCP e Bloco de Esquerda defenderam no Parlamento Europeu o levantamento das patentes, acusando a União Europeia de favorecer as farmacêuticas.
Foi isso que disseram os eurodeputados João Ferreira e Marisa Matias. O comunista falou numa defesa “obstinada das farmacêuticas”, enquanto a bloquista atirou que a União Europeia prefere “proteger o negócio” em vez de “salvar vidas”.
No mesmo debate esteve o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que mostrou abertura para a discussão, mas que apontou o aumento da produção como o fator-chave.
“A prioridade da UE é aumentar a produção de vacinas. O acordo Trips e o sistema de propriedade intelectual fazem parte da solução”, sublinhou. A CNN Portugal contactou, esta sexta-feira, o Ministério dos Negócios Estrangeiros para atualizar a posição do governo português, mas não obteve resposta até ao momento.
Sem ter o consenso dos eurodeputados, o Parlamento Europeu acabaria por emitir um comunicado a pedir o levantamento temporário das patentes, mas a posição europeia continua a ser muito cinzenta.
O outro lado da moeda
As farmacêuticas estão naturalmente interessadas em manter as patentes, mas há mais quem não ache que seja boa ideia o levantamento das licenças. É o caso de Anne Moore, especialista em bioquímica e biologia celular.
Num artigo publicado no website The Vaccine Alliance, da Fundação Bill e Melinda Gates, a especialista lembra que pode existir um problema nas matérias-primas necessárias para produzir as vacinas em países terceiros. Este foi precisamente o único contra apresentado por Aranda da Silva, que também admite o problema.
"O quase instantâneo triplicar da necessidade de materiais específicos vai colocar uma enorme pressão em muitas farmacêuticas e fornecedores", escreve Anne Moore.
Além disso, a transferência da manufaturação para outras instalações requer sempre grandes esforços físicos e financeiros, além de que os novos profissionais a alocar nesses lugares vão necessitar de formação.
"Além disso, são necessárias competências nas áreas clínica, legal, comercial e regulatória", o que pode mudar de país para país, como lembra Anne Moore.
Em vez de centrar o debate nas patentes, a também professora defende antes que se melhore o programa Covax para que se otimize uma distribuição equitativa das vacinas.
"Amem ou odeiem, mas a propriedade intelectual tem um papel central no desenvolvimento de vacinas", termina Anne Moore.
O que dizem as farmacêuticas
As farmacêuticas que detêm as patentes estão firmemente contra a partilha da informação, até porque se esperam anos de grandes lucros, algo que não se vai verificar se o Trips para as vacinas da covid-19 for aprovada.
Em comunicado, a Federação Internacional de Empresas e Associações Farmacêuticas afirmou que “o levantamento de patentes das vacinas contra a covid-19 não vai aumentar a produção ou dar soluções práticas na luta contra a crise de saúde mundial”.
As empresas como a Pfizer, Moderna ou a AstraZeneca alheiam-se da responsabilidade, acusando ainda os países mais ricos de acumularem vacinas em vez de as distribuírem de forma equitativa.
Isso mesmo disse o diretor-executivo da Pfizer em entrevista à BBC. Falando abertamente do assunto, Albert Bourla diz que as vacinas da Pfizer "custaram o preço de uma refeição takeaway" aos países mais ricos e que foram vendidas ao preço de custo para os países mais pobres. Ainda assim, o veterinário de formação admite que tenha havido uma discriminação em relação à altura em que as vacinas foram exportadas, o que justifica com a reserva atempada feita pelos países mais ricos.
Farmacêutica | 2020 | 2021 |
Pfizer | 36 mil milhões de euros | 50 mil milhões de euros (primeiros nove meses) |
Moderna | 708 milhões de euros | 14 mil milhões de euros (primeiros nove meses) |
AstraZeneca | 23 mil milhões de euros | 13 mil milhões de euros (primeiros seis meses) |
Johnson & Johnson | 72 mil milhões de euros | 59 mil milhões de euros (primeiros nove meses) |
De referir que a Moderna, ao contrário das outras empresas, era até 2020 uma empresa pequena em dimensão de negócios. Em sentido inverso, Pfizer, AstraZeneca e Johnson & Johnson já tinham mercado na área da farmacêutica. Em relação à AstraZeneca, recorde-se que não está a ser utilizada nos Estados Unidos, por exemplo, um dos países que mais vacinas comprou.
Já a Johnson & Johnson é uma empresa multinacional que trabalha em várias áreas, desde a farmacêutica à cosmética, o que explica que tenha receitas mais elevadas que as restantes.
Alega a indústria que a tecnologia associada às vacinas já foi partilhada com outras entidades, o que vai permitir produzir milhões de doses em todo o mundo. Para que isso se efetive, pedem as farmacêuticas que os governos suspendam os controlos e restrições aplicados a alguns dos produtos necessários para a produção das vacinas.
Dizem ainda as farmacêuticas que as patentes são cruciais para a inovação e a chegada a novos produtos.
“Os incentivos à propriedade intelectual são a fundação em que a inovação é construída: encorajam e protegem a inovação, a pesquisa e o avanço de investimentos em áreas onde ainda não se chegou”, pode ler-se num comunicado da Federação Europeia de Empresas e Associações Farmacêuticas.
Dos 7% aos 59%, a disparidade no mundo
Portugal é um dos países com maior taxa de vacinação em todo o mundo. Cerca de 88% da população já recebeu duas doses, havendo já 1,4 milhões de pessoas com doses de reforço recebidas.
Mas a realidade para o continente europeu é diferente. Incluindo os países europeus que se juntam aos da União Europeia, a média de vacinação completa na Europa é de 58%.
Não chega sequer a ser o continente com maior taxa de vacinação. Esse lugar pertence à América do Sul, que tem 59% da população inoculada com duas doses. Grande parte da responsabilidade vai para o Chile, que já tem 84% da população inoculada.
A média mundial está nos 44%, e África é o único continente abaixo, e bem abaixo. Mesmo contando com os melhores casos, como Marrocos (61% da população totalmente vacinada), África tem apenas 7,5% das pessoas com vacinação completa.