Os prós e os contras do levantamento de patentes das vacinas contra a covid-19

6 dez 2021, 07:00

Estados Unidos, China, Rússia, Índia ou África do Sul mostram-se a favor da medida, mas União Europeia, Reino Unido e Suíça são forças de bloqueio

A Organização Mundial do Comércio (OMC) devia ter tomado uma posição esta sexta-feira sobre o levantamento das patentes das vacinas contra a covid-19, mas a reunião que devia ter decorrido entre os dias 30 de novembro e 3 de dezembro não chegou a realizar-se. Por causa da nova variante, a Ómicron, a organização decidiu adiar “indefinidamente” o encontro.

Trata-se de mais um passo em falso numa questão que muitos especialistas e políticos apontam como essencial para acabar com a pandemia. Acreditam os cientistas que a chegada de vacinas de forma equitativa a todos os países vai permitir controlar os surtos que vão surgindo no globo, impedindo também de forma mais eficaz o aparecimento de novas variantes.

O que está em causa é um acordo mundial entre os 164 membros da OMC. Daí espera-se que saiam as medidas globais, cabendo depois a cada governo “obrigar” as farmacêuticas a deixarem outras empresas aceder à informação sobre os produtos.

Ainda antes do cancelamento da reunião, a diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, admitia que o processo estava "preso", pedindo compromisso aos governos.

O que significa o levantamento das patentes

O levantamento das patentes de vacinas é uma cláusula prevista no Acordo de Aspetos de Propriedade Intelectual (Trips, na sigla original). Este acordo foi celebrado pela OMC em 1995, e prevê que os produtos passem a ter uma proteção mínima da propriedade intelectual.

Na prática, se o levantamento das patentes entrar em vigor, qualquer empresa do mundo vai poder desenvolver vacinas contra a covid-19, sem que isso possa significar um processo legal por parte da empresa que detinha a patente original.

O antigo presidente do Infarmed, José Aranda da Silva, não tem dúvidas: a solução para controlar a pandemia vai passar certamente pelas vacinas, apontando três vias diferentes para lá chegar:

  • Novos acordos com preços mais baixos para os países em vias de desenvolvimento;
  • Dar licenças de fabrico a outras fábricas, que terão de pagar uma taxa para a produção;
  • Levantamento das patentes, o “segredo mais bem guardado”, de acordo com o especialista em farmácia.

Sem essa democratização das vacinas, defende, o mundo estará sempre mais próximo de gerar uma nova variante, que provavelmente vai aparecer num país em vias de desenvolvimento, como foi o caso das que apareceram em países como Índia, Brasil ou África do Sul.

“É mais fácil surgir uma nova variante onde o vírus tem um terreno mais fértil”, avisa, em entrevista à CNN Portugal, lembrando as baixas taxas de vacinação em muitos países fora da Europa e América do Norte.

Sobre a disparidade nas vacinas que cada país tem ao dispor, Aranda da Silva vê a questão como simples: “Estão a fornecer os países mais ricos porque eles pagam mais”.

Manifestação pelo levantamento das patentes de vacinas, Roma (Joy Asico/AP)

Para controlar a situação, o especialista pede intervenção pública, uma maior regulação do mercado e uma estratégia global que funcione, criticando a Covax, mecanismo criado pela Organização Mundial de Saúde para uma distribuição igualitária das vacinas pelo mundo, que “não está a funcionar”.

O também ex-bastonário dos Farmacêuticos dá mesmo um exemplo concreto: “As vacinas que foram enviadas para África estavam a acabar o prazo de validade”, diz, referindo-se às doses que vão sendo enviadas por países europeus para o continente africano.

A opinião de Aranda da Silva ficou manifestada numa carta aberta assinada por várias personalidades portuguesas, desde médicos a atores.

Do mesmo entendimento é Guadalupe Simões, dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses. Em conversa com a CNN Portugal, a responsável diz que a organização está contra a comercialização e privatização dos serviços de saúde, inserindo-se até num grupo que luta contra isso.

Para a enfermeira, o levantamento de patentes deve acontecer de forma imediata: "No nosso entendimento é inadmissível" que a situação prossiga, diz, lembrando a questão do investimento público nas fases de pesquisa e investigação.

"Houve um investimento público para a criação destas vacinas. Quando há países mais ricos que decidem não levantar temporariamente as vacinas e doam as vacinas isso significa que continuam a ter de as comprar e a engrossar os lucros das farmacêuticas", acrescenta.

Quem está contra e quem está a favor 

África do Sul e Índia foram os primeiros grandes países a pedirem o levantamento das patentes das vacinas contra a covid-19. Não por acaso, foi precisamente naqueles dois países que surgiram algumas das variantes da doença (a Beta e a Delta, respetivamente). Mais recentemente foi identificada a variante Ómicron, também originada na África do Sul.

Num comunicado emitido a 2 de outubro de 2020, que também pede o acesso generalizado a medicamentos contra o vírus, aqueles dois países chegavam-se à frente, pedindo à OMC que levantasse as patentes das vacinas.

Já com Joe Biden na presidência, foi a vez dos Estados Unidos, a 5 de maio, pedirem o levantamento das patentes, numa decisão que também saiu de uma reunião na OMC. Entretanto juntaram-se outras potências como Rússia e China.

Atualmente, dos membros com maior poder na OMC, apenas a União Europeia, o Reino Unido e a Suíça mostram resistência ao levantamento de patentes. Embora os 27 adotem sempre uma postura de diálogo, nunca disseram de forma explícita que defendem a medida.

A principal razão parece ser a defesa das farmacêuticas e empresas de biotecnologia. É o caso da Alemanha com a BioNTech, da França com a Sanofi ou do Reino Unido com a AstraZeneca. Essa mesma razão parece não ter influenciado os Estados Unidos, país onde estão três das farmacêuticas que distribuem mais vacinas em todo o mundo (Pfizer, Moderna e Johnson & Johnson). Austrália e Canadá também têm mantido posições ambíguas nesta matéria.

Diretora-geral da OMC e presidente do Conselho Europeu antes de reunião para discutir patentes em maio (Bernd von Jutrczenka/AP)

Num debate realizado em maio deste ano, PCP e Bloco de Esquerda defenderam no Parlamento Europeu o levantamento das patentes, acusando a União Europeia de favorecer as farmacêuticas.

Foi isso que disseram os eurodeputados João Ferreira e Marisa Matias. O comunista falou numa defesa “obstinada das farmacêuticas”, enquanto a bloquista atirou que a União Europeia prefere “proteger o negócio” em vez de “salvar vidas”.

No mesmo debate esteve o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que mostrou abertura para a discussão, mas que apontou o aumento da produção como o fator-chave.

“A prioridade da UE é aumentar a produção de vacinas. O acordo Trips e o sistema de propriedade intelectual fazem parte da solução”, sublinhou. A CNN Portugal contactou, esta sexta-feira, o Ministério dos Negócios Estrangeiros para atualizar a posição do governo português, mas não obteve resposta até ao momento.

Sem ter o consenso dos eurodeputados, o Parlamento Europeu acabaria por emitir um comunicado a pedir o levantamento temporário das patentes, mas a posição europeia continua a ser muito cinzenta.

O outro lado da moeda

As farmacêuticas estão naturalmente interessadas em manter as patentes, mas há mais quem não ache que seja boa ideia o levantamento das licenças. É o caso de Anne Moore, especialista em bioquímica e biologia celular.

Num artigo publicado no website The Vaccine Alliance, da Fundação Bill e Melinda Gates, a especialista lembra que pode existir um problema nas matérias-primas necessárias para produzir as vacinas em países terceiros. Este foi precisamente o único contra apresentado por Aranda da Silva, que também admite o problema.

"O quase instantâneo triplicar da necessidade de materiais específicos vai colocar uma enorme pressão em muitas farmacêuticas e fornecedores", escreve Anne Moore.

Além disso, a transferência da manufaturação para outras instalações requer sempre grandes esforços físicos e financeiros, além de que os novos profissionais a alocar nesses lugares vão necessitar de formação.

"Além disso, são necessárias competências nas áreas clínica, legal, comercial e regulatória", o que pode mudar de país para país, como lembra Anne Moore.

Em vez de centrar o debate nas patentes, a também professora defende antes que se melhore o programa Covax para que se otimize uma distribuição equitativa das vacinas.

"Amem ou odeiem, mas a propriedade intelectual tem um papel central no desenvolvimento de vacinas", termina Anne Moore.

O que dizem as farmacêuticas

As farmacêuticas que detêm as patentes estão firmemente contra a partilha da informação, até porque se esperam anos de grandes lucros, algo que não se vai verificar se o Trips para as vacinas da covid-19 for aprovada.

Em comunicado, a Federação Internacional de Empresas e Associações Farmacêuticas afirmou que “o levantamento de patentes das vacinas contra a covid-19 não vai aumentar a produção ou dar soluções práticas na luta contra a crise de saúde mundial”.

As empresas como a Pfizer, Moderna ou a AstraZeneca alheiam-se da responsabilidade, acusando ainda os países mais ricos de acumularem vacinas em vez de as distribuírem de forma equitativa.

Isso mesmo disse o diretor-executivo da Pfizer em entrevista à BBC. Falando abertamente do assunto, Albert Bourla diz que as vacinas da Pfizer "custaram o preço de uma refeição takeaway" aos países mais ricos e que foram vendidas ao preço de custo para os países mais pobres. Ainda assim, o veterinário de formação admite que tenha havido uma discriminação em relação à altura em que as vacinas foram exportadas, o que justifica com a reserva atempada feita pelos países mais ricos.

Receitas das farmacêuticas
Farmacêutica 2020 2021
Pfizer 36 mil milhões de euros 50 mil milhões de euros (primeiros nove meses)
Moderna 708 milhões de euros 14 mil milhões de euros (primeiros nove meses)
AstraZeneca 23 mil milhões de euros 13 mil milhões de euros (primeiros seis meses)
Johnson & Johnson 72 mil milhões de euros 59 mil milhões de euros (primeiros nove meses)

De referir que a Moderna, ao contrário das outras empresas, era até 2020 uma empresa pequena em dimensão de negócios. Em sentido inverso, Pfizer, AstraZeneca e Johnson & Johnson já tinham mercado na área da farmacêutica. Em relação à AstraZeneca, recorde-se que não está a ser utilizada nos Estados Unidos, por exemplo, um dos países que mais vacinas comprou.

Já a Johnson & Johnson é uma empresa multinacional que trabalha em várias áreas, desde a farmacêutica à cosmética, o que explica que tenha receitas mais elevadas que as restantes.

Alega a indústria que a tecnologia associada às vacinas já foi partilhada com outras entidades, o que vai permitir produzir milhões de doses em todo o mundo. Para que isso se efetive, pedem as farmacêuticas que os governos suspendam os controlos e restrições aplicados a alguns dos produtos necessários para a produção das vacinas.

Dizem ainda as farmacêuticas que as patentes são cruciais para a inovação e a chegada a novos produtos.

“Os incentivos à propriedade intelectual são a fundação em que a inovação é construída: encorajam e protegem a inovação, a pesquisa e o avanço de investimentos em áreas onde ainda não se chegou”, pode ler-se num comunicado da Federação Europeia de Empresas e Associações Farmacêuticas.

Dos 7% aos 59%, a disparidade no mundo

Portugal é um dos países com maior taxa de vacinação em todo o mundo. Cerca de 88% da população já recebeu duas doses, havendo já 1,4 milhões de pessoas com doses de reforço recebidas.

Mas a realidade para o continente europeu é diferente. Incluindo os países europeus que se juntam aos da União Europeia, a média de vacinação completa na Europa é de 58%.

Não chega sequer a ser o continente com maior taxa de vacinação. Esse lugar pertence à América do Sul, que tem 59% da população inoculada com duas doses. Grande parte da responsabilidade vai para o Chile, que já tem 84% da população inoculada.

A média mundial está nos 44%, e África é o único continente abaixo, e bem abaixo. Mesmo contando com os melhores casos, como Marrocos (61% da população totalmente vacinada), África tem apenas 7,5% das pessoas com vacinação completa.

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