Parto em sala de espera "não é inédito" e "pode acontecer a qualquer um", a menos que haja atrasos na resposta médica, diz especialista em obstetrícia. Mas um antigo ministro da Saúde deixa um apelo ao Governo
O Hospital de Gaia, onde um bebé caiu ao chão durante um parto na sala de espera, garante que tudo foi feito segundo os procedimentos, enquanto o pai da criança se queixa daquilo que considera ser uma “completa negligência”. À CNN Portugal, um médico obstetra da Grande Lisboa - cuja identidade pede para manter em anonimato - sublinha que, mesmo que o protocolo tenha sido rigorosamente aplicado, há espaço para imprevistos, nomeadamente em partos desta natureza. “Não é inédito”, afirma, servindo-se do exemplo de “um ou outro caso, ainda há pouco tempo, numa sala de espera”. “Só não teve o infortúnio de sofrer um traumatismo”, lembra.
No caso de a grávida ter sido avaliada e enviada para casa, trata-se até de “uma prática comum” e “pode acontecer a qualquer um”, se a dilatação estiver um pouco atrasada, esclarece o especialista. “Às vezes até sugerem ir passear, fazer exercícios que estimulem as contrações e depois voltam para a maternidade”. Além disso, acrescenta, importa também saber se era o primeiro filho. “Quando já se tem filhos, estes trabalhos de parto costumam ser assim, é necessário ter esse tempo para a dilatação”.
Mas há uma série de perguntas que devem ser feitas, ou de outra forma “é tudo muito especulativo”, sugere. “Primeira, quando a grávida regressou foi novamente avaliada pela enfermagem ou o parto aconteceu sem avaliação? Até que ponto é que voltou a inscrever-se?”. O obstetra explica à CNN Portugal que “uma coisa é inscrever-se na urgência e ir à triagem que é feita por enfermeiros e receber a pulseira”, outra é “ser avaliada posteriormente por uma enfermeira especialista, que até pode decidir internar a grávida”.
"Podemos assumir que este é o protocolo"
Tudo isto consta do “Protocolo Manchester”, que o médico passa a descrever: os utentes chegam às urgências, inscrevem-se, geralmente não têm um grande tempo de latência desde esse momento até serem chamados, segue-se o atendimento pela enfermeira e depois uma triagem por enfermeiros especialistas que fazem uma observação clínica. Mas este último, considera, “não deve ter acontecido”. “O parto deve ter acontecido entre o chegar e não ter dado tempo para a grávida novamente”.
“Não havendo declarações oficiais em contrário, parece-me alguém muito aflito para ter o bebé, e antes de ter sido ativado o que quer que seja já tinha tido a criança”, observa. Ou seja, “a única diferença entre ter chegado e ter nascido ali na sala de espera, e não ter sido num autocarro, na autoestrada ou nos bombeiros é a pontaria”. Por outro lado, “talvez já fosse criticável” se tivesse havido atrasos a chamar a equipa médica ou de enfermagem.
Em relação à recusa de cedência de uma maca por parte da ULS, em vez de uma cadeira de rodas na qual a mulher “não se conseguia sentar” por “o bebé estar prestes a nascer” - como relatou o próprio pai do recém-nascido aos jornalistas - o médico ouvido pela CNN Portugal acautela que tal pode ter ocorrido por “uma questão de disponibilidade”. “Na entrada do Hospital, normalmente temos cadeiras de rodas, até para aquelas pessoas com dificuldades motoras, mas as macas estão dentro dos serviços”.
A decisão de pegar numa maca, explica, “é uma decisão que já passou por uma enfermeira ou por um médico”, ao passo que, quando a utente entra numa sala de espera “aquilo que um segurança ou um auxiliar de ação médica tem para oferecer é uma cadeira de rodas”. “Podemos assumir que este é o protocolo, mesmo que a pessoa não queira”, conclui.
"Deixámos que o ambiente se degradasse"
O caso ocorreu esta terça-feira, duas horas depois de a mãe do bebé ter dado entrada na urgência do hospital e ter sido mandada para casa. O hospital alega que a mãe foi vista por “uma equipa médica experiente”, que considerou inicialmente que a utente se encontrava “em fase latente de trabalho de parto”, e tendo em conta que residia perto da ULS, “teve alta com as recomendações obstétricas habituais”.
A ginecologista-obstetra Evelin Pinto garantiu aos jornalistas que foram feitos “os exames adequados à observação clínica”. “Em Obstetrícia há situações imprevisíveis, nomeadamente trabalhos de parto precipitados. Felizmente são raros, não são norma”, acrescentou.
“Uma coisa é haver problemas relativamente a um sistema em que as pessoas confiam e estão tranquilas, outra coisa é haver problemas num sistema em que as pessoas perderam claramente a confiança e estão assustadas”, analisa Adalberto Campos Fernandes.
Ouvido pela CNN Portugal, o médico e antigo ministro da Saúde concorda que o “erro zero”, que passa pela completa ausência de erros em processos, “não existe”, ainda que os profissionais de saúde “lutem para aumentar a qualidade e a segurança em busca” desse resultado.
“Eu não sei se este caso foi um erro, uma falha, quem tem de apurar, apurará”. Por outro lado, “há algo que é certo e sabido”, salienta: “Existe um forte clima de instabilidade no país, de incerteza, de dúvida. Por exemplo, dois, três ou quatro partos numa ambulância não são 60”.
Ou seja, “deixámos que o ambiente se degradasse de tal maneira que tudo parece ter uma grande amplificação, mesmo as incidências que aconteceriam de forma aleatória ou inesperada em sistemas perfeitos”, observa.
Questionado sobre a possiblidade de ter havido negligência médica, Adalberto Campos Fernandes confirma apenas que, ainda que não sendo um caso de polícia, "tem de ser um caso de investigação interna e externa". Mas acima de tudo, é um "apelo ao Governo" para que "governe e tome medidas".
"Se não forem capazes, assumam, ou hoje é o bebé que caiu em Gaia, amanhã será mais uma grávida que tem mais um bebé numa ambulância, depois será outra grávida que chega a um hospital e a porta está fechada", remata.