Já dizia John F. Kennedy: "A vitória tem mil pais, mas a derrota é órfã." Confrontados com o regresso de Donald Trump à Casa Branca e a conquista do Senado e da Câmara dos Representantes pelo seu Partido Republicano, os democratas estão em pé de guerra e entregues a um jogo de culpas sobre quem foi realmente responsável por isto. Mas as movimentações de bastidores para encontrar um líder carismático que consiga ressuscitar o partido já estão em marcha. O caminho será longo, mas nem tudo está perdido, dizem alguns
Concluídas as derradeiras contagens de boletins de voto na Califórnia e noutros estados onde esse processo é mais demorado, chegou a confirmação: as eleições de 2024 nos Estados Unidos não só marcam o regresso de Donald Trump à Casa Branca, como o Partido Republicano pode reivindicar o hat-trick eleitoral – para além da presidência, garantiu o total controlo das duas câmaras do Congresso, pelo menos até às eleições intercalares de 2026.
As sondagens já antecipavam uma vitória dos republicanos no Senado, mas a maioria dos especialistas julgava com base nesses mesmos inquéritos que os democratas iam conseguir obter uma maioria de assentos, mesmo que curta, na Câmara dos Representantes. Isso não se confirmou e vem adensar as discussões em curso desde 5 de novembro sobre onde é que o partido no poder falhou, o que é que esta derrota a três níveis representa para os democratas e que futuro os espera depois disto.
Assim que a vitória de Trump foi declarada, Bernie Sanders, que perdeu a nomeação presidencial para Hillary Clinton nas primárias de 2016, foi um dos primeiros a pôr o dedo na ferida do que considera ter sido o grande erro do movimento político mais antigo dos Estados Unidos. “Não deveria ser uma grande surpresa que um Partido Democrata que abandonou a classe trabalhadora tenha descoberto que foi abandonado pela classe trabalhadora”, disse o senador do Vermont. “Primeiro foi a classe trabalhadora, agora foram os trabalhadores latinos e negros. Enquanto a liderança democrata defende o status quo, o povo americano está zangado e quer mudanças. E tem razão.”
Após a vitória-surpresa de Trump há oito anos, os democratas foram rápidos a atribuir culpas a uma série de fatores externos, incluindo a alegada interferência russa no processo eleitoral. Mas desta vez, aponta a Associated Press, “acabaram-se as desculpas”, com os resultados destas eleições a mostrarem “que os atuais problemas dos democratas vão bem além da sua máquina política”, sobretudo considerando a perda de popularidade do partido entre vários grupos demográficos que tradicionalmente compunham a sua base de apoio.
“As coligações partidárias foram efetivamente transformadas, realinhadas se quisermos”, diz à CNN Paul Beck, especialista em ciência política da Universidade Estatal do Ohio. “Os republicanos acrescentaram à sua base a classe trabalhadora branca, em especial os que não têm cursos superiores, para além do remanescente dos eleitores tradicionalmente republicanos. Já os democratas acrescentaram brancos com formação universitária, mas os hispânicos, por exemplo, não foram tão fiéis ao partido em 2024. Uma questão interessante para o futuro é perceber se este realinhamento vai perdurar para lá de Trump.”
David R. Shumway, da Universidade Carnegie Mellon, faz outra leitura destas movimentações do eleitorado. “Embora se tenha tornado um lugar-comum falar de ambos os partidos – em particular do Partido Democrata – como sendo compostos por ‘coligações’, penso que isso é um termo errado”, defende o especialista em estudos culturais americanos. “Essa ideia sugere que os vários grupos demográficos são mais organizados e intencionais no seu comportamento do que realmente são. Talvez se possa argumentar que as igrejas evangélicas fazem parte de uma coligação [pró-Trump] porque são organizadas, e o mesmo se pode dizer do movimento laboral que apoia os democratas. Mas para além destes, é mais correto dizer que cada partido atrai diferentes grupos demográficos a diferentes níveis.”
Democratas em pé de guerra
Essa mesma ideia de perda de popularidade entre as bases já era destacada num importante relatório encomendado pelo Partido Republicano após a vitória de Barack Obama em 2012, ano em que o primeiro negro eleito Presidente dos EUA foi reconduzido no cargo, com o seu partido a conquistar maioria nas duas câmaras do Congresso. “Estamos a perder em demasiados lugares”, referia o documento “Projeto de Oportunidade e Crescimento”, que ficou popularmente conhecido como “a autópsia”, no rescaldo da dura derrota do Grand Old Party (GOP).
Desta vez, a dura derrota pertence aos democratas e os dados são evidentes. Se, em 2020, Joe Biden conseguiu praticamente um empate com o rival republicano entre os eleitores sem estudos superiores, desta vez esse grupo deu uma clara vantagem a Donald Trump. Da mesma forma, o número de jovens até aos 30 anos que apoiaram Kamala Harris é inferior ao dos que votaram em Biden contra Trump há quatro anos. E segundo o VoteCast, que escrutina os movimentos de diferentes grupos demográficos em idas às urnas nos EUA, quer os eleitores latinos, quer os afroamericanos, também votaram menos em Harris do que no ainda Presidente Biden.
Já depois de Bernie Sanders ter apontado a mira ao aparente classismo do seu partido, que pouca ou nenhuma atenção prestou à "dor e alienação" que a classe trabalhadora está a sentir, a diretora-executiva do grupo Democratas Pela Justiça apontava os golpes deferidos pela oposição no seio do partido, que ficaram a descoberto nas urnas. “O Partido tem de assumir responsabilidade pela forma como uma segunda presidência Donald Trump se tornou possível sob a sua alçada [e por] estar a perder rapidamente a sua legitimidade entre as pessoas comuns e as comunidades marginalizadas, que continuam a ser usadas como trampolins para ganhar eleições”, destacou Alejandra Rojas. “Mas não há respostas fáceis para o que o país e o partido vão fazer a partir daqui.”
Pelo menos para já, poucos entre os atuais líderes democratas parecem dispostos a encarar de frente esta derrota. Numa grande entrevista ao New York Times, Nancy Pelosi insistia há alguns dias que os resultados eleitorais não se traduziram num chumbo ao partido, com a jornalista a referir como ponto de partida que a ex-líder da maioria democrata na Câmara dos Representantes “parece não querer ou não conseguir admitir” que os democratas tenham sido esmagadoramente reprovados nas urnas.
“Não vejo uma rejeição total do Partido Democrata”, disse Pelosi, apontando a Bernie Sanders e aos que se juntaram às suas críticas internas. “Sinto um certo desconforto com alguns dos democratas que, neste momento, estão a dizer: ‘Oh, nós abandonámos a classe trabalhadora’. Não, não abandonámos. É isso que nós somos. Somos os que se sentam à mesa da cozinha, somos o partido da classe trabalhadora da América.”
Tão inesperada foi esta derrota para os democratas que, quando a Associated Press tentou contactar algumas das figuras mais proeminentes do partido no rescaldo das eleições, poucas se mostraram disponíveis para falar. “A maioria dos democratas eleitos que mais vezes são mencionados como potenciais candidatos às presidenciais de 2028 – incluindo os governadores da Califórnia, do Illinois, do Michigan e da Pensilvânia – recusaram-se a dar a sua opinião. Outros cancelaram entrevistas pré-agendadas.”
Citado pela mesma agência, Jeff Pollock, veterano de sondagens para o Partido Democrata, diz que a campanha de Harris teve pouca sorte no contexto da “rejeição internacional de partidos tradicionais, à medida que as frustrações dos eleitores com a economia foram aumentando”. Mas, para o analista, como para tantos outros, há um ponto essencial com que o partido tem de se confrontar: “Temos de olhar para dentro e questionar-nos sobre o que podemos fazer para reconstruir a nossa relação com a população rural trabalhadora, com os eleitores latinos e com os homens jovens, [que] claramente acreditam que não estamos a dar resposta às suas necessidades diárias.”
À CNN, Paul Beck não se desvia muito dessa análise. “Os maiores problemas para os democratas em 2024 foram a inflação e a falta de controlo sobre a fronteira, mas vejo uma divisão cultural que está a afetar o realinhamento do partido, em particular com os brancos da classe trabalhadora insatisfeitos com uma América mais igualitária em termos de género, pró-minorias, pró-gays, pró-aborto – algo que está latente na retaguarda.”
Anatomia de uma derrota
Têm sido várias as radiografias ao Partido Democrata na última semana e meia, e a maioria dos exames apontam para uma grande causa da derrota. Apesar de alguns sinais positivos das políticas económicas da administração Bien, o americano comum continua a sentir o duro impacto da inflação no bolso, sobretudo na sequência da invasão russa da Ucrânia, o que em parte ajuda a explicar porque é que uma larga maioria dos eleitores optou por eleger um ex-Presidente que é um criminoso condenado, que entrou para a história pela má gestão da pandemia Covid e pela violenta invasão do Capitólio pelos seus apoiantes, e que nesta campanha eleitoral chamou à América “um caixote do lixo do mundo” e ameaçou retaliar contra todos e quaisquer inimigos políticos, dentro e fora do país.
Como referia o deputado democrata Shri Thaneder há uma semana, “os democratas concentraram-se no caráter de Trump, nos seus problemas com a Justiça e no facto de ser um criminoso – mas, em grande medida, as pessoas que estão a sofrer economicamente, que estão em pior situação económica, não prestaram grande atenção ao seu caráter”.
“Não creio que os motivos para as alterações [entre o eleitorado] tenham sido principalmente culturais, mais uma resposta ao fracasso assim encarado das políticas económicas da administração Biden”, diz David Shumway à CNN. “Isto foi verdade apesar de, sob todas as medidas habituais, essas políticas terem sido bem-sucedidas. Mas há uma circunstância invulgar que se destaca: é que a partir de 2020, a resposta à pandemia incluiu um aumento maciço do apoio governamental às pessoas, programas a que Biden queria dar continuidade, só que os republicanos não o permitiram.”
Contas feitas, adianta o analista da Carnegie Mellon, “isto significou que muitas pessoas ficaram subitamente com menos rendimentos, o que fez com que a inflação que chegou na mesma altura parecesse muito pior” – e os democratas poderiam “não ter sofrido tanto com isso se Biden não tivesse permitido que esses programas morressem sem grande oposição”.
Como Shumway, vários especialistas foram rápidos a apontar para o célebre ditame “Foi a economia, estúpido!” nos dias a seguir às eleições, tentando explicar no imediato porque é que os democratas perderam tanto terreno. Mas esse está longe de ser o único motivo para a derrota, que forçosamente empurra o partido para um período de autorreflexão no exílio, sobretudo num momento em que o tradicional combate entre esquerda e direita parece estar obsoleto, dentro e fora da América. “Essa não é uma questão assim tão relevante com Trump”, aponta Paul Beck. “Pró vs. antissistema é mais relevante, a divisão entre populismo vs. establishment, e Trump ainda foi visto como orientado para a mudança.”
Essa já tinha sido a linha orientadora da primeira candidatura de Trump à presidência e, também nessa altura, o outro lado da barricada perdeu uma oportunidade de ouro de fazer um exame de consciência. Em vez disso, como aponta a revista Nation, “todos os democratas com responsabilidades pelo falhanço de 2016 – incluindo Hillary Clinton – encontraram uma forma de culpar toda a gente menos a si próprios”, quando “a chave para entender a era Trump é que a real divisão na América não é entre esquerda e direita, mas entre a política pró-sistema e a política antissistema”.
“Não tenho a certeza do que é que ‘antissistema’ é suposto significar”, riposta Shumway quando confrontado com estas aparentes divisões sociais. “Há na esquerda do Partido Democrata anticapitalistas e muitos apoiantes de Trump são anti-social-democracia. Mas nenhum desses grupos é revolucionário”. Para o especialista da Carnegie Mellon, mais do que reequilíbrios nas orientações demográficas, o que esteve em causa foi uma corrida “tão renhida” que “alterações relativamente pequenas nas preferências do voto popular” fizeram a balança pender para o outro lado.
Isso confirmou-se no último fim de semana com o fim da contagem de votos no Arizona, que veio dar o pleno a Trump nos sete estados mais decisivos da corrida, para Shumway o verdadeiro motor das “grandes alterações no Colégio Eleitoral”.
Uma lição com 20 anos
Nem duas semanas depois das presidenciais, o estado de espírito vigente entre os democratas, apesar dos jogos de culpa que têm reinado a nível interno desde então, é mais de introspeção do que de fúria, apontam vários media norte-americanos. Muitos antecipam que assim continuará, mesmo que eventualmente consigam chegar a um consenso sobre se esta derrota foi mais uma rejeição de Biden e da inflação ou fruto de uma onda mais profunda e global de condenação e castigo aos partidos e candidatos ditos tradicionais. E entre todas as questões com que o Partido Democrata se debate agora, a primeira e mais urgente é só uma: quem vai liderá-lo nos próximos quatro anos de oposição a Trump e depois disso?
A resposta pode demorar a chegar, “mas as conversas e movimentações por democratas ambiciosos focados em 2028 já começaram”, aponta o Politico. “A campanha pública [para as próximas presidenciais] arranca no primeiro dia de Trump no poder, quando assinar a sua primeira ordem executiva”, refere Dan Sena, consultor que liderou o comité de campanha do Partido Democrata ao Congresso. “Mas o trabalho de bastidores começa agora, as movimentações e manobras já estão bem encaminhadas.”
Os nomes em debate são variados, a começar pela possível recandidatura da vice-presidente Kamala Harris e por rostos famosos do partido que têm dado cartas a nível estatal ou federal – caso de Josh Shapiro, atual governador da Pensilvânia, de Gavin Newsom, governador da Califórnia, de Pete Buttigieg, secretário do setor dos Transportes na administração Biden, ou de Gretchen Whitmer, governadora do Michigan. Mas há estreantes nas lides nacionais a ganhar fulgor, desde o governador do Minnesota, Tim Walz – praticamente um desconhecido fora do estado até Harris o ter escolhido como parceiro de corrida – até ao representante da Califórnia Ro Khanna ou ao senador da Pensilvânia John Fetterman.
“Não é que os democratas tenham falta de ideias, de fações, de pistas quentes ou de indignação – é mais que nenhum deles acredita por ora que as grandes questões sobre o futuro do partido sejam respondidas na corrida à próxima presidência do Comité Nacional Democrata, ou, na verdade, que essas perguntas possam obter respostas nos próximos meses”, escreve o correspondente político da New York Magazine, que aponta para o que aconteceu em 2004, quando John Kerry perdeu para o incumbente George W. Bush e o partido se viu mergulhado em desespero e apreensivo quanto à possibilidade de voltar a ganhar eleições nacionais.
Levou, na verdade, menos de um ano para os democratas aprenderem então que "podiam redescobrir a sua identidade ao mobilizarem-se na oposição" ao Presidente republicano – como a senadora Elizabeth Warren já veio pedir que se faça agora com Trump – e que um partido moribundo não é um partido desesperançado. Com as eleições intercalares seguintes, voltaram ao controlo do Capitólio, e ninguém esquece o que aconteceu dois anos depois, em 2008, com a mais histórica eleição da América. Como sublinha Paul Beck à CNN, “neste momento não há nenhum líder democrata que consiga unir os eleitores”, mas isso não é forçosamente o futuro a que o partido está condenado. "Espero que isso evolua com o tempo – especialmente nas eleições intercalares de 2026 e nas presidenciais de 2028.”