Houve quem quisesse Lula a falar durante horas para os deputados do Chega não poderem baixar os braços

25 abr 2023, 16:32

Dentro do dia em que o Chega quis humilhar Lula mas que acabou com Lula a fazer uma vénia ao Chega. Reportagem de Bárbara Cruz no Parlamento

Passava pouco das 7:30 deste 25 de abril e as ruas que abraçam a Assembleia da República, em Lisboa, já estavam cortadas. Os únicos carros que passavam a acelerar, para cima e para baixo, eram da polícia, sirenes desligadas, veículos lotados. Começavam a juntar-se manifestantes do Chega para a prometida manifestação anti-Lula mas ainda não havia cartazes levantados nem palavras de ordem.

Um casal de turistas madrugador ia descendo a Calçada da Estrela com ar de espanto, a apontar para as seis viaturas policiais estacionadas ao fundo da rua. Os poucos cafés abertos serviam pequenos-almoços a agentes da polícia fardados e a escadaria da Assembleia, ainda vazia, preparava-se já para a confusão que havia de chegar com a comitiva do presidente brasileiro: grades alinhadas, mais polícia, funcionários do parlamento solícitos para indicarem outros caminhos aos jornalistas que, afinal, só procuravam a porta lateral para entrar. 

Era esperada grande adesão da imprensa internacional, não para a sessão solene que assinalou esta terça-feira os 49 anos da Revolução dos Cravos mas para a sessão que a antecedeu, de boas-vindas ao presidente brasileiro Lula da Silva. Nas galerias da Assembleia ouvia-se sotaque brasileiro, jornalistas perdidos nos corredores que apreciavam a arquitetura do edifício e questionavam os funcionários do parlamento pedindo pormenores sobre as estátuas por trás da tribuna. "Que beleza", ouvia-se ao longe. 

Nas galerias, a jornalista brasileira Sonia Blota, correspondente em Paris do Grupo Bandeirantes, elogiava a organização portuguesa e a atenção dada à imprensa nos cinco dias em que acompanhou Lula da Silva em visita oficial a Portugal. "O presidente sempre atrasa os eventos, mas há estrutura para encaixar esse atraso", disse à CNN Portugal. "E sempre tem água e café para a imprensa", acrescentava, criticando a "burocracia francesa" que torna a cobertura de grandes eventos em França uma tarefa penosa. Sobre a celeuma em torno da sessão com Lula no parlamento, diz que compreende: "É como se acontecesse no dia 7 de setembro no Brasil", explicou, referindo-se à data da independência brasileira. "Está tudo muito politizado, é um pequeno reflexo do Brasil aquilo que está a acontecer aqui", admitiu. "Mas não vejo a hora de o Brasil olhar para a frente. E tem de ser o governo federal, tem de ser Lula." 

Apesar de, no dia anterior, fonte do parlamento ter garantido à CNN Portugal que não haveria cravos antes da sessão solene do 25 de Abril, a tribuna da presidência estava já emoldurada a vermelho quando se abriram as portas da sala do plenário para que os jornalistas pudessem entrar. Antes das 09:00, alguns convidados já tomavam os seus lugares e começavam a entrar deputados, a maioria já com o cravo na lapela. Rodrigo Saraiva, líder parlamentar da Iniciativa Liberal, substituiu-o por uma fita com as cores da Ucrânia e sentou-se sozinho em representação do seu partido, os restantes deputados ausentes em protesto. Também o líder parlamentar do PSD, Joaquim Miranda Sarmento, mostrou o seu apoio a Kiev com o azul e o amarelo na lapela. Os sociais-democratas distribuíram mesmo pins com as cores da Ucrânia aos deputados que os quisessem utilizar, ainda que o próprio líder social-democrata, Luís Montenegro, não o tivesse usado.

Os cravos vermelhos da liberdade que a Ucrânia procura

Pouco depois das 10:00, Lula da Silva entrou na Sala das Sessões da Assembleia, já após uma sessão de cumprimentos na sala de visitas do presidente da Assembleia da República. Dos deputados do Chega, nem sinal. Entraram já soava o hino brasileiro, quando os correspondentes internacionais, sem esconder o interesse, já questionavam os colegas portugueses sobre o paradeiro da extrema-direita, que não aparecia no hemiciclo. E se, durante o discurso do presidente da Assembleia da República, que abriu a sessão, muitos se demoraram a olhar para o telemóvel, foi quando falou Lula que Ventura e discípulos mostraram o que foram fazer à sessão de boas-vindas ao presidente brasileiro, cada um segurando um cartaz onde se lia "Chega de Corrupção" ou "Lugar de ladrão é na prisão"; dois deputados do Chega seguravam ainda um cartaz com as cores da bandeira da Ucrânia. 

Deputados do Chega durante a sessão de boas-vindas a Lula da Silva(Foto: Lusa)

Santos Silva abriu a sessão lembrando que esta era a segunda vez que a AR recebia Lula Presidente e que "a personalidade que os brasileiros escolhem como presidente é sempre bem-vinda no parlamento português". E disse-lhe: "Consigo, Brasília volta a abrir-se ao mundo". Lembrou que foi a necessidade de conciliar agendas que fez coincidir a visita oficial de Lula com a celebração do aniversário do 25 de Abril, mas frisou que Portugal e Brasil são "países irmãos pela história e pela liberdade democrática". 

O Presidente da AR não deixou, porém, de falar na guerra da Ucrânia, tema sensível para Lula, censurado recentemente pela comunidade internacional ao dizer que Europa e NATO têm incentivado a continuidade do conflito. "Portugal, tal como Brasil, condena a agressão ao povo ucraniano", declarou Santos Silva, passando recados. "O cravo vermelho que hoje celebra a liberdade significa a liberdade por que se batem hoje os ucranianos", acrescentou, recebendo uma forte salva de palmas, que se repetiu quando disse que dependia da Rússia cessar as hostilidades em território ucraniano. E não deixou de citar o título da coletânea de crónicas de Clarice Lispector, brasileira nascida na Ucrânia, para dizer a Lula que a língua é laço estreito entre nações e que "a descoberta portuguesa do mundo começa no Brasil".

"Vergonha no nome de Portugal"

Lula foi aplaudido logo após tomar a palavra, quando disse que teve em Portugal nos últimos dias "a inconfundível sensação de estar em casa, sentimento que acredito que é compartilhado por todos os brasileiros que vivem em Portugal e todos os portugueses no Brasil". Foi também aplaudido de pé quando lançou críticas à extrema-direita e disse compreender a preocupação dos portugueses que viam o Brasil, nos últimos anos, "dar as costas ao mundo".

"Tentaram atrasar o nosso relógio em 50 anos", sublinhou. Sempre que era aplaudido, os deputados do Chega - que durante todo o discurso de Lula da Silva seguraram com os braços no ar os já referidos cartazes - batiam também na mesa, num protesto ruidoso que se sobrepunha aos aplausos e levou mesmo outros deputados nas bancadas a pedirem-lhes que se calassem, com vozes de impaciência. Lula da Silva aproveitava as pausas para beber água do copo que tinha à frente mas os membros do Chega, com os braços a tremer, não desistiram do protesto nos cerca de 20 minutos que durou o discurso do presidente brasileiro, batendo nas mesmas sempre que havia aplausos, em jeito de pateada. Seria Santos Silva o primeiro a perder a paciência: "Se querem permanecer na sessão plenária, os senhores deputados devem comportar-se com urbanidade, cortesia e a educação que é exigida a qualquer representantes do povo de português. Chega de degradarem as instituições, chega de porem vergonha no nome de Portugal", disse-lhes, visivelmente irritado.

O presidente brasileiro seguiu o discurso condenando "a violação da integridade territorial da Ucrânia" e defendeu mudanças no Conselho de Segurança da ONU, que descreveu como "paralisado", colhendo nova ronda de aplausos à esquerda. "Viva a liberdade e a democracia", disse na frase final do discurso, quase inaudível para quem o escutava na Sala das Sessões: ouviram-se palmas, batidas e até gritos na galeria onde ficaram os ministros que acompanharam Lula na visita a Portugal.

Lula da Silva discursa na Assembleia da República (Foto: Lusa)

No final da sessão solene, depois de Lula terminar a intervenção, Santos Silva quis mesmo pedir desculpa ao Presidente brasileiro pelo comportamento dos deputados da extrema-direita. "Senhor Presidente, deixe-me pedir desculpa em nome do Parlamento português e agradecer-lhe pela coragem e educação de que deu provas", disse-lhe o presidente da Assembleia da República. E o próprio Lula não deixou o Chega sem resposta: de saída, fez uma vénia irónica na direção da bancada de André Ventura e, ainda antes de chegar aos Passos Perdidos, já dizia aos jornalistas: "Cena ridícula, que papelão fizeram".

"Era o previsível, não é?"

Sérgio Utsch, correspondente na Europa da emissora brasileira STB, acompanhou toda a sessão de Lula no parlamento e não deixou de notar como a comitiva ministerial que viajou com o presidente terminou a cantar a plenos pulmões o hino do Brasil na galeria. "Ficaram animados", riu-se, enquanto arrumava o tripé, one man show da cobertura jornalística. "Era o previsível, não é?", disse, sem esperar que perguntassem: "A esquerda aplaudindo, a direita também mas mais envergonhada, a extrema-direita fazendo merda". Quem ficou na Sala das Sessões começou entretanto a cantar "Grândola, Vila Morena" e o jornalista quis saber porquê. "Que bonito, é muito emocionante isso aí", respondeu deliciado quando soube que a música de Zeca Afonso entoada pelos deputados, e que havia de se tornar hino da Revolução dos Cravos, servira de sinal ao avanço dos militares.

Lula da Silva ainda passou pelos Passos Perdidos e teve direito a nova sessão de cumprimentos. Muitos deputados seguiram-no e quiseram pôr-se na fila para lhe apertar a mão, outros comentavam em voz baixa os discursos, as necessárias negociações para o fim da guerra na Ucrânia, o protesto pouco silencioso do Chega. Havia quem comentasse que o discurso de Lula devia ter durado horas só para os deputados que seguravam cartazes não poderem baixar os braços. 

Logo que Lula da Silva deixou o parlamento, sem assistir à sessão solene do 25 de Abril, saíram também muitos jornalistas brasileiros, dando por terminado o trabalho durante a visita de Estado a Portugal. "Quando apanhar o avião para Madrid, não é mais trabalho nosso", ouvia-se nos corredores, sorrisos de alívio depois de cinco dias preenchidos.

Desmobilizou também a manifestação de apoio a Lula da Silva e a Rua de São Bento tornou-se corredor de manifestantes enrolados em bandeiras brasileiras e com t-shirts com o rosto estampado do Presidente. Do outro lado da AR seguia ainda a manifestação anti-Lula convocada pelo Chega, que recebeu a visita dos deputados do partido no intervalo entre a sessão de boas-vindas a Lula e a sessão solene de comemoração do 49.º aniversário do 25 de Abril. Subindo a rua, um homem de meia idade que envergava um colete amarelo refletor com o símbolo da Câmara de Lisboa não resistiu aos gritos distantes e respondeu, virando-se para trás, os olhos muito abertos de irritação, braço erguido e punho fechado aos socos no ar: "Fascistas, racistas, não passarão".

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