Este domingo assinala-se o Dia do Pai. Mário Santos é investigador e professor universitário, mas também é pai, doula e consultor de "babywearing". Porque o feminismo não é só uma batalha das mulheres: os homens também estão na luta pela igualdade na parentalidade e pela liberdade de serem quem quiserem
Às vezes metem-se com ele no comboio. "Está a tricotar? Que curioso." Também há quem repare nas unhas, que podem ou não estar pintadas. No cabelo comprido e desgrenhado. No à-vontade com que troca uma fralda ou amarra alguma das filhas no pano para transportá-la junto ao peito. Estamos em 2023 e Mário ainda sente os olhares, de espanto ou de reprovação, tal como sentia quando era pequeno e dizia que não gostava de jogar à bola. A diferença é que, aos 38 anos, Mário Santos já não se encolhe nem sente vergonha. “Pai feminista”, é assim que se apresenta no seu perfil de Instagram, para logo a seguir fazer uma "ode aos homens em desconstrução".
Mas não é tudo. Além de pai e feminista, Mário é professor universitário e investigador na área da saúde materna, é doula e consultor de babywearing. Há mais algum estereótipo por aí que falte derrubar? Mário ri-se. “Ainda há muita pedra a partir nestes preconceitos dos homens”, diz. Ainda continua a ser problemático os bebés-rapazes terem um berço cor-de-rosa. Ou os meninos terem cabelo comprido. Ou os homens pintarem as unhas. “Nestes aspectos os rapazes ainda estão a léguas da libertação”, diz. “Quão libertador pode ser sacudimos de cima de nós estas normas sociais de género quando elas se tornam limitadoras, uma barreira a sermos quem realmente somos.”
Foi por isso que a página de Instagram se tornou importante. Ao início, servia apenas para divulgar o babywearing e ensinar formas de amarração dos panos para os bebés. Mas, rapidamente, Mário percebeu que muitas das pessoas o seguiam não por causa do babywearing mas por ser um homem com um bebé ao colo. “Isso é que tinha mais impacto”, conta. “Um homem a cuidar dos filhos ainda é uma coisa extraordinária.” Então, tomou a decisão consciente de começar a usar a página para dar visibilidade a estas questões, para favorecer a diversidade e para que mais pessoas possam ter modelos de homens que não correspondem a uma “masculinidade tóxica”. Queria "fazer chegar estes temas a pessoas que não estão a pensar nisto e que estão só a fazer scroll e de repente reparam num homem com um bebé no pano ou um gajo a fazer tricot”. Hoje já tem mais de 11 mil seguidores.
O feminismo não é defender as mulheres, é defender a igualdade e a liberdade, afirma. “Ainda faz confusão (a homens e mulheres) que homens queiram ter um papel ativo no cuidar. Não é ajudar e estar presente na vida dos filhos, é cuidar, o que significa tomar algumas decisões e fazer tudo o que a minha companheira faz", conta. "Isto tem sido um processo também para mim porque também eu fui socializado para um determinado tipo de parentalidade e, por isso, não era completamente óbvio que esse pudesse ser o meu papel. Mas esse tem de ser o meu papel, isso para mim é óbvio.”
O enfermeiro que começou a questionar os procedimentos hospitalares
Mário estudou enfermagem. Quando trabalhou em centros de saúde descobriu que gostava da área da saúde materna, nos hospitais acabou por trabalhar em serviços de obstetrícia. O caminho já estava a ser feito, mesmo que ele não se apercebesse. “Sempre tive uma apetência para o cuidar, por isso fui para enfermagem”, diz. Depois, queria continuar a estudar e fazer investigação e decidiu fazer o mestrado em Sociologia da Saúde. "Aí, encontrei uma perspetiva crítica, que me faltava. Fiquei completamente apaixonado e ‘desinstalado’, comecei a questionar muita coisa, a perceber que algumas coisas não faziam sentido e a ver que havia de facto muitos marcadores sociais no nosso trabalho.”
Como é que as decisões e os procedimentos na área da saúde materna têm a ver com a posição que a mulher ocupa na sociedade e com as estruturas de poder que estão instaladas?, perguntou-se. Escolheu como tema para a investigação de mestrado o parto em casa. Entrevistou 18 famílias, queria perceber porque é que escolhiam esta opção e como era essa experiência, que barreiras enfrentavam, que estereótipos é que lhes estavam associados. No doutoramento, tentou abrir um pouco mais o foco e perceber os percursos dos profissionais que acompanham estas famílias.
“A sociologia acordou-me à tareia para estes assuntos”, diz Mário, que se habituou a ser o "tipo estranho na sala de aula". “Se uma mulher quer trabalhar determinados assuntos relacionados com reprodução, família, gravidez e parto, ninguém questiona, está tudo normal. Mas ter um homem a pensar sobre gravidez e parto é uma coisa estranha. É muito difícil aceitarem que pode haver um interesse genuíno, é como se não tivesse legitimidade para estudar estes temas.”
Nem de propósito, durante o doutoramento nasceu a sua primeira filha. E, de repente, a teoria tornou-se prática. “Fui confrontado com a complexidade das decisões e do que é ter um parto em casa. Não é uma decisão nada linear e não é uma questão de moda, como algumas pessoas dizem. Não é fácil nem mesmo para uma pessoa que estava tão informada como eu”, concluiu. “Ser pai enriqueceu-me mas não acho que seja uma necessidade ter passado por este processo para poder falar destes assuntos com propriedade.”
O que Mário concluiu na sua investigação, e confirmou depois na sua experiência, é que, para a maioria das famílias, o parto em casa não surge como uma evidência. “As pessoas, de uma maneira geral, querem estar nos hospitais porque é mais seguro. Ninguém quer voltar ao antigamente. Mas se dizem a uma mulher que ela vai ter de estar amarrada a uma cama, que não se pode movimentar, que lhe poderão fazer um corte… é normal que ela procure alternativas. E era importante perceber o que é que isto nos diz sobre o modo como os cuidados hospitalares estão desenhados”, diz o investigador.
O que se passa na saúde materna - e na saúde em geral - “é o reflexo do nosso sistema de poder, onde há posições que são muito estáveis há muitos anos, e para a maior parte das pessoas isto é útil e confortável, quer para quem tem o poder, quer para quem não tem. Porque há muitas pessoas que preferem dizer: Você é o médico, decida.” Mas também há quem questione, quem queira ter uma palavra a dizer. “Muitas famílias optam pelo privado porque aí têm mais voz, mais capacidade de decidir, no fundo é isso que as pessoas precisam. Da mesma forma, se tivessem garantias de que poderia ser diferente, provavelmente muito poucas pessoas continuariam a querer ter um parto em casa. A questão não é o hospital ou a casa, é as pessoas terem voz e possibilidade de decidir.”
O mesmo acontece com os profissionais de saúde: “Há profissionais que começam a assistir partos em casa porque no hospital, que é onde gostavam mais de trabalhar, não podem fazer o que acham melhor. Não podem contrariar as regras do serviço". Mário, que é enfermeiro, sabe como as coisas funcionam. “Os médicos não são os mauzões. As pessoas nos hospitais não agem desta forma porque queiram prejudicar as grávidas. As pessoas acreditam mesmo que esta é a melhor maneira. A episiotomia é um bom exemplo. Ninguém ganha com uma episiotomia. O médico até vai perder mais tempo porque tem de cortar e depois suturar, a mulher pode ter mais problemas com a cicatrização e tem que voltar ao hospital mais vezes. Os médicos fazem o corte porque efetivamente acreditam que aquilo é o melhor para aquela pessoa. De uma forma paternalista, de uma forma que não tem em conta a história e a vontade daquela pessoa, mas fazem-no com boa intenção.”
“No nosso dia a dia, não questionamos nada. Haver normas é importante, mas questionar também é importante”, considera. No que toca à saúde, não há muito espaço para pensar em alternativas. No hospital as relações de poder são bem claras, a autoridade médica é inquestionável. Mas se essa posição dogmática é questionável, mais importante se torna questionar quando estamos perante um ato que é mais fisiológico do que médico. “As pessoas que pensam em alternativas para o parto hospitalar são aquelas que já pensavam em alternativas noutros aspectos da sua vida, acerca do sistema político, acerca da sociedade, acerca da educação, tinham uma posição crítica noutros assuntos. Por isso é que o parto em casa está muito associado aos hippies e aos anarquistas - essas pessoas estão numa posição, se quisermos, privilegiada, com mais ferramentas para pensarem e interrogarem.”
Um homem pode ser doula?
No seu processo de investigação, Mário falou com muitas pessoas, fez leituras, participou em conferências, assistiu a partos em casa e frequentou um curso de doulas. Fê-lo, primeiro, como investigador, porque lhe interessava perceber o que era aquele trabalho. Mas acabou por aceitar o desafio de fazer o curso como aluno. “Foi um curso muito exigente do ponto de vista emocional, levantou-me muitas questões que contribuíram para a minha investigação mas que também mexeram muito comigo.”
Depois disto, como poderia voltar a ser enfermeiro num hospital? “Seria muito complicado”, admite. Por isso, decidiu continuar o seu caminho como investigador nesta área, ligado a universidades e também dando aulas, ao mesmo tempo que trabalha como doula e formador de doulas (abordando questões ligadas ao género e à diversidade).
Um homem doula? Mas isso é possível? Ainda há quem se surpreenda, mas também há quem confie nele e contrate os seus serviços. “Esta figura da doula está muito associada a um passado romantizado em que as mulheres quando estavam grávidas falavam umas com as outras, como se tivessem um segredo, e faziam tricot juntas e depois a mulher estava a parir e as outras mulheres estavam todas ali à volta, de mãos dadas, numa espécie de irmandade. E só por isso é que nós podemos achar um pouco estranho haver um homem a fazer este papel da doula. Mas os partos não são assim e a doula não é isso”, começa por explicar Mário.
Na verdade, ser uma boa doula tem mais a ver com as características de cada pessoa do que com o facto de ser homem ou mulher, defende Mário. “A doula pode ser muita coisa. A ideia nunca é acompanhar a gravidez do ponto de vista clínico, é um complemento, é uma rede de apoio quando na nossa sociedade essa rede quase não existe. Pode ser simplesmente alguém com quem se pode ir ao café e dizer, sem julgamentos, os medos que se tem, aquilo que se quer. Há doulas que trabalham mais a parte espiritual, até esotérica; outras têm competências mais físicas, de consciência corporal, trazem o yoga. E eu também trago a minha bagagem e uma parte dessa bagagem tem a ver com o ter sido educado numa sociedade onde os homens ocupam uma determinada posição. E claro que isso também traz particularidades ao meu acompanhamento.”
Um "homem em desconstrução"
A desconstrução não começou com a sociologia nem com a paternidade, começou antes, com o viver em conjunto com outra pessoa. Porque é que eu estou a fazer isto e tu estás a fazer aquilo? “Muitas vezes o questionamento partiu da minha companheira. Foi muito útil que tenha havido esse abre-olhos, porque isso ajudou-me a mudar as minhas lentes para depois conseguir ver que não fazia sentido haver esta divisão e estas diferenças entre aquilo que ela pode fazer e o que eu posso fazer.”
Há um assumir que o papel do cuidar é da mulher. E se não o fizer é má mãe - ainda existe esse fardo para a mulher. “Não é por causa da amamentação que a maior parte das licenças de parentalidade são gozadas pela mulher, é assim porque as mulheres de uma forma geral são educadas para serem mais competentes a cuidar. Brincam com bonecas, brincam às casinhas, são ensinadas a arrumar e a cozinhar. Isso hoje ainda acontece. E molda as pessoas. Os homens são mais competentes a fazer umas coisas e as mulheres outras, porque somos ensinados assim. Há homens que nunca pegaram num bebé, nem de plástico, porque a única vez que tentaram brincar com um boneco alguém lhes disse 'larga issso' ou chamou-lhe 'mariquinhas'.”
Os estudos mostram que, "mesmo dentro de casais igualitários, onde já há um esforço consciente de tentar fazer uma divisão mais equilibrada das tarefas, há divisões que são coerentes com as divisões do género - por exemplo, ela trata mais da roupa, ele fica responsável pelo carro". Interromper estas rotinas que estão instaladas, por defeito, no nosso modo de vida, é uma batalha diária, também para Mário. Como companheiro e como pai.
“Paternidades - de pai para pai” é um encontro de pais que acontece nos primeiros sábados de cada mês, na Biblioteca de Marvila, em Lisboa. A ideia foi de um outro pai-em-desconstrução, André Sobral, e para Mário tem sido uma experiência muito positiva encontrar outros pais que pensam como ele. "É uma proposta muito simples: venham, sentem-se, conversem se quiserem conversar, ou fiquem só a ouvir. É um encontro muito pouco estruturado, não damos palestras. Têm sido encontros incríveis. Claro que se estão ali é porque se calhar aqueles homens já têm algum trabalho de reflexão antes, mas também é bom podermos refletir em conjunto, por exemplo, sobre a frustração que sentimos quando a criança não nos quer e prefere a mãe, ou sobre perda gestacional e o quanto isto é invisível, e ainda mais para os homens." Aos poucos, os homens começam a falar abertamente sobre a parentalidade, sobre os seus medos e inseguranças, sobre o papel que querem assumir.
Os tempos estão a mudar? Mário hesita. “Há uma evolução, é mais fácil encontrar pessoas que pensam sobre estas coisas. Eu acho que as coisas estão a mudar, mas depois dou três passos fora da minha bolha e vejo que ainda está tudo longe do ideal, não sei se a sociedade efetivamente está a mudar. É tudo muito bonito mas depois quando é para partilhar a licença é a mulher que fica em casa. As mulheres têm mais doutoramentos mas depois são elas que cozinham. São os homens que continuam a conseguir gerir melhor o seu tempo para poder dedicar-se mais ao trabalho. Quem é que escolhe a roupa das crianças? Quem é que se lembra das atividades das crianças? Quem é que pensa o que vai ser o jantar? Claro que há pequenos pontos de mudança, e isso é positivo. Mas ainda nos falta andar muito.”