ENTREVISTA || Joana Rita Sousa define-se como “filósofa e perguntóloga”. Diz que é importante desenvolver o pensamento crítico nas crianças (até nos bebés) e que, para isso, é preciso um ingrediente fundamental: “o diálogo"
Acreditar que o pensamento crítico deve começar a desenvolver-se cedo, mesmo antes de se saber ler ou escrever… ou até falar, é um ponto de partida que desafia muitos dos modelos tradicionais de educação. Joana Rita Sousa, que se define como “filósofa e perguntóloga”, tem feito disso a sua missão: incentivar crianças (e os adultos que as rodeiam) a pensar com mais clareza e curiosidade. A pensar com mais perguntas.
Criadora do projeto Filocriatividade, já dinamizou mais de duas mil oficinas de filosofia para crianças em escolas, bibliotecas, museus ou até cemitérios, mostrando que qualquer espaço pode ser um ponto de partida para o pensamento crítico.
Nesta entrevista, fala-nos da importância do diálogo, da escuta ativa, do espanto e de como até ver um peão a atravessar a estrada pode ser uma oportunidade para filosofar.
Define-se como “filósofa e perguntóloga”. O que é uma “perguntóloga”?
A ideia é de um senhor chamado Warren Berger que tem vindo a estudar as perguntas. Ao procurar um nome específico para essa atividade, Berger compreendeu que o nome não existia. Criou a “questionology”, a perguntologia, que é o estudo das perguntas.
Na minha investigação e na minha prática procuro compreender o que é uma pergunta, que efeito provoca uma pergunta num diálogo, que perguntas ajudam a responder, que perguntas trazem outras perguntas “lá dentro” e por aí fora.
O título do seu livro sugere-me uma pergunta muito abrangente: Como desenvolver o pensamento crítico nas crianças?
A minha resposta abrangente é: desenvolvendo o nosso próprio pensamento crítico.
Mas o que é ter pensamento crítico?
Uma pessoa que pensa criticamente é alguém que tem o cuidado de analisar o problema, a pergunta, a situação, sem se precipitar. Não se trata só de dominar elementos técnicos, mas também de desenvolver a sensibilidade ao contexto para poder decidir o que fazer e como se posicionar.
A partir de que idade é que é aceitável ou recomendável começar a desenvolver esse tal pensamento crítico numa criança? Um bebé que está a aprender a falar, por exemplo, está apto para esse desenvolvimento?
Alison Gopnik é uma autora que tem vindo a estudar a forma como os bebés desenvolvem o seu pensamento. Há um livro traduzido em português, intitulado O Bebé Filósofo, que recomendo.
Tendo em conta que a minha abordagem ao pensamento crítico passa pelo diálogo, diria que quando a mãe, o pai ou outra pessoa adulta cria momentos de conversa com a criança, interagindo num vai e vem de pergunta e resposta, está a modelar uma prática de escuta, além de estar a criar momentos de relação com o mundo e a sua tradução em palavras. Portanto, um bebé que está a aprender a falar terá muitos benefícios em estar rodeado de pessoas que conversam.
Dinamiza oficinas de filosofia para e com crianças, um pouco por todo o país. Diz que também aprende com eles. O que é que lhes ensina e o que é que aprende com eles?
Aprendo que o óbvio não é assim tão óbvio quanto parece. Tenho vários momentos de “nunca tinha pensado nisso”.
A criança está mais disponível para explorar possibilidades e essa atitude convida-me a praticar esse exercício. O meu papel passa muito por assinalar como pensámos, sublinhando momentos de pensamento crítico. Com frequência torno visível a terminologia do pensamento crítico no diálogo. Há dias, numa oficina, uma criança disse “isto não tem lógica”. A palavra lógica foi usada pela criança, não por mim. O que fiz foi perguntar o que queria dizer com isso. Uma vez esclarecido esse sentido, foi possível ao grupo investigar se as ideias que partilhámos durante o diálogo tinham ou não lógica.
O que é que faz exatamente nessas oficinas?
O ponto de partida pode ser um jogo, uma pergunta, uma imagem ou até um lugar. Por exemplo, tenho feito oficinas de filosofia em Museus e o diálogo acontece a partir de algo que encontramos no Museu. As oficinas que tenho desenvolvido nos Cemitérios de Lisboa também têm uma ligação com o lugar, que convida a pensar sobre a morte e sobre a vida.
A partir daí, convido as crianças a fazer uma pergunta, a partilhar um comentário e o diálogo desenrola-se.
As oficinas são espaços de incerteza, pois não sei o que é que as pessoas vão perguntar ou dizer. Tenho de escutar o que dizem e trabalhar a partir daí. Estou sempre curiosa para ver o caminho do diálogo. No final, avaliamos a maneira como estivemos a pensar, sublinhamos ideias que nos surpreenderam ou partilhamos alguma ideia ou pergunta que não tivemos oportunidade de dizer.
São destinadas a que faixas etárias?
Trabalho com crianças a partir dos três anos. É comum fazer oficinas para certas faixas etárias, porém também trabalho em contextos intergeracionais, precisamente para promover espaços de escuta da infância.
Qual foi a maior surpresa, a pergunta mais inquietante ou a provocação mais eficiente que já teve nessas sessões?
Recordo-me de uma situação em que estávamos a escolher uma pergunta para trabalhar. Tratava-se de uma turma do 3.º ano do 1.º ciclo. Alguém sugeriu a votação para podermos fazer essa escolha e foi assim que avançámos, não sem antes esclarecer como ia funcionar a votação. O grupo decidiu que a pergunta escolhida seria a mais votada. Há uma criança que se aproxima de mim e diz: “Nas votações ganha a maioria. E se maioria estiver errada?” Esta pergunta tem feito eco em mim.
Os meus filhos precisam de frequentar as suas oficinas para desenvolver o pensamento crítico ou eu, como mãe, tenho capacidade para o fazer?
Uma mãe ou um pai pode trabalhar o seu pensamento crítico. É como ir ao ginásio: assumimos um compromisso e criamos uma rotina. O livro tem várias sugestões para que possamos criar o nosso próprio ginásio do pensamento crítico. Ajudará sempre se as pessoas adultas tiverem a oportunidade de frequentar oficinas de pensamento crítico.
Qual é o papel da escola nesta função de desenvolver o pensamento crítico das crianças? As escolas públicas estão preparadas para isso?
Muitos dos documentos essenciais e orientadores da prática escolar sublinham a importância do pensamento crítico e do pensamento crítico. Dou formação a professores e reconheço que nem todas as pessoas nas escolas se sentem seguras na temática do pensamento crítico. Acredito que a oferta de formação contínua nessa área poderá ajudar as pessoas a conquistar essa segurança.
Hoje, vivemos um tempo dominado pelas novas tecnologias, pelos jogos online, pelas redes sociais… isso rouba-nos tempo para desenvolver o pensamento crítico dos nossos filhos? E rouba-lhes a eles a capacidade inata (que julgo que todos temos) para o fazerem?
Se estamos a ser roubados e até sabemos quem é o ladrão, então podemos fazer alguma coisa. Afastamo-nos desse ladrão. Se tenho consciência que estou a passar muito tempo a fazer X e deveria canalizar esse tempo para Y, então tenho de me rever a forma como distribuo o meu tempo. Não estamos condenados a ser engolidos pelas redes sociais, temos de fazer um esforço para nos regularmos. Trata-se mesmo de um esforço deliberado.
Se o meu médico me diz que corro riscos de hipertensão e tenho de cortar no sal, então tenho de criar mecanismos para cortar no sal. Tem de ser claro para mim que quero cortar no sal e também tem de ser claro que será difícil, pois tenho de planear melhor as refeições, repensar as compras que faço no supermercado. Abusar aqui e ali também faz parte do processo, porém o foco é “cortar no sal”.
São uma ameaça para o pensamento crítico?
Podem ser uma ameaça ou uma oportunidade. Pensar criticamente também passa por gerir bem os assuntos sobre os quais me vou debruçar para definir um posicionamento. O Oliver Burkeman tem um livro que se chama “4.000 semanas” e que nos lembra que o nosso tempo é limitado. Como é que vamos vivê-lo? Dentro do que está ao nosso alcance, que escolhas podemos fazer? Tenho mesmo de estar nas redes sociais? E se estiver, posso controlar o tempo que por lá gasto? Que hábitos devo cultivar para “cortar no sal”?
É fundadora da Filocriatividade. Do que se trata?
A Filocriatividade é o nome do projeto que iniciei em 2008. Já desenvolvi cerca de 2100 oficinas para crianças e jovens, desde o jardim-de-infância até ao ensino secundário. Também tenho criado e ministrado formações para pessoas adultas que trabalham na área da Educação. Tenho trabalhado em Portugal (de Norte a Sul e ilhas dos Açores e da Madeira), e também em Espanha e Moçambique. Graças às videoconferências tenho colaborado com pessoas e projetos dos Estados Unidos, Brasil, Roménia, Reino Unido e Espanha.
Dinamizo oficinas nos mais diversos contextos: jardins-de-infância, escolas ou bibliotecas escolares, bibliotecas municipais, museus, cemitérios, ginásios, escolas de floresta, universidades seniores, festivais literários. Colaboro com o Festival de Filosofia de Abrantes desde a sua 1.ª edição, em 2017. Na companhia da Celeste Machado criei os encontros de filosofia para/com crianças e criatividade, Sentir Pensamentos | Pensar Sentidos. Em junho, participo no Festival Internacional de Filosofia de Cascais.
Desenvolver o pensamento crítico e a criatividade trazem inquietação. Ela tem só impactos positivos ou pode também ter impactos negativos?
Pensar inquieta. As consequências dependem muito da pessoa que está a atravessar esse processo de pensamento e das suas circunstâncias. Há momentos em que o melhor a fazer é suspender o pensamento crítico: nem todas as situações ou decisões da nossa vida exigem essa energia, tempo e atenção.
Diz que o desenvolvimento do pensamento crítico começa em pequenas atitudes do dia-a-dia. Dê-nos, por favor, exemplos concretos.
Os tempos de ida e regresso à escola podem ser um momento de prática de pensamento crítico. Imagine que estou com uma criança e temos de atravessar a estrada. O sinal está vermelho para os peões, mas não há carros à vista. Ao nosso lado, uma pessoa atravessa a estrada, com o sinal vermelho. Podemos perguntar: será que podemos atravessar mesmo com sinal vermelho? O que pode levar alguém a atravessar a estrada com o sinal vermelho? Temos aqui uma oportunidade para explorar as razões para esperar pelo sinal verde ou para atravessar com o sinal vermelho e sem carros à vista.
Sei que a regra é esperar pelo sinal verde, porém já atravessei a estrada com o sinal vermelho para os peões. Aposto que também já fez o mesmo. O que nos faz desviar da regra que assumimos como linha orientadora? Como é que o contexto influencia essa decisão?
Fala da importância de praticarmos o espanto. O mundo em que vivemos ainda nos pode provocar espanto positivo?
Este mundo não está assim tão mau. Bobby Duffy diz no livro Os Perigos da Perceção: “O mundo atual e a sua evolução são ambos melhores do que tendemos a pensar.” Há muita coisa má no mundo, porém também temos tido progressos incríveis a vários níveis.
Com isto não quero dizer que tudo esteja a correr bem, nem quero dizer que todas as decisões tomadas até agora pelos mais diversos membros desse coletivo chamado Humanidade tenham sido ótimas. Há margem para fazer melhor hoje, em relação a ontem.
O seu livro está escrito para adultos, mas os verdadeiros destinatários são as crianças. Diz que devemos olhar para elas “no mesmo plano”. O que é que isso quer realente dizer? Como é que se faz isso? Não é “nivelar por baixo”?
Devemos considerar que as crianças são seres pensantes. As crianças não são o futuro ou o que querem ser quando forem grandes, as crianças são o presente e estão a descobrir o mundo. Dizer que estar lado a lado com uma criança, a descobrir o mundo, é nivelar por baixo implica assumir uma certa arrogância intelectual por parte da pessoa adulta.
A meu ver, pensamento crítico consiste na prática da humildade intelectual para com as pessoas que nos rodeiam, o que inclui crianças e jovens. Diria que se ajuda muito olhar para a criança como uma pessoa.
Há uns anos num jardim-de-infância, na sala dos cinco anos, perguntei às crianças quantas pessoas estavam na sala. As crianças contaram três: eu, a educadora e a assistente operacional. Para aquele grupo, uma criança não era uma pessoa, pois ser pessoa está associado a adulto. O diálogo seguiu com a investigação do que é ser pessoa.