“Todas as crianças preferem fazer algo com os pais a um telemóvel. Até mesmo os adolescentes”

1 dez 2024, 08:00
Inês Sottomayor

ENTREVISTA || Inês Sottomayor era arquiteta e atualmente é coach infantojuvenil. Em conversa com a CNN Portugal salienta que se os “os pais dizem que o seu maior projeto são os seus filhos”, então, devemos projetar a nossa relação com eles, em vez de deixarmos essa construção ir acontecendo. “Podemos criar um plano, ajudá-los a definirem o seu percurso”

Era arquiteta e a maternidade mudou-lhe o sentido dos traços da vida. Tornou-se coach infantojuvenil e foi cofundadora da Associação Portuguesa de Coaching Infanto Juvenil (APCIJ). Inês Sottomayor acaba de lançar o livro “Aprender a Ser - Como desenvolver as capacidades emocionais e sociais dos seus filhos”. Numa abordagem próxima, e através de reflexões e exercícios práticos, para serem feitos individualmente ou em família, a autora, que já acompanhou centenas de crianças e famílias, mostra não só como potenciar as competências de cada jovem, mas também como trabalhar e melhorar as dinâmicas familiares.

Em conversa com a CNN Portugal, falou da importância da família, dos problemas enfrentados pelos pais dos nossos dias e de como a “insegurança dos pais lhes torna a parentalidade mais difícil”. Inês Sottomayor sublinha ainda o valor do “acreditar” em nós e nos outros e constata que “as competências que os pais e professores mais sentem falta são a empatia, a motivação e a comunicação”.

No novo livro, Inês Sottomayor dá ferramentas a pais e educadores para ajudarem as crianças desenvolver competências sociais e emocionais. (Arquivo pessoal de Inês Sototmayor)

 

Como é que uma arquiteta vai parar ao coaching infantojuvenil?

Por necessidade. Todos nós só mudamos comportamentos, rumos, profissões, qualquer coisa, porque precisamos. No meu caso não foi diferente. Precisava de lidar com algumas situações dos meus filhos e como não sou de ficar de braços cruzados, nem de me contentar quando não vejo resultados, fui à procura. Encontrei no coaching as ferramentas que me ajudaram e muito. Tive mudanças grandes nos comportamentos e na dinâmica familiar, o que me fez procurar mais conhecimento, fundamentado e com base científica, como é o caso da psicologia positiva. A certa altura do caminho fez sentido não ser só de uso próprio, mas partilhar e utilizar com outras famílias todas estas técnicas. Naturalmente passei de arquiteta de casas para arquiteta de sonhos. Foi um caminho que não previ quando o iniciei, mas que fez todo o sentido que o seguisse e ainda bem que o fiz.

O que faz exatamente uma coach infantojuvenil? Em que situações concretas atua?

Um processo de coaching infantil ou juvenil atua diretamente com as crianças e jovens, sempre considerando o sistema familiar. Os pais (ou quaisquer cuidadores) também são chamados para participarem de forma ativa no processo. É um grande apoio em todas as questões comportamentais, tais como a desmotivação e desinteresse, conflitos entre irmãos ou dificuldade em socializar, birras, gestão das rotinas, dormir na própria cama, inseguranças, falta de confiança ou de autoestima, entre outras. No fundo são todas aquelas situações que de alguma forma perturbam o dia a dia familiar e prejudicam a criança ou jovem e onde sintam necessidade de desenvolver competências.

É, portanto, direcionado para as crianças e não para os pais…

Também pode ser uma ajuda direta aos pais através de um processo parental, que tem uma duração mais curta, em que o objetivo é dar ferramentas para os pais lidarem com os desafios do dia a dia, que muitas vezes são os que mais desgastam e interferem no bem-estar da família e até conjugal.

É uma área ainda desconhecida em Portugal. Ainda se estranha quando se ouve falar do assunto?

O coaching em geral penso que já seja bem conhecido. Talvez mais no mundo corporativo e na vertente do life coaching, nem sempre pelas melhores razões, por isso é tão importante a regulamentação da formação e um código deontológico de atuação, para proteger quer o cliente, quer o profissional e haver responsabilidades. Esse é também um dos papeis da Associação Portuguesa de Coaching Infanto Juvenil (APCIJ) que fundei com outros colegas, em 2021.

A área do coaching infantojuvenil ainda é pouco conhecida e talvez confundida com algumas outras áreas da parentalidade, por isso trazer conteúdo fidedigno e responsável é tão importante para que os conceitos estejam claros. Felizmente já há cada vez mais apostas neste âmbito por parte de escolas e outras entidades que lidam diariamente com crianças. A formação dos agentes da educação é um dos pilares desta abordagem que pode fazer toda a diferença.

O que é que difere o coaching infantojuvenil da psicologia para crianças?

Num processo de coaching infantojuvenil, não abordamos as causas, o foco é o que se pretende ter, que comportamentos, atitudes, pensamentos e sentimentos desejamos relativamente à situação atual e é uma abordagem de mudança de comportamento e gestão emocional. Por isso muitas das vezes o trabalho entre um coach e psicólogo possa ser complementar.

Há uma linha que deverá ser intransponível, perante qualquer sinal de disfunção ou trauma, a atuação deverá ser por um psicólogo. O que muitas das vezes me acontece é, ao trabalhar com eles um determinado objetivo em que começam a ter resultados e percebem as suas competências, cria abertura para um trabalho de psicoterapia, ou até, quando realizado em conjunto, de haver uma maior evolução.

Com que idade (ou entre que idades) podemos recorrer ao coaching para os nossos filhos?

Quando é um processo infantil, pode ser realizado a partir dos seis ou sete anos, depende da capacidade da criança de interpretar o que lê e escreve. Isso indica-nos a maturidade para a efetividade do processo. Nos jovens o processo pode ir até aos 20 anos e já tive casos de mais velhos.

O processo parental é útil para pais ou quaisquer cuidadores com crianças a partir dos dois anos até aos 99!!

Capa do livro "Aprender a Ser - Como desenvolver as capacidades emocionais e sociais dos seus filhos”. (Divulgação)

Neste livro, faz uma espécie de analogia entre a construção da personalidade de uma criança e a construção de uma casa. Quer explicar melhor este paralelismo?

Trago para a minha abordagem as experiências que tive e inclusive o meu percurso profissional e formas de organizar o pensamento. Para mim é muito importante o sonho, esse é o ponto de partida para que qualquer coisa aconteça, tenho de ter vontade de criar, ter o desejo de algo, o primeiro passo é ter consciência que alguma coisa não está bem e preciso de mudar. O mesmo acontece na nossa casa. Na arquitetura, esse sonho materializa-se num projeto que depois irá ser construído. Se, por norma, os pais dizem que o seu maior projeto são os seus filhos, então não fará sentido também projetar? Em vez de deixarmos essa construção ir acontecendo, podemos criar um plano, ajudá-los a definirem o seu percurso, serem donos das suas escolhas e responsáveis pelo futuro que desejam. Além de que está subjacente a ideia (em que acredito e baseio a minha abordagem) de que todos podemos “construir” o nosso futuro, é demasiado precioso para deixar ao acaso e o que fazemos hoje influência o que iremos obter a longo prazo. Por isso, sim, as competências de uma criança podem ser construídas.

Olhando para o seu livro, percebemos que a comunicação está presente em todos os momentos dessa construção. Desde as fundações até aos acabamentos… o que mais não pode faltar quando estamos a tentar desenvolver competências emocionais nos nossos filhos?

Talvez o ingrediente principal seja mesmo “Acreditar”. A confiança nas capacidades de cada um, confiança em si mesmo de que vai ser capaz e nos outros. Ao acreditarmos neles estamos a dar o nosso voto de confiança e a passar a mensagem mais importante de todas, de que eles fazem a diferença e importam. Por vezes, as crianças e jovens só precisam mesmo disso: alguém que olhe para eles e veja para além dos problemas ou desafios que estejam a passar, que lhes diga que vale a pena o esforço, que é possível mudar e fazer as coisas de forma diferente e que eles têm tudo para que isso aconteça.

Também percebemos que o papel da família é muito relevante. Aliás, o livro dirige-se também para as famílias e tem exercícios práticos que ajudam a melhorar as dinâmicas familiares… Que erros estamos a cometer enquanto famílias e como resolvê-los?

Tantos! E ainda bem! Faz parte errar e querer melhorar, nós, pais, não temos uma escola para aprender a ser pais. Isso é uma construção em conjunto com cada filho e não um produto acabado. O importante é querer fazer melhor e não nos culparmos por isso.

Infelizmente, o que vejo atualmente é que a própria insegurança dos pais lhes torna a parentalidade mais difícil. Ficam na dúvida se estão a fazer o melhor, procuram mil e uma abordagens para educar numa ânsia de ter resultados rápidos. Às vezes, não acreditam neles próprios, comparam-se com famílias perfeitas das redes sociais, que na realidade não existem. Colocam-se exigências de perfeição a eles e aos filhos que só gera frustração. O medo generalizado também não ajuda na construção de filhos saudáveis e autónomos, acabamos por superproteger e não dar autonomia. Todos temos desafios e situações muito semelhantes, mas os pais sentem-se muito sozinhos, como se a parentalidade devesse ser uma batalha a travar e esquecem-se de desfrutar da viagem.

O caminho está em aceitar as nossas próprias fragilidades, acreditar nas capacidades nossas e dos nossos filhos e querer ser sempre o melhor que podemos para eles, sabendo que isso não implica a perfeição.

Inês Sottomayor deixou a arquitetura para se dedicar ao coaching infantojuvenil. (Arquivo pessoal Inês Sottomayor)

Quais são as competências emocionais mais difíceis de desenvolver nas crianças dos nossos dias?

Ultimamente, as competências que os pais e professores mais sentem falta são a empatia, a motivação e a comunicação. Não quer dizer que sejam difíceis de desenvolver, mas o contexto atual leva a que essas em particular não sejam tão estimuladas. E está muito relacionado com o mundo virtual em que eles se inserem, em que cada vez mais as interações sociais são através de um ecrã, em que não aprendo com as reações do outro, não aprendo a identificar sinais não verbais, em que nem sempre há uma reação imediata às minhas ações, logo não adquirem a competência da empatia e da comunicação. Por outro lado, quando aquilo que aprendem é desligado da sua realidade, perdem o interesse, se ainda para mais têm dificuldade em identificar as suas forças e habilidades e saber para que é que elas servem, ou seja o sentido de contribuição, naturalmente vamos ter crianças e jovens desmotivados.

No fundo, o contexto e as experiências que proporcionamos às nossas crianças e jovens vão ser impulsionadores ou inibidores do desenvolvimento das suas competências, mas todas elas são passiveis de adquirir, basta que, para isso, eu sinta a necessidade e coloque ações intencionais para o fazer.

É frequente ouvirmos dizer que as nossas crianças e adolescentes têm falta de resistência à frustração e que são pouco proativos. É verdade? Se sim, a que se deve isso?

Infelizmente é uma realidade cada vez mais presente. E não só nas crianças, mas nos adultos também. Penso que a rapidez com que acontecem as coisas nos dias de hoje, a facilidade de acesso a várias situações ao mesmo tempo faz com que não haja esse treino da competência de lidar com a frustração, que é fundamental para enfrentar os desafios diários e para o bem-estar. Se, atualmente, podemos ter acesso a informação, experiências, coisas, tudo o que se possa imaginar apenas com um passar de dedo num ecrã, para quê o esforço? Lá está, ninguém vai gastar energia a não ser que seja necessária. E, sem treino, não há desenvolvimento dessa competência. Em relação à proatividade, penso que esteja mais relacionado com o medo de falhar e, para se proteger, nem se colocam em ação (assim não há probabilidade de ficar mal visto se nem tentarem) e também com a falta de sentirem que o que fazem serve para algo. Isso está intimamente ligado à forma como eu vejo o futuro. Se eu acredito que, faça eu o que fizer, não tem qualquer impacto e não melhora nada, então para quê ter a iniciativa? Mais uma vez, se não exercitarem, não desenvolvem e fica cada vez mais difícil de contrariar esse ciclo.

Mais do que nos concentrarmos no que não funciona, é mudar o nosso foco no que queremos construir e o que depende de cada um fazer para proporcionar essas aprendizagens.

Um estudo recente revela que uma em cada seis empresas têm relutância em contratar recém-licenciados e até há muitas empresas a despedir trabalhadores nestas circunstâncias. Revelam os empresários que carece de uma forte ética de trabalho, tem dificuldades de comunicação, não lida bem com o feedback e, em geral, não está preparada para as exigências do mercado de trabalho. Em que é que estamos a falhar? Ainda vamos a tempo de atuar nas próximas gerações?

Gosto mais de ver o que cada geração tem de bom e pode contribuir. Esta geração que está a entrar no mundo do trabalho tem valores muito fortes como a justiça, a liberdade, o respeito e é importante também vermos o que podemos aprender com eles. A complementaridade entre todos é muito mais positiva do que só nos centrarmos nas diferenças como algo negativo.

Por outro lado, se vemos que essas competências estão a falhar também podemos retirar aprendizagens do que devemos mudar na educação para colmatar essas falhas. Porque eles são resultado do contexto e da educação que lhes demos. Para que essas questões não surjam ao entrar no mundo do trabalho, é importante trabalhar desde os primeiros anos essas competências, a grande aposta de qualquer país deveria passar pela educação. E não são ajustes ou melhorias, como diria Sir Ken Ronbinson. É preciso fazer diferente do que fizemos até aqui e vermos a educação como a expansão da nossa consciência, capacidades, sensibilidades e compreensão cultural, ampliando a nossa visão do mundo.

Como é que posso motivar uma criança ou um adolescente que recebe mil e uma solicitações pelos ecrãs, para tudo o que não envolva tecnologia, incluindo as relações humanas?

Há várias estratégias que podemos usar, dependendo da idade da criança ou jovem, mas a base passa por perguntar e conhecer os seus interesses, querer genuinamente saber e participar nas suas coisas, dar-lhes a hipótese de escolha e, dentro das opções viáveis, aceitar a sua opinião e deixar que participem da solução encontrada. Não há nada que motive mais uma pessoa do que ver as suas habilidades em ação, sentir que contribui, que faz a diferença e que é tido em conta. A verdade é que todas as crianças preferem fazer algo com os pais a um telemóvel, até mesmo os adolescentes.         

Já que falamos em ecrãs… proibir telemóveis nas escolas é ou não uma boa decisão?
A proibição por si só nunca resolveu nada, muito pelo contrário. Pode gerar ainda mais vontade e cria um ambiente propício à mentira e a atitudes de manipulação. Também é importante distinguir as várias idades, o impacto e controlo que temos dos telemóveis nos nossos filhos vai sendo diferente.

Posto isto, acredito que, até aos três anos, não há nada que justifique uma criança estar de forma regular exposta aos écrans. Há demasiados estudos e provas científicas dos malefícios dos telemóveis em crianças até estas idades, para continuarmos a ignorar e fazer de conta que é só um bocadinho, mal não faz.

Nas escolas não vejo necessidade de haver telemóveis pelo menos até ao final do 1º Ciclo. Não pela proibição em si. Mas passa por informar e sensibilizar os pais e as próprias crianças do impacto que esse uso tem na socialização dos nossos filhos, nas situações de ansiedade e distúrbios vários, na sua autoestima, confiança, desenvolvimento de competências e, como tal, no seu bem-estar presente e futuro.

Mas é importante focar no que se pode proporcionar ao retirar os telemóveis. Que experiências e aprendizagens? Quais os ganhos? Ou seja: a informação muito mais do que a proibição.

Que conselhos daria aos jovens pais ou a quem vai ser pai (pela primeira vez ou não, até porque a vida nos ensina que um filho não é igual ao outro)?

Mais do que conselhos, e até pela minha própria experiência, diria que para sermos melhores pais é importante olharmos para nós, perceber o que queremos fazer de diferente, sermos o exemplo, acreditarmos nas nossas capacidades e estarmos seguros das nossas ações. Aceitar que os filhos não são nossos e terão o seu próprio percurso. Não projetarmos neles as nossas frustrações, vê-los na sua singularidade e amá-los por isso. O amor incondicional é isso mesmo: aceitar a diferença e celebrar a imperfeição, desfrutar do caminho, sem perder de vista o bem maior.

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