Paredes de Coura: a noite da música electrónica

20 ago 2022, 14:16
Festival Paredes de Coura: Boy Harsher (Foto: Hugo Lima)

A noite foi de dança, mas revelou-se a mais resignada do público. O cansaço começa a fazer-se sentir e ainda falta a ronda de actuações deste sábado.

A noite ia longa, a discoteca escura, e restavam uns quantos dissidentes a dançar na pista, metidos para dentro, sem coragem de ir enfrentar a solidão do quarto que os esperava em casa. De repente, começou a tocar uma batida electrónica confiante, a dissidir do mais negro do industrial. Nestes idos de 2016, ouvir pela primeira vez Boy Harsher e o tema Pain cheirou a bálsamo.

Agora, a noite acabou de começar, respira-se o ar livre junto à praia fluvial do Taboão neste quarto dia de concertos do festival de Paredes de Coura e há ainda uma réstia de luz perdida no céu. Os Boy Harsher não vão tocar Pain, que faz farte do EP Lesser Man. Com dez minutos de atraso devido a problemas técnicos, as luzes do palco secundário apagam-se e começa a ouvir-se uma batida: bem-vindos à estética distópica da dupla de cold wave sediada em Northampton, Massachusetts. As luzes vermelhas cor de inferno começam a pairar sobre o escuro da parafernália montada para Augustus Muller, que entra juntamente com a vocalista, Jae Matthews.

O diabo podia ser louro. Iluminada a contraluz, os cabelos compridos e ondulados, Matthews está vestida de preto e mostra as pernas robustas, os gémeos atléticos. A sua voz tem um quê de androginia: “in the dark/ you have nothing left/ let me take it” (“no escuro/ não te resta nada/ deixa-me levá-lo”).

A estética cold wave fica-se por isso mesmo porque a energia do público pertence a Verão e bom tempo. Esta é aquela noite em que as pessoas já acusam o cansaço e, portanto, toda a carga urbano-depressiva que a música de dança possa conter é sonegada. O espaço mental de hoje é o de deixar o corpo ser, sem esforço, livre, etéreo. Como disse Jae Matthews logo ao fim da segunda canção: “tocamos música de dança. Por isso, dancemos”.

O público dança – e grita, em jeito de reconhecimento –, quando os Boy Harsher começam a passar outro dos seus hits transformados em culto da cena de dança underground, à semelhança de Pain: o tema Fate, do álbum de 2019 Careful. “Hey Fate/ What do you think you're trying to prove? (“Ei Destino/ O que pensas que estás a tentar provar?”).

Quem não cedeu na carga por vezes pesada da sua electrónica foi a galesa Kelly Lee Owen, sozinha no palco principal, rodeada pelas suas máquinas. Esta não é uma sonoridade para dançar com sentido de conjunto, é uma sonoridade para dançar em contrição. O cansaço começa a fazer notar-se, aproveita-se para deixar os outros à volta desaparecerem.

Mais tarde, é já uma e meia da manhã, entram no palco principal os franceses The Blaze. Sensivelmente a meio do anfiteatro natural, dois amigos experimentam colocar a boca cada um numa das extremidades de um cigarro. Estão a imitar o vídeo do tema que a dupla de primos Guillaume Alric e Jonathan Alric estão a tocar nesse preciso momento, rodeados por cinco grandes painéis que projectam imagens, não fossem os músicos também realizadores. Nestes ecrãs, vemos, a preto e branco, um rapaz a fazer movimentos de dança com a elegância e precisão de quem tem formação clássica.

Trata-se do tema Virile, uma das músicas mais conhecidas do duo francês. O videoclip decorre na sala de um apartamento com vista desafogada para a cidade, à noite. Um jovem está a fumar um charro ao som da música que outro rapaz está a produzir a partir de um sintetizador, e que também canta para um microfone. A dada altura, os dois estão a dançar no meio do aposento, um deles agarra na cara do outro e impele-o a deixar entrar a outra ponta do charro na boca, para que inale o fumo. Performatizam uma espécie de beijo.

Leve, luminosa – como a voz promissora da jovem inglesa Arlo Parks neste mesmo palco ao início da noite –, a música destes dois primos permite recuperar a celebração da harmonia, catapultada pelas letras das canções que fazem, assim como pelos vídeos que produzem. “I feel, you know/ A little place/ Where we can go/ And dance so well” (“Eu sinto, sabes/ Um pequeno lugar/ Onde podemos ir/ E dançar tão bem”), cantam, como um mantra, em Places, música do único álbum que editaram até agora, Dancehall.

Nos ecrãs, que rodopiam pelo espaço do palco e vão desenhando diferentes geometrias, vemos desde vídeos a preto e branco de câmaras de vigilância a carros a arder, mas vemos também imagens belíssimas de um grupo de rapazes magrebinos, esbeltos, a correr numa praia na direcção do mar, ao pôr do sol. Ou um grupo de raparigas, também de feição magrebina, a correr numa floresta.

E porque a noite é de dança, vamos não nos alongar no concerto de Ty Segall, acompanhado pela Freedom Band. Homem de vários projectos musicais dos quais o mais interessante foram os já extintos Sic Alps, esteve durante uma hora a apresentar canções rock a roçar o pesado que não têm qualquer identidade autoral e podem ser facilmente colocadas no saco do rock indiferenciado.

O que esta noite podia ter beneficiado era de um melhor alinhamento das actuações. Boy Harsher mereciam ter tido direito não só ao palco principal como colariam muito bem com The Blaze, antes ou depois. E teriam cimentado o espírito de vasta discoteca ao ar livre que se viveu com os franceses, numa noite fria e húmida, mas sob um céu estrelado.

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