A nova noção de família, o erotismo sem moralismos, a necessidade de "sujar as mãos" na política e outros pensamentos de um Papa que por vezes provoca "urticária aos neoliberais católicos"

4 set 2022, 09:00
Papa Francisco beija a mão de uma sobrevivente de uma escola residencial, Elder Alma Desjarlais (Nathan Denette/The Canadian Press via AP)

Através de atitudes, palavras, medidas e documentos, o Papa está a operar uma autêntica revolução na Igreja Católica e no modo como esta se relaciona com o mundo. Eis 10 maneiras como o está a fazer. E não se esqueça: Francisco deu uma entrevista exclusiva à CNN Portugal e TVI - para ver este domingo no J8 e esta segunda-feira na íntegra na CNN Portugal, marque na sua agenda

Assim que foi eleito Papa, Jorge Mário Bergoglio mostrou que queria mudanças no seio da Igreja. Em nove anos de pontificado, mostrou por gestos, palavras, medidas, doutrina e atitudes que quer uma Igreja capaz de sair dos muros do Vaticano e das paredes das igrejas. Mais próxima dos fiéis, sobretudo dos mais frágeis e desfavorecidos.

Mostrou o rumo que queria dar ao seu pontificado logo na escolha do nome, como recorda à CNN Portugal o jornalista do site de atualidade religiosa Sete Margens, António Marujo: “Reflete um programa e um tema importante do pontificado - os mais pobres, os mais marginalizados, o que não é habitual aparecer nas conversas, nos meios de comunicação”.

“Esse nome e esse tema está ligado a um outro: o tema da misericórdia -a atenção a todas as situações da marginalização social, da homossexualidade, das pessoas divorciadas que se voltaram a casar, das mães solteiras que querem batizar os seus filhos”, acrescenta o jornalista especialista em questões religiosas e autor do livro “Papa Francisco - A Revolução Imparável”, em parceria com Joaquim Franco.

Papa Francisco na Praça de São Pedro em maio de 2013. (OSSERVATORE ROMANO/AFP via Getty Images)

Francisco tem operado mudanças profundas na estrutura da Igreja e na legislação canónica. Mas quer mais: quer uma Igreja menos centrada no clero e mais próxima do povo, quer cristãos mais engajados na política, no clima e na sociedade.

“Há toda uma mentalidade com este Papa que mudou. Mas, para mim, as encíclicas Fratelli Tutti e Laudato Si’ são muito relevantes. A primeira abre muito caminho de união e de comunhão entre as pessoas e a segunda a comunhão com a natureza. São os grandes documentos deste Papa, a construção de um mundo novo”, considera Manuel Joaquim Rocha, vigário geral da diocese de Aveiro e especialista em Direito Canónico.

1 – Reformas legislativas

Manuel Joaquim Rocha destaca a reforma dos processos de nulidade dos matrimónios como uma das alterações legislativas que o Papa Francisco operou na legislação canónica. “Criou o processo breviora, que está estruturado para ser feito ao longo de seis meses, no máximo. Em relação ao processo ordinário, que já conhecíamos, algumas fases foram abreviadas”, explica o especialista em direito canónico.

Na reforma dos tribunais da Igreja, Francisco obrigou a que cada diocese tivesse um tribunal, “para que as causas fossem resolvidas próximo das pessoas”.

A carta veio abreviar a anulação do casamento católico em casos muito específicos. Foi publicada a 15 de agosto de 2015 e entrou em vigor em 2016. Manuel Joaquim Rocha toma como exemplo a diocese de Aveiro, onde trabalha: aqui, nestes seis anos, já houve “quatro ou cinco destes processos breves”. “Embora isso seja difícil de determinar, a razão que fundamenta a nulidade nestes casos é mais evidente e o processo tem de ser entregue pelos dois”, explica.

“Considero esta a grande reforma legislativa do Papa Francisco porque veio facilitar a vida de muitos católicos que querem continuar a ter um papel ativo na Igreja.”

2 – O conceito de família

A mudança legislativa destacada pelo vigário judicial ouvido pela CNN Portugal vai ao encontro do conceito de família que o Papa Francisco tem vindo a tentar desconstruir. “Embora continue a usar a designação ‘Família’, ele usa-a com a noção de quem percebe que hoje em dia há múltiplas noções de famílias, em que ele coloca as tensões que são passíveis de acontecer no seio das famílias. As palavras ‘Com licença, obrigado e desculpa’ [palavras do Papa Francisco na Audiência Geral, Praça de São Pedro, quarta-feira, a 13 de maio de 2015] são reveladoras de alguém que percebe as tensões que podem acontecer nos seios das famílias, mas que o importa é que os seus intervenientes sejam capazes de as ultrapassar”, exemplifica António Marujo.

O jornalista destaca também a forma como o Papa Francisco “olha para os afetos entre o casal, onde há espaço para o erotismo e para a sexualidade”. “Mais do que carregar de regras morais os comportamentos, quer é que as pessoas se aproximem de Deus. Para ele, vale mais a misericórdia, a pessoa e a comunidade do que as regras morais”, resume António Marujo.

Além disso, Francisco tem-se debruçado sobre a questão dos divorciados recasados e tem vindo a implementar medidas que permitem a estes fiéis continuar a “fazer o seu caminho” na Igreja, nomeadamente comungar. “Tem vindo a trabalhar no sentido de acompanhar estas pessoas, discernir as situações e integrar estes cristãos. Um trabalho que permite ao fiel leigo divorciado recasado ter assento na estrutura de participação que a Igreja lhe propõe, inclusive a reconciliação e a comunhão”, explica Manuel Joaquim Rocha.

3 – Tolerância zero aos abusos sexuais

O pontificado de Francisco tem sido marcado pelos casos de abusos sexuais no seio da Igreja Católica. O Papa tem vindo a acentuar a ideia de tolerância zero e implementou algumas medidas nesse sentido. Em 2020, determinou a obrigatoriedade de o episcopado comunicar às autoridades civis casos em que haja suspeitas concretas.

O assunto deixou de ser tabu. Também em 2020 organizou uma cimeira para discutir abusos sexuais. Neste encontro no Vaticano participaram bispos, cardeais, vítimas e especialistas. “Quis que os vários intervenientes da Igreja tomassem um banho de consciência sobre os abusos sexuais”, diz Joaquim Franco.

A ação e o discurso do Papa Francisco, também nesta matéria, andam de mãos dadas. E as palavras do Papa são duras. “Desejo expressar às vítimas a minha tristeza e dor pelos traumas que sofreram. E também a minha vergonha, a nossa vergonha, a minha vergonha pela demasiada longa incapacidade da Igreja em colocá-las no centro das suas preocupações, assegurando-lhes a minha oração”, disse Francisco numa audiência semanal em outubro de 2021, a propósito de casos então conhecidos na Igreja francesa.

“Rezo e rezamos todos juntos: a ti, Senhor, a glória; a nós a vergonha. Este é o momento da vergonha.”

4 – Atenção aos mais pobres

A pobreza e a desigualdade social colheram no pontificado de Francisco uma atenção especial. O Papa mostrou-o por gestos e por palavras. Os sem-abrigo, os pobres, os presos estão presentes nas orações diárias e nos grandes documentos da Igreja.

Na exortação pastoral A Alegria do Evangelho, escrevia: “Assim como o mandamento 'não matar' põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer 'não a uma economia da exclusão e da desigualdade social'. Esta economia mata”.

A frase “esta economia mata” fez eco no mundo político, económico e social. “Provocou muita urticária aos neoliberais católicos”, lembra Joaquim Franco.  

“Esta frase do Papa deve ser lida literalmente porque vem na sequência de uma notícia que dava conta do número de suicídios na Grécia após a intervenção da troika”, sublinha António Marujo.

Papa Francisco encontra-se com sem-abrigo, no centro Paulo VI, para assistir ao filme "Francisco", organizado para fundação Laudato Si. (Vatican Media via Getty Images)

O assunto, abordado em várias homilias, audiências e entrevistas, volta a ser tratado nas encíclicas Fratelli Tutti e Laudato Si’. “Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano. Qualquer outra opção deixa-nos ou com os salteadores ou com os que passam ao largo, sem se compadecer com o sofrimento do ferido na estrada”, pode ler-se na Fratelli Tutti.

Francisco concretizou as palavras e incluiu sempre a pobreza na sua agenda. Durante uma visita pastoral à Eslováquia, em 2021, por exemplo, visitou um centro de apoio a sem-abrigo dirigido pelas Missionárias da Caridade, congregação religiosa de Santa Teresa da Calcutá. “Estou feliz por vos visitar, por estar entre vós. Estou muito feliz, obrigado por me receberdes”, disse, à chegada.

Sentou-se à mesa com sem-abrigo e com reclusos e foi capaz dos gestos mais enternecedores: no verão quente de 2021 em Roma encomendou 15 mil gelados e mandou entregá-los nas duas prisões de Roma.

5 – Valorização do papel da mulher

Francisco tem procurado mudar mentalidades também no que respeita à valorização do papel da mulher nas estruturas da Igreja: “Não avançando a antiga reivindicação das feministas católicas de terem acesso aos ministérios ordenados, como o sacerdócio ou diaconado, a estratégia do Papa é colocar a mulher em lugares da decisão, num papel que ele considera universal. Não me admiraria nada que este processo vá culminar numa reflexão muito profunda do acesso da mulher a ministérios ordenados. Estas decisões do Papa de colocar mulheres em locais de decisão e de empoderamento pode ser o início de uma reflexão muito mais séria sobre o acesso da mulher ao sacerdócio e diaconado. Mas não será para já, será algo a longo prazo”, considera Joaquim Franco.

Entre as ações mais relevantes do Papa que demonstram a importância que atribui à mulher dentro da Igreja está a nomeação de uma mulher para o Dicastério que escolhe os bispos em todo o mundo. “Estamos diante de um processo que é a valorização do papel da mulher e do empoderamento formal da mulher, porque na verdade já hoje a igreja se apoia muito no trabalho da mulher. É ver as catequeses, por exemplo”, aponta o jornalista e escritor.

“Sem mexer na questão da ordenação das mulheres, porque o Papa tem noção de que esse debate vai criar uma cisão na igreja, ele quer mostrar que se pode discutir tudo.”

6 – Valorização dos idosos

Tomando-se a ele próprio como exemplo, o Papa Francisco tem dedicado muitas das suas homilias e das suas reflexões aos idosos. Joaquim Franco recorda que o Papa “usou a expressão ‘descartáveis do nosso tempo’, os jovens e os idosos, para dizer que é fundamental apostar no diálogo e nas relações intergeracionais , juntando a irreverência e a criatividade das novas gerações a sabedoria e paciência dos anciãos”.

7 – Combate ao clericalismo

O Papa tem procurado uma Igreja aberta, pouco centrada no clero e virada para o povo. O combate ao clericalismo tem sido ponto de honra ao longo do Pontificado.

“Entende que é uma chaga na Igreja. Na cerimónia em que D. Manuel Clemente recebeu o barrete cardinalício, a homilia dele foi a denunciar as castas na igreja. E os discursos mais violentos ao clericalismo e ao carreirismo na Igreja foram feitos nas vésperas de Natal, nos encontros com a cúria romana”, lembra o jornalista Joaquim Franco, especialista em assuntos religiosos.

Uma das grandes iniciativas do Papa neste sentido é o sínodo sobre a sinodalidade, que culmina em 2023, em que quis sondar todas as bases. Abriu o sínodo não só aos bispos mas a todo o mundo católico.

“Pode ser o início de mudanças interessantes, até porque as conclusões do sínodo apontam para uma imagem que os católicos têm da Igreja de uma instituição clerical e fechada”, analisa Joaquim Franco.

8 – Diálogo ecuménico e diálogo inter-religioso

Perseguindo a ideia de que todos somos iguais, o Papa Francisco tem procurado aproximação com outras confissões cristãs. Joaquim Franco lembra que “é o Papa que definitivamente reabilitou Lutero”. Nas visitas que fez a países de maioria protestante, esteve em cerimónias ou encontros com lideranças protestantes, inclusive femininas.

Mas não é só a aproximação a confissões cristãs que procura. Seguindo o que já praticava quando ainda era bispo de Buenos Aires, onde tinha encontros frequentes com o rabino e com o imã da cidade e com quem partilhava um programa de televisão, nos nove anos de pontificado colocou a inter-religiosidade em prática. Já se encontrou com quase todos os líderes religiosos.

Papa Francisco reza ao lado do Mufti de Istambul, Rahmi Yaran, durante uma visita à Turquia, em 2014. (Anadolu Agency/Getty Images)

“O culminar do diálogo com o mundo islâmico sunita foi o documento que assinou em Abu Dabi, com grande Mufti do Egito, que é muito respeitado em quase todo o mundo islâmico sunita”, exemplifica Joaquim Franco.

E foi mais longe: “Quando visitou o Iraque, reuniu-se com o representante dos muçulmanos xiitas no país. Os americanos consideram-no um terrorista e ele reuniu-se com ele”.

9 – Olhar para o clima

A encíclica Laudato Si’ é um documento de extrema relevância para ilustrar o que o Papa pretende da relação dos católicos com o mundo que os rodeia. Com este documento, que exorta a importância da comunhão com a natureza, “mostrou como é que um Papa pode ajudar a mudar o discurso político sobre a realidade”.

O documento foi divulgado a 24 de maio 2015. Nesse mesmo ano, em dezembro, chefes de Estado e de Governo de todo o mundo assinavam o acordo de Paris sobre o clima. Muitos foram perentórios ao afirmar que a encíclica foi decisiva para que se alcançasse um entendimento.

A encíclica deu também origem ao movimento Laudato Si’, um movimento de católicos que “caminham juntos em sinodalidade e comunhão com a Igreja universal por um caminho de conversão ecológica”.

10 – Envolvimento dos cristãos na política

O Papa Francisco tem sido também, em muitas ocasiões, incisivo em “dizer que os católicos devem sujar as mãos na política”. Em junho de 2013, pouco tempo depois de ter sido eleito, num encontro a crianças e jovens, dizia: “Para o cristão, é uma obrigação envolver-se na política. Nós, cristãos, não podemos 'jogar a fazer o Pilatos', lavar as mãos. Não podemos! Devemos envolver-nos na política pois a política é uma das formas mais altas da caridade porque busca o bem comum. E os leigos cristãos devem trabalhar na política”.

“Acho que é uma das frases mais importantes do Papa. Estou convencido de que se os cristãos percebessem que a política é uma das formas mais importantes do agir cristão hoje não teríamos guerra na Ucrânia. Esta frase diz muito da ideia dele de que o mundo só mudará quando os cristãos se emprenharem e se envolverem na política”, considera António Marujo.

Francisco tem promovido a realização de encontros dos chamados movimentos populares. Nesses encontros tem insistido na necessidade de resolver três grandes problemas sociais: Trabalho, Teto e Terra.

Passando mais uma vez da teoria à prática e dando o exemplo, Francisco tem sido muito incisivo nas críticas à Rússia por causa da guerra na Ucrânia. Numa conversa com os diretores das revistas dos Jesuítas em maio, Francisco aludiu ao "interesse em testar e vender armas” e sustenta que “a guerra não pode ser reduzida a uma distinção entre os bons e os maus”.

Tem defendido que a guerra não tem justificação nenhuma. À semelhança do que já tinha feito em relação à Síria. Aliás, a guerra na Síria é um bom exemplo da importância das ações do Papa: quando o ocidente se preparava para intervir militarmente na Síria decretou um dia de jejum mundial pela paz. Com esta ação e a mobilização que conseguiu, baixou o tom belicista e a intervenção militar não aconteceu. Assim, mostrou aos cristãos que, se se mobilizarem, conseguem mudar o mundo.

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