Vinham 130 para uma festa, mas acabaram no funeral do Papa

Tiago Palma , enviado especial a Roma
28 abr, 08:00
Reportagem na festa do Jubileu dos Adolescentes, em Roma

REPORTAGEM || Só que o Papa queria os jovens numa celebração e eles celebraram. Roma (como Paris) é uma Festa

Vai um corrupio de estafetas à porta da paróquia de São João Crisóstomo. 

Aqui é Monte Sacro Alto e sendo Roma é uma Roma mais longe, sobretudo do Vaticano. São já oito da noite. É domingo. Rompe na pacatez do bairro, a ecoar, o cântico de “ultras”, LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA, mas como se aqui não há um estádio?, QUE-RE-MOS COMER, QUE-RE-MOS COMER, cântico que à chegada de caixas e caixas e caixas — insistimos: e caixas, muitas — de pizza, termina em euforia, ainda que sem golo.  

Recebe-nos à porta o padre da Ericeira, Tiago Fonseca, que logo me diz “hoje não falo eu contigo, hoje falam eles”. Assim vai ser. Eles são jovens da sua paróquia, que estão em Roma por ocasião do Jubileu dos Adolescentes que Francisco pretendeu e organizou — e manteve, mesmo após a sua morte. Chegaram no dia 25, hoje acaba esta festividade que coincidiu com o funeral do Papa. 

Vieram da Ericeira 130. A generalidade, 76, adolescentes, os restantes são monitores e família. Têm ali dormido, no ginásio da escola — que parece um campo de batalha —, mas a despedida ajantarada faz-se no salão da igreja. Acumulam-se. Vão cantando, volta e meia lá cantam, a muitos já falta voz, e assinam as camisas e braços uns dos outros, para dali levarem memória. A camisa de Margarida ninguém pode assinar, que é a do Benfica — nas costas só “Magui”, camisa 10 de craque — e não é para estragar. Tem 14 anos e é como todos ali da Ericeira. E como todos só vinha para uma festa, acabando num funeral. 

“O estado de espírito, se se alterou? “Eu acho que, e falando por mim, foi algo que me afetou, a morte do Papa, mas tentei manter a fé de que ainda assim podia vir a ser divertido. E pronto, a tristeza lá passou.” Não passou logo, porque logo que chegaram seguiram, no sábado, para São Pedro. “Quando lá cheguei, assustei-me com tanta gente. Mas até foi divertido. [Divertido?] Sim, porque foi a primeira vez que visitei a Praça de São Pedro. Divertido nesse sentido. No funeral eu não chorei mas emocionei-me, fiquei tocada. Porque era um Papa que significava muitas coisas boas, sabes?, significava alegria, significava esperança, significava amizade. Também gostava muito das mensagens dele.”

A voz falha-lhe. “Gritámos, cantámos muito”, justifica. Não por alturas do funeral. Depois: na festa dos jovens. “É pena que só foram três dias. Mas foram muito bons. Aproveitámos, pelo menos eu e o meu grupo. E trocámos imensas coisas, com italianos — tenho uma bandeira da Itália —, com coreanos, também havia muitos portugueses cá, nós dávamos pulseiras e eles davam o que tinham.”

Lucas Bento parece exausto. Tem 13 anos. “Mas gostei muito de tudo. De participar no Jubileu, de visitar as igrejas — estivemos na Basílica de São Pedro, em São João de Latrão —, de subir a Scala Santa, de passar pelas Portas Santas. E gostei de estar com outros jovens, da Ásia, da América, de Itália. Sobretudo dos italianos, que se metiam connosco, por causa do Ronaldo. [Risos] Mas numa boa.” 

O Jubileu atraiu muitos jovens de volta à Igreja. E isso é por causa de Francisco, considera Lucas. “Este ano de Jubileu muita gente está de volta à catequese, por exemplo. E até com o funeral muita gente regressou. Havia muitos jovens longe da Igreja, que se tinham como que afastado, e o Papa chamava-os. Ele foi o Papa da minha geração, gostava de o ouvir falar — as mensagens, os ensinamentos. Foi uma pena que tivesse morrido, mas também já era um velhinho.”

Sobre a vinda a Roma, “que era para ser uma festa”, e acabou num funeral, Lucas diz que para ele foi uma “honra” vir, “e gostei muito do funeral, para além do Jubileu”. “Foi um dia especial, o espaço em redor da Basílica é lindíssimo, e foi também uma despedida emocionante quando o Papa saiu. Senti-me num sítio especial”, assegura, voltando à fila das fatias de pizza, enchendo de novo o copo de refrigerante. E logo se vai sentar. 

— Com quem falo agora, Lucas?

— Com a Eva. É a pior! [Risos]

Eva Antunes. Tem 15 anos, e é altíssima, até para um jornalista que é não menos alto, faz questão de ressalvar que é de “Fonte Boa dos Nabos”, e ressalva também que não foi ao funeral do Papa. “No sábado, no funeral? Eu fiquei a apanhar sol e dormir. Não quis ver o funeral, mesmo. Pelo peso que tem. Eu ainda sou nova, não gosto da perda, não gosto da morte, nunca vivi isso perto, ainda sou muito nova e achei que para me despedir de Francisco não era particularmente importante ir ao funeral. Não é por desrespeito — ele mudou-me muito. Eu despeço-me como eu sei. E para mim a despedida é envolver-me mais, cada vez mais, na vida a Igreja, da minha. Mas a minha catequista sentiu imenso a partida dele."

Já voltaremos à história da Eva. Ouçamos uma das catequistas, aqui monitoras, umas das que mais se emocionaram. É Maria Emília, “mas pode ser só Emília”, tem 71 anos e é da Ericeira — paroquiana de Tiago há nove anos —, claro, “mas lisboeta, nascida e criada”. Coube-lhe também essa conversa, que tinha de haver, com os seus adolescentes sobre uma festa que viraria funeral. 

“A vontade de viajar, de vir aqui, não mudou, nada. O grande impacto foi vivido é no momento do funeral. A perda foi sentida, claro, mas trabalhámos com eles para que percebessem que não era uma perda, mas algo maior.  Explicámos que tínhamos ganhado um intercessor junto de Deus. Que tínhamos agora um amigo numa dimensão muito maior do que aquela que conhecíamos enquanto estava aqui entre nós fisicamente. Estes jovens têm enorme sensibilidade, eles têm as emoções à flor da pele, mas entenderam bem”, assegura-nos. E perguntamos: 

— Então, o que é que significa a morte, a perda de Francisco?

— Vai ficar uma cicatriz. Sarada e presente, para nos fazer recordar. 

E para Emília o Papa deverá ser lembrado com alegria. “Toda a vida deveria ser celebrada com alegria. Às vezes nós esquecemo-nos de que o ar, até o ar que respiramos, é um milagre, e uma alegria, uma proporção exata de oxigénio que nos permite respirar, sem explodir nem sufocar. O legado de Francisco é a simplicidade, a beleza da vida que é simples — as pessoas anseiam a simplicidade, a contemplação, a harmonia. Simplicidade mas exigência, porque ele não deixou nunca de pensar nas coisas certas, e cortou a direito, e trabalhou. Não confundamos o que dá trabalho com o que é complicado.” O jornalista não interrompeu. Não se pára simplicidade, contemplação e harmonia.

O legado deste Papa é também o aproximar da Igreja aos jovens. Voltemos a não interromper: “Muitas vezes, esta Igreja distancia-se dos jovens porque simplesmente não os compreende, porque lhes oferece celebrações pesadas, ou sem alma. Eles anseiam mais simplicidade, como antes lhe disse. É verdade que podem até viver demasiado distraídos, demasiado velozes, demasiado alienados. Estes são jovens que estão talvez mais habitados a ritmos acelerados, ritmos pesados, mas quando são confrontados com a grande beleza, param. Uma jovem disse-me, quando começar a chover aqui em Roma: ‘Gosto disto, do cheiro da chuva, do cheiro da terra molhada’. A beleza é uma linguagem de Deus.”

Falemos dela, de Emília. Como foi para ela a manhã de sábado, a do funeral. “Chorámos. Chorei. Mas não foi um choro de desespero. Tudo ali me transportava para Deus, a beleza, o silêncio. Era, sim, uma emoção pura — e quase insuportável de intensa. E por isso nós chorámos.”

Agora, retomemos à jovem Eva. De Fonte Boa dos Nabos. Tentou convencer Tiago, o padre, de que o melhor era ir à festa do Jubileu dos Jovens, “que é em agosto, ou julho”, e não à dos adolescentes. Mas quis vir, ainda assim, não por Carlos Acutis, que acabou por ter a sua canonização suspensa, mas por Francisco. “A canonização era talvez a nossa principal motivação. Quando soubemos que isso não ia acontecer, por causa da morte do Papa, houve uma grande dúvida, vir ou não. Mas viemos porque este Papa foi também ele importante para nós jovens. E espero, espero mesmo, que este próximo Papa mantenha esse legado.” 

Mas que legado é, afinal? “Que não devemos julgar ninguém só porque é diferente. Foi para ele difícil incluir tanta gente, e gente tão diferente, tão diversa, neste grande mundo católico, que é um mundo ainda tão restrito. É isso que o Papa Francisco nos deixa: saber incluir todos.”

Eva fez uma breve pausa num lance de escadas, mas volta à festa que lá dentro é já a meio gás, vencidos pelo cansaço — mas alimentados, que pizzas já só há a de Nutella que é sobremesa —, ou só entregues aos ecrãs dos telemóveis. Eva queria mais festa. “Eu tive pena que a outra festa de adolescentes tivesse sido cancelada, mas, claro, não podíamos estar em festa por causa da morte. Ainda assim, foram incríveis estes três dias, conheci imensa gente, sobretudo italianos, festejámos imenso, foi algo mesmo bonito, uma celebração grande, que aproveitamos — como o Papa quereria.”

Tiago, o padre, começa já a apelar para que se limpe o espaço, que depois vai haver um pequeno encontro na paróquia São João Crisóstomo, para oração. São 22h30, hora de Roma. Mas antes diz-me: “Tens de falar com o Simão.” 

Simão é Simão da Silva Reis, de 14 anos. Diz que ao saber da morte de Francisco “a disposição para viajar mudou”. “Ao início, sim, mudou. Só que com o tempo começámos a sentir que isto era como que um sinal de Deus. Já estava tudo marcado, o Papa morrer precisamente nessa altura. Pensámos que era como se fosse um convite de Deus para que estivéssemos presentes no Jubileu e no funeral.”

No sábado, no Vaticano, emocionou-se, “e chorei um pouco”, não só pelo funeral. “Foi um misto de emoções. Porque era a minha primeira vez fora de Portugal, e já por si era marcante para mim, também porque sempre sonhei ir a São Pedro, ir à basílica. Mas concretizei dois sonhos num momento intenso. Estávamos todos em festa, mas ali, no funeral do Papa, estava alguém que nos aproximou, que nos motivou. Lembro-me desta frase dele: ‘Adolescentes, não tenham medo’. Medo do sociedade, medo do futuro, medo do medo.” Sim, tinha de falar com o Simão. 

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