O Papa Francisco ainda resistiu ao gelado de dulce de leche, mas não à empanada argentina: e fez um "sobrinho" (que ainda não o foi ver)

Tiago Palma , enviado especial a Roma
24 abr, 22:30
Padrón, a "gelateria artigianale" de Sebastián

REPORTAGEM || A gelataria de Sebastián Padrón não é parede-meia, mas é a uns poucos metros a pé da casa onde Francisco viveu enquanto Papa, a Casa de Santa Marta. Certo dia quis a mulher de Sebastián que levassem uma grande quantidade de gelado ao “vizinho”. Terá recebido. Certo dia quis a mulher de Sebastián - que é Silvia - que levassem uma empanada ao vizinho - mesmo sem aspas. Recebeu e chamou-os. “Não havia formalismos, nem pressa nem formalismos”

Uma empanada é mais do que um petisco, um semicírculo dourado de massa, tenra no meio e estaladiça por fora. Até pode ser um envelope de memória — e dentro vai alguma da América Latina, vai a Argentina, vai Buenos Aires bairrista. O recheio, esse, quente, preferencialmente quente, pode variar consoante a província — e o humor de quem cozinha. Aquele era de carne, bovina, mas ao corte os argentinos chamam “patinho”, bem puxadinha no refogado a empanada, cremosa, adocicada de legumes, salgada de carnes. E para quem é emigrante, como o homem da gelataria, como o homem do Vaticano, uma empanada não é só comida, o ato de comer. É um instante de regresso. Casa embrulhada em papel de forno.

Mas não falemos já de empanadas. 

Falemos de quem as recebeu: Francisco. Quando foi eleito Papa, Francisco recusou habitar no piso três do Palácio Apostólico, habitual habitação papal, optando por ainda no Vaticano morar no quarto 201 da Casa de Santa Marta, um palacete construído durante o papado de João Paulo II, no ano de 1996, e localizado logo ao lado da Basílica de São Pedro onde agora Francisco ainda repousa, à vista de fiéis.

Na Casa de Santa Marta Francisco viveria por 12 anos. Há inúmeras histórias, umas reais, outras de ficção, de Francisco já Papa visitar lugares vizinhos daquele palacete.

Hoje, na vizinhança mais próxima — e procurámo-la porta por porta, em busca de memórias de Francisco —, há bem no fim da rua a oficina da Mercedes, onde ninguém o viu por lá, há, descida a escadaria da Rampa Aurelia, um sem fim de restaurantes, um vietnamita, outro de comida chinesa, e pizzarias, pizzarias porta sim, porta não, onde Francisco nunca parece ter jantado, há uma farmácia, há uma florista, onde também se lá não viu, até que já estamos duas ruas abaixo, na Via Gregorio VII.

São nem cinco minutos para chegarmos ao número 38, uma gelataria argentina, concretamente Padrón Gelateria Artigianale. "Padrón" de Sebastián Padrón. 

Sebastián Padrón, o vizinho (e conterrâneo) de Francisco

Está num lufa-lufa, já abriu a porta, mas ainda há gelados por terminar. E há gelados de tudo. Há chocolate, só chocolate. E chocolate com rum. E chocolate com amêndoas. E chocolate com menta. Há pistáchio, há stracciatella, frutas — banana, limão, coco, manga, ananás, laranja. Até zabaione há: que é uma sobremesa típica italiana, bem açucarada e cortada a Marsala, um vinho da Sicília.

Mas viemos aqui incomodar por causa do dulce de leche. É que ao que parece, Sebastián, o senhor Padrón, terá oferecido um caixotão de gelado ao Papa e daí nasceu uma relação e familiaridade. 

Mas quem é este homem? — se pergunta, pergunta bem. Sebastián é argentino — como Francisco o era, o “Papa do fim do mundo” —, denuncia-o uma bandeira logo atrás, orgulhosamente pendurada na parede que dá para a entrada. “Sim, sim, eu nasci na Argentina. Sou de uma cidade chamada La Plata, que fica perto de Buenos Aires.” O bairro de Patrón é Los Hornos. “É um daqueles lugares onde toda a gente conhece toda a gente, onde se joga futebol na rua até vir o pôr-do-sol e onde se aprende, desde cedo, muito cedo, a valorizar o que se tem — mesmo que seja pouco.”

— És hincha do San Lorenzo como Francisco?
— [Risos] Não! Não, Deus me livre!

Sebastián é do Gimnasia. “Gimnasia y Esgrima La Plata”, complementa. E provoca: "O ‘verdadeiro’ clube da cidade”. Futebol não é só futebol, “é uma filosofia de vida”. Há religiosidade na descrição. “Somos conhecidos como los triperos. Isso vem do tempo em que os nossos adeptos trabalhavam todos nas fábricas de carne. E, olha, ser do Gimnasia é quase uma filosofia de vida: é sofrer, é esperar, é amar mesmo sem ganhar."

Portanto, este argentino de La Plata veio para Itália. Veio em 2002. Veio porque teve de ser. “A Argentina estava num daqueles períodos negros, havia crise, e incerteza, e muita gente a sair do país à procura de alguma oportunidade. Eu pensei: ‘Se não for agora, não será nunca’. A minha mãe nasceu aqui, em Itália, num povoado pequenino chamado Tortorento, na região dos Abruzzos. Foi levada em criança para a Argentina com os pais. Por isso, tínhamos direito à cidadania italiana.” Veio porque teve de ser e quase sem nada. “Não conhecia ninguém aqui, mas sentia que Roma era um bom lugar para poder recomeçar. Cheguei com pouca coisa, um par de malas e vontade de trabalhar. E deixei-me ir ficando.”

A Casa de Santa Marta, onde o Papa viveu de 2013 a 2025

Ficou-se pelas redondezas da Casa do Clero, na Via della Scrofa, onde o cardeal Jorge Bergoglio se hospedava em Roma. Sabia quem era Jorge. E que ali o cardeal argentino morava. “Já, já se sabia disso. O padre Jorge, como o conhecíamos então, viveria a cinco minutos de onde estávamos. Era uma presença discreta, mas todos sabíamos quem era, que era alguém especial.” Ainda assim, Sebastián diz que “nem imaginava que se tornasse no Papa”.

E agora com este aparte começa a história que aqui nos trouxe: “E muito menos que um dia eu lhe levaria um gelado”. 

Em 2018, Sílvia, a mulher, — um novo aparte: “que é bem mais ousada do que eu” — lembrou-se de oferecer gelado, muito gelado, ao então já Papa. “Um dia, em casa, disse-me simplesmente: 'E se lhe levássemos uma caixa de gelado? De dulce de leche?’ Eu ri-me. Pensei que era uma ideia daquelas engraçadas que logo ficam por ali.” Mas não havia de ficar, "ela levou a sério”, e começaram a informar-se sobre se podiam, sequer, oferecer. E parece que podiam.

“Com algum esforço, conseguimos. Para mim era uma coisa de outro mundo. Mas às vezes a vida surpreende-nos quando vamos atrás das ideias que seriam mais improváveis.” E lá foi o marido até à casa do Papa. Entregámos a caixa de gelado, quatro quilos de dulce de leche — por ser tipicamente argentino —, lá em Santa Marta. Não ao Papa, claro; foi a um guarda suíço. E vim-me embora. Não houve grande troca de palavras, mas soubemos que ele o terá recebido com carinho.”

E não só carinho. Carinho e apreciação. “E continuámos a receber de lá encomendas” — se para o Papa ou não, Sebastián não tinha como saber. Por dois anos nada os Padrón sabiam de Francisco. Até que no ano de 2020, "já depois da pandemia, do confinamento”, Silvia tem nova ideia. “Resolveu enviar-lhe a nossa empanada caseira, típica argentina, e escreveu na entrega: “Já vai sendo tempo de nos conhecermos”. [Risos] E não é que ligaram?, do Vaticano, a dizer-nos que o Papa queria receber-nos, conhecer-nos, lá, em Santa Marta.”

A família, marido, mulher, filho e filha, crianças, aceitaram o convite de pronto. “E recebeu-nos com tempo, não foram só cinco minutos; estivemos os cinco juntos cerca de uma hora.”

— Uma hora?
— Uma hora.
— De que se fala com um Papa durante tanto tempo?
— De tudo, de tudo. De tudo.

O dia em que os Padrón visitaram Santa Marta

Não falemos de temáticas. Falemos de sensações antes. “Foi uma emoção difícil de descrever agora, um nervosismo que nos atravessa todo o corpo. Estávamos ali sentados frente a frente com o Papa. Mas sem sentirmos um peso ou distância. A sala onde ele nos recebeu era despojada, sem ostentar luxos, sem ostentar ‘poder’. Parecia uma casa só, normal.”

Francisco, garante Sebastián, “apareceu já a sorrir, como se nos conhecesse há anos”. E falou, claro, de empanadas. Não só, mas também. “Disse que as empanadas lhe faziam lembrar os tempos em Buenos Aires. Apertou-nos a mão e logo de seguida perguntou pelos nossos dois filhos, pela nossa terra, pela loja. Não havia formalismos, nem pressa nem formalismos. E ouviu-nos. Com atenção. Com genuína curiosidade.”

Falaram com Francisco muito de casa, que é uma casa comum. A Argentina. “Sim, falámos da Argentina que deixámos, daqueles dias difíceis que vivemos quando chegámos a Itália. E claro que falámos de futebol — como bons argentinos. E falámos das receitas que trazemos da infância. Ele lembrava-se de expressões em lunfardo, de cantos de Buenos Aires que só quem lá cresceu conhece.” Sebastián caracteriza-se: “Desarmado, senti-me desarmado”.

“Até nem parecia que estávamos com o Papa. Era talvez como estar com um tio velho, sabes?, que há muito já não víamos”, descreve de maneira que melhor era impossível de perceber. 

A gelataria está já num corrupio. Já não só o lufa-lufa do patrão Padrón, de clientes também. “São cada vez mais. De vários países. As pessoas querem ver este lugar, provar o gelado, ouvir a nossa história. E nós contamos com gosto. Porque, no fundo, é isso que em nós ficou: uma história simples, bonita, verdadeira. Como ele era.” 

— Já te despediste?
— Ainda não.
— Vais à Basílica de São Pedro?
— Sim, claro. Só preciso organizar-me aqui com o trabalho.
— Que parece ser muito…
— É. Mas quero muito ir prestar-lhe essa homenagem.

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