Uma das primeiras coisas que se deve ensinar aos alunos de ciências religiosas (pelo menos eu sempre tive esse método) é o da necessidade de um certo "relativismo religioso", isto é, o reconhecimento de que noções de “verdade” e de modelos “corretos” de religião são erros metodológicos, princípios reservados ao campo da confissão e da fé. Assim, adotando uma clássica definição de Kishimoto, é essencial compreender que cada contexto geográfico-cultural gera a sua própria definição e materialização de "religião".
O que tem isto a ver com o Papa Francisco? Tudo. Jorge Mario Bergoglio, o homem que vestiu os trajes papais, trouxe ao exercício das suas funções uma postura relativista religiosa, centrada no reconhecimento da dignidade e da necessidade de respeito pela diversidade religiosa, defendendo a liberdade religiosa de modo indiferenciado. Este caminho, que se inicia com o Concílio Vaticano II, é um reforço de uma visão menos imperial e dogmática da Igreja Católica, por meio do abandono da crença da posse exclusiva da verdade sobre a religião. Trata-se de uma lição sobre os caminhos para a paz interreligiosa através do reconhecimento do «outro» como portador de igual dignidade.
Em segundo lugar, Francisco trouxe uma doutrina inclusiva em matéria de diversidade humana, procurando acolher a homossexualidade como parte da natureza humana, combatendo séculos de estigmatização por parte da Igreja, contribuindo, assim, para uma abertura canónica para lá das conceções diabolizantes e de condenação ao fogo eterno do Inferno.
Em terceiro lugar, Francisco estendeu essa preocupação com a dignidade humana – farol da Declaração Universal dos Direitos Humanos – aos mais frágeis socialmente, com um duplo enfoque: os pobres e os refugiados e imigrantes precários. Trata-se de um aprofundamento das ideias da Igreja sobre caridade social, inauguradas com a encíclica Rerum Novarum, publicada pelo Papa Leão XIII em 1891, marco formal da Doutrina Social da Igreja Católica.
As preocupações com o «outro», integradas na teologia do amor ao próximo», enfrentam um enorme desafio, que recairá sobre o próximo sumo-sacerdote da Igreja de Roma – o facto das mensagens papais se terem tornado em referenciais discursivos e simbólicos. Isto é, a Palavra do Papa perdeu capital político.
É esta perda de capital político que ajuda a perceber porque os apelos do Papa à paz não produzem qualquer efeito. Este fenómeno é especialmente visível na guerra na Ucrânia, onde a Igreja Ortodoxa Russa, liderada pelo Patriarca Cirilo, exerce uma legitimação espiritual do projeto imperialista de Putin, reforçando a dificuldade do Vaticano em atuar como mediador neutro.
É também essa perda de capital político que permite que políticos como Viktor Orbán, Jair Bolsonaro, Matteo Salvini, André Ventura, Santiago Abascal, Robert Fico, Rolandas Paksas, entre outros – alguns deles como Ventura adotando um messianismo –, articulem a defesa da identidade católica como marco identitário dos seus países e da Europa, contra o multiculturalismo globalista, defendendo políticas restritas em matéria de imigração e hostilizando abertamente os refugiados, através de discursos assentes na teoria da «grande substituição», na «competição étnica» e no «pânico moral» face ao «outro». Orbán, por exemplo, declarou em 2018 que “o multiculturalismo fracassou” e que “nós, húngaros, não queremos viver em cidades cosmopolitas”.
Estamos, pois, perante um caso de coincidentia oppositorum que manifesta a coabitação entre discursos políticos que apelam a sentimentos conservadores religiosos ao mesmo tempo que se afastam dos trilhos humanistas da mensagem do Vaticano. Confrontados com este paradoxo, políticos populistas de feição religiosa apontaram o dedo a Francisco, vendo-o como reflexo de uma deriva esquerdista da Igreja, contaminada pelo «marxismo cultural». O caso extremo da hostilidade de Javier Milei ao Papa Francisco, a quem chamou “representante do maligno na Terra”, ilustra bem o grau de rutura entre certos populismos e a atual liderança da Igreja Católica.
Neste velho novo mundo em que o realismo bélico e a «lei da força» voltaram a orientar a agenda política internacional – depois de um tempo em que se o projeto europeu de paz kantiana parecia ter ganho terreno –, o capital político do Vaticano esfumou-se. Será um erro, todavia, se a Igreja Católica (cedendo, também, às pressões de clérigos e fiéis norte-americanos e africanos) optar por inverter o rumo traçado por Francisco e, sentindo o “ar do tempo”, adotar uma agenda de retorno ao conservadorismo moral e político, recuperando as terríveis alianças entre a Igreja e os regimes autoritários.