EXCLUSIVO. Não garante que vá estar em Lisboa em 2023, como previsto para as Jornadas Mundiais da Juventude. Espera que os portugueses não fiquem zangados com ele – mas é por outro assunto. Considera "monstruoso" qualquer abuso sexual na Igreja - e responsabiliza-se para que mais nenhum caso ocorra. Defende que o celibato não é a causa e garante que as percentagens provam que a maioria dos abusos ocorre em seio familiar. Sublinha que a "igreja é feminina" - "é 'A' igreja, não é 'O' igreja", pelo que a entrada das mulheres na Cúria “é um ato de justiça". Sobre a guerra, Zelensky e Putin: "Acredito sempre que, se dialogarmos, conseguimos avançar. Sabe quem não sabe dialogar? Os animais". Transcrição integral da entrevista da jornalista Maria João Avillez ao Papa Francisco
Porque é que estas jornadas se converteram em algo de tão importante para a igreja e para si?
Quem teve a ideia foi S. João Paulo II. Essas Jornadas são as que, de alguma forma, relacionam a juventude de várias regiões do mundo, tornam possível uma universalização da juventude. E fortalecem porque os jovens dão força uns aos outros e já falam por si próprios e sentem-se apoiados. E ainda que falem diversas línguas e sejam de outras culturas, encontram-se. E juntos apercebem-se de anseios comuns, desejos comuns. Têm uma linguagem comum. As linguagens dos jovens são sempre muito criativas. É preciso ver as palavras que os jovens inventam para determinada situação, mas essa criatividade é sinal de estarem ancorados no presente a olhar para o futuro. Uma coisa que ajuda é encontrarem-se para que se sintam fortes para fazerem o seu caminho rumo ao futuro. Foi a genialidade de S. João Paulo II que esteve na sua origem.
A juventude e o mundo esperam ansiosamente a sua presença em agosto de 2023 e a sua mensagem.
Eu penso ir. O Papa vai. Vai Francisco ou João XXIV, mas o Papa vai (risos).
Todos esperamos e confiamos que seja o Papa Francisco…
Seja o que Deus quiser.
Como é que o Papa Francisco olha hoje os jovens como eles são?
Quando se vai a uma reunião de jovens tem de se estar preparado para que lhe falem noutra língua. Os jovens têm uma linguagem própria que vem da sua cultura porque há uma cultura da juventude. Que vem também da criatividade própria da juventude. Não pode ir agora falar com os jovens com uma linguagem de europeu, por exemplo, ou de sul-americano. Tem de falar a linguagem dos jovens, o que não significa que seja uma coisa de pouca categoria. Eles têm a sua cultura e uma linguagem progressista, que vai em frente. É preciso ouvi-los no seu modo de interpretarem as coisas e responder-lhes de modo a que consigam entender. Não posso responder a um jovem, perante uma dificuldade, com um livro de teologia antigo. "Olha, aqui diz..." Ele não entende. Quando me apresentam um problema humano, um problema teológico, é preciso responder numa linguagem que entendam e de acordo com as vivências que eles têm. O presente é o ar dos jovens. O dia de hoje.
E como fazer para que este encontro das Jornadas seja também um momento de reconciliação para estas dificuldades que a igreja portuguesa está a viver?
O que acentua as dificuldades é a distância. Se estou zangado com a senhora, afasto-me, a senhora segue a sua vida e eu a minha e nunca haverá reconciliação. Por outro lado, quando as distâncias se encurtam, quando as pessoas se aproximam, há diálogo, há discussões, talvez, mas não importa. Há diálogo e aí podemos construir uma reconciliação. Por exemplo, em países em que há duas culturas diferentes, muita gente tenta fazer com que ambas as culturas se encontrem e isso é muito fácil com os jovens, através do desporto, através da arte, uma orquestra, interesses comuns, através de conversas, porque os jovens estão muito aptos a aproximar-se. Nós, os adultos, já temos mais experiência de vida e protegemo-nos mais. Defendemo-nos. Os jovens são muito mais audazes. Portanto, como é que se faz? Aproximando. Não de forma artificial mas através de coisas de interesse comum. As Jornadas da Juventude são, certamente, uma aproximação mundial de jovens.
“A linguagem diplomática em que uma pessoa diz uma coisa mas pensa outra - isso não suporto. Hipocrisia, é esse o termo
Uma das coisas que se vê no Papa é a tranquilidade e a alegria muito genuína e sincera com que dialoga com os jovens, mas faço a pergunta ao contrário: o que recebe do seu diálogo com os jovens?
Conto-lhe uma história. Há dois meses tive uma reunião com dez jovens que falavam espanhol, mas da América Latina, de África e de Espanha. Aqui em Roma. Foram cinco horas, mais ou menos, em duas etapas. Cada um dizia o que vinha à cabeça. E claro que nenhum era uma velhinha de novenas. O que não era anticlerical estava perto disso, ou outro tinha duras críticas, mas falavam com liberdade. Alguns eram católicos, outros porque eram batizados, mas não praticavam, outros não eram católicos. E eu aprendi porque me colocaram dificuldades enormes e não me preocupei tanto em responder à dificuldade, porque era como jogar pingue-pongue, atiram e eu respondo. Tentei antes ver qual era a cultura subjacente que ele ou ela tinham para me colocar perante aquela dificuldade e isso foi-me muito útil. E eu respeito. Respeito a espontaneidade. O que me é muito difícil é o diálogo, sobretudo com os adultos, porque com jovens não caem nisto, é o duplo sentido, ou seja, a linguagem diplomática em que uma pessoa diz uma coisa mas pensa outra. Isso não suporto.
A hipocrisia…
A hipocrisia, é esse o termo. A palavra diz tudo porque vem do grego: hipo mais crisis,ou seja, pensar, hipo, por baixo. Nesse grupo de jovens nenhum foi hipócrita. Cada um disse o que queria dizer, com a veemência que desejava e nenhum deles me ofendeu. Alguns atacaram-me, mas não me ofenderam, porque foram muito sinceros. Quando damos espaço aos jovens, a sinceridade existe. Pode haver erros, mas quem não comete erros? Há que escutar e, de qualquer maneira, dialogar sobre isso. Mas a espontaneidade dos jovens é uma riqueza imensa.
Um aspeto em que insiste muito é o valor e importância do diálogo intergeracional. Falou do tesouro e sabedoria dos mais velhos para ensinar os mais jovens. O que temos a aprender uns com os outros?
Os jovens têm de ter uma visão rumo ao futuro e uma visão do passado. Os jovens que olham apenas para o futuro ficam sem sustentação. O jovem tem de dialogar com as suas raízes. Como a árvore: para que uma árvore dê fruto, tem de vir alguma coisa da raiz. Então refugio-me na raiz? Não, porque isso não dá fruto. Mas olhar para as raízes só se consegue com o diálogo com os mais velhos. É uma das coisas em que insisto porque, às vezes, os jovens vão visitar um idoso a sua casa, tocar guitarra… Grupos de jovens. E inicialmente estão algo inquietos, não sabem… Mas quando começam a conversar entusiasmam-se. Claro, porque ouvem e depois discutem com os idosos e sentem-se com raízes. Uma forma de não querer ter raízes
é rejeitar o diálogo com os idosos. Isso não significa que têm de fazer o que eles fizeram na vida deles, mas é preciso ouvi-los, porque são as suas raízes. As raízes da sua cultura, da sua pátria, do seu modo de ser,
de tudo, da sua família. A cultura do avô e da avó é uma das maiores bênçãos. Quando um jovem vai em frente olha para o futuro mas é capaz de dialogar com os mais velhos. Um poeta argentino tem uma frase muito bonita: "Tudo o que a árvore tem de florido vem do que tem enterrado".
Nós, portugueses, lembramo-nos de que já esteve em Fátima. Essa experiência íntima de espiritualidade fez do jesuíta Bergoglio um Papa mais mariano ou já o era?
Fui educado pela minha família na devoção a Maria. Sempre. A minha família é muito salesiana, Nossa Senhora Auxiliadora, é algo com que vivemos desde crianças porque já na família havia a devoção a Maria. Eu sou Mariano, gosto muito da Virgem, mas em Fátima senti outra coisa. Fátima deixou-me mudo. Fátima é a Virgem do silêncio, para mim. Não sei quanto tempo estive ali, nem me apercebi, mas estar na presença da Virgem, estar simplesmente, nada mais…
Há muitas pessoas que dizem que não há nenhum silêncio como o de Fátima…
É verdade. Eu senti isso. Passou-se comigo. Vejo que é universal, não sabia que diziam isso. Passou-se comigo, sem saber isso. E, para mim, Portugal é Fátima. Que não se zanguem os portugueses, mas é a minha experiência.
Como é que reza um Papa?
Eu não alterei a maneira de rezar. Posso ter aprofundado, não sei. Mas eu rezo o terço, faço-o como fazia em miúdo. Rezo com a Bíblia e medito. Rezo o ofício litúrgico todos os dias. Ou seja, de diversas formas. Coloco-me diante de Deus e às vezes distraio-me mas Ele não se distrai. E isso consola-me. Não sei que santo se preocupava porque adormecia durante a oração. E o confessor disse-lhe: "Agradece a Deus. É uma graça adormecer diante do Senhor". Rezar é estar na presença de Deus e deixar que Ele fale. Não se pode rezar sem liberdade. Isso é muito claro. E cada um tem de rezar como o Espírito Santo o inspira.
Como é que devemos fazer para estar atentos quando o Espírito Santo quer falar connosco?
Uma pessoa sente, por exemplo, perante um acontecimento, perante uma leitura, perante um pobre na rua ou um doente, sente-se algo e é o Espírito Santo que motiva a pessoa a fazer algo. O Espírito Santo fala todas as línguas. Recorde-se da manhã de Pentecostes. O ruído que organizou, porque as pessoas não entendiam nada, diziam que estavam bêbedos. Porquê? Porque cada um falava a sua língua e foi um dia bárbaro, porque é o autor das diferenças, mas, por outro lado, com todas essas diferenças constrói-se a harmonia. Que é diferente da ordem. A ordem pode ser… A senhora vai a um cemitério e está tudo ordenado mas não há vida. Na harmonia há vida e é isso que faz o Espírito Santo. À senhora dá isto, a outro dá uma coisa e a outro outra coisa, mas tudo em harmonia e esse é o sentido eclesiástico. Às vezes há pessoas que dizem: "Sou muito religioso, muito religiosa, defendo os valores cristãos...", mas é incapaz de viver em harmonia com a Igreja. Falta-lhe o Espírito Santo, tem ideologia religiosa, mas não tem o Espírito Santo.
“Quero ser muito claro em relação a isto: o abuso de homens e mulheres da Igreja - abuso de autoridade, abuso de poder e abuso sexual - é uma monstruosidade
Sabe que uma parte do mundo está hoje zangada com a igreja. As situações de abuso por parte de alguns membros do clero estão na atualidade. Em Portugal vivemos uns dias difíceis, duros. Quais são as razões profundas desta ferida? O que falha? É a formação? A falta de acompanhamento? É a lógica da autoconservação institucional?
Posso responder-lhe de forma elegante, dizendo 'sim, é verdade, a igreja está a sofrer, e etc. e tal'.
Mas não é suficiente.
Não. Quero ser muito claro em relação a isto: o abuso de homens e mulheres da Igreja - abuso de autoridade, abuso de poder e abuso sexual - é uma monstruosidade porque o homem ou mulher da igreja - quer seja padre, religioso ou religiosa ou laico ou laica - foi chamado a servir e a criar unidade, a contribuir para o crescimento, e o abuso destrói sempre. O abuso é uma realidade trágica de todos os tempos mas também do nosso tempo.
A diferença é que agora se sabe.
Sabe-se. E ainda bem que assim é. Mas o que não se sabe, porque ainda se esconde, é o abuso no seio da família. Não me lembro bem da percentagem, mas penso que 42% ou 46% dos abusos ocorrem na família ou no bairro. E isso esconde-se. Na semana passada estive reunido com um grupo muito sério que trabalha com abusos no Brasil e deram-me as percentagens. Depois há outra percentagem no desporto, nos campos de desportos, nos clubes. Às vezes aproveitam-se dos miúdos nos clubes. Depois nas escolas e uma percentagem que me deram: que 3% dos abusos ocorrem com homens e mulheres da Igreja. 'Ah, 3% é pouco.' Não. Mesmo que fosse um só é uma monstruosidade. Então digo simplesmente: tudo isto existe mas fixo-me nestes e sou responsável pelo facto de que isso não voltar a acontecer. E, infelizmente, a cultura do abuso está muito disseminada. Inclusive os filmes pornográficos, em que se filmam abusos de menores. Pergunto-me: em que país se fazem? Não podem penalizá-los? Não se sabe onde são feitos. Mas faz parte da nossa cultura. Há pessoas que nos serviços de alguns telefones permitem que se entre em serviços sexuais e alguns são de abuso de menores, outros de outras coisas, ou seja, a nossa cultura é uma cultura abusadora. Assim, quando falamos de abuso, eu diria que é preciso ter esta visão de conjunto; segundo, procurar que não se escondam as coisas porque nalguns sectores, como na família, tende-se a ocultar; terceiro, agarremos na percentagem que nos diz respeito e vamos ao combate. Ou seja, não nego os abusos - mesmo que fosse um só é monstruoso porque o padre e a freira têm de conduzir o menino, a menina a Deus, e ao fazerem o abuso destroem-lhes a vida. É monstruoso, é destruir vidas. E depois vêm com perguntas: 'não será que é o celibato?'. Não é o celibato. O abuso é uma coisa destrutiva, humanamente diabólica. Nas famílias não há celibato e também ocorre. Portanto, é simplesmente a monstruosidade de um homem ou de uma mulher da igreja, que está doente em termos psicológicos ou é malévolo, e usa a sua posição para sua satisfação pessoal. É diabólico.
O que faz a igreja para tratar essa ferida?
A igreja tomou uma decisão depois da 'explosão' de Chicago. No tempo do cardeal Law foi quando se deu a "explosão" - teve consciência disto e começou a seguir os casos de abuso. A igreja sabe que 40 e tal por cento ocorrem nos bairros e na família, mas aqui importam os consagrados na comunidade. E uma coisa muito clara é: tolerância zero. Zero. Um sacerdote não pode continuar a ser sacerdote se é abusador. Não pode. Porque é doente ou um criminoso, não sei. Mas claramente é um doente. É uma baixeza humana, certo? O sacerdote existe para encaminhar os homens para Deus e não para destruir os homens em nome de Deus. Tolerância zero. E tem de continuar a ser assim. Eu sofro com casos de abuso que me apresentam. Sofro, mas é preciso enfrentar isso.
“Os homens e as mulheres são batizados. E a igreja é feminina. 'A' igreja. Não é 'O' igreja. É mulher, é a esposa de Cristo. E na administração normal da igreja faltavam as mulheres
Dedicou recentemente uma carta apostólica à liturgia e à formação litúrgica. Porque é que, subitamente, esta questão da liturgia, do rito litúrgico, se transformou numa coisa tão confusa e complexa no seio da igreja?
Creio que é uma situação de crise, de formação litúrgica deficiente, e, por outro lado, a falta de piedade na celebração da missa, que alguns celebram sem gosto. Isso provoca escândalo e alguns procuram formas mais seguras. O problema litúrgico é importante. Elaborei dois documentos: um, Traditionis custodes, que era para disciplinar bem o rito antigo e outro, o último, a Carta Apostólica, um pouco para abrir os horizontes e dar um pouco a espiritualidade litúrgica. A liturgia é a grande obra da Igreja. É a obra de adoração e louvor. Então, uma igreja que não celebre bem a liturgia é uma igreja que não sabe louvar a Deus, que não sabe viver, no fundo. Para mim, é importante disciplinar bem a liturgia.
O dicastério dos bispos, responsável pela nomeação dos novos bispos, inclui pela primeira vez três mulheres. Como devemos ler o sinal da escolha de três mulheres para o dicastério?
Os homens e as mulheres são batizados. E a igreja é feminina. 'A' igreja. Não é 'O' igreja. É mulher, é a esposa de Cristo. E na administração normal da igreja faltavam as mulheres. Bom, agora há secretárias do Sínodo dos Bispos, a vice-governadora do Vaticano é uma mulher, e porque não propor também mulheres na eleição de bispos? Uma experiência pessoal: os relatórios mais maduros que eu recebia para conferir a ordenação como sacerdotes aos seminaristas eram elaborados por mulheres dos bairros onde eles iam trabalhar na paróquia. E, além disso, a mulher está encarregada de conduzir a maternalidade da igreja, portanto, para eleger bispos é bom que haja mulheres que pensem como têm de ser os bispos, ou seja, a entrada das mulheres não é uma moda feminista, é um ato de justiça que culturalmente tinha sido posto de lado. 'Queres fazer algo pela Igreja? Torna-te freira.' Não. Pode ser laica, uma laica que esteja a trabalhar e cá, no Vaticano, estão só homens? Não. Aqui, todos os batizados têm lugar. Isto é algo que não inventei, já vem dos últimos 20, 30 anos e que lentamente se vai implementando. Por exemplo, desde há anos, três anos, a Secretaria da Economia, o Conselho da Economia tem seis cardeais e seis laicos. E um cardeal presidente. Todos homens. Na nomeação de há três anos, nos seis cargos dos laicos nomeei cinco mulheres e um homem, isso não se sabe. E começou a funcionar melhor. Porque a mulher sabe administrar noutro tipo de coisas. A mulher tem uma maneira de executar as coisas diferente da nossa porque raciocina de outra maneira, tem maternalidade, que é diferente. Numa ocasião, recebi uma chefe de Estado, ou chefe de Governo, não sei, uma mulher que mandava num país e que tinha resolvido um conflito difícil de resolver. Uma mulher casada, com filhos. E eu perguntei-lhe: 'Diga-me, doutora, como conseguiu resolver esse conflito?'. E ela ficou em silêncio e começou a mexer as mãos assim. Eu olhava e não percebia. E ela disse-me: 'Como nós, as mães, fazemos'. É outro tipo de resolução de conflitos, de problemas. Inclusive, a nova economia, com as novas economistas, por exemplo, Mariana Mazzucato nos Estados Unidos e mais, está a abrir caminhos de economias nestas linhas mais criativas e mais frutíferas. E a mulher é mãe e a mãe não é igual ao pai. A mulher é capaz de se desenvencilhar
melhor sozinha. Há uma estatística: em geral, mas isto é uma curiosidade: um homem que fica viúvo tem muita dificuldade em manter a família. Tem de voltar a casar-se ou… Uma mulher que fica viúva é capaz de manter a família sozinha. E com uma mão faz isto e com a outra. Assim se movimentam. E isto é uma coisa que quero dizer porque é uma homenagem à mulher: a mulher nunca abandona o que está perdido. Às vezes, em Buenos Aires, eu tinha de ir a uma paróquia noutro sítio e, no autocarro, passava pela prisão. Várias vezes, porque fica num sítio onde passam autocarros. E via a fila das mães dos reclusos para irem ver os filhos. A mulher dava a cara pelo seu filho. Não rejeitava o seu filho. Os pais quase não iam. As mulheres… 'É sangue do meu sangue.' Uma vez, uma mulher estava a chorar na prisão. Eu tinha ido visitar os reclusos e aproximei-me dela à parte e perguntei: 'Porque está a chorar?'. Ela olhou para mim e disse: 'É sangue do meu sangue'. Disse ela. É isso que uma mulher sente, é a sua maneira de sentir. Não é uma coisa tola. A mulher é capaz de levar por diante a qualidade de Deus que é a ternura.
Que grandes figuras femininas da história da igreja, da bíblia, o inspiraram?
Há uma figura no Antigo Testamento de quem gosto, a Judite. Uma mulher corajosa, que defende o seu povo, capaz de cortar a cabeça ao inimigo. É uma mulher inteira. E obviamente que Maria, a Virgem, é a mulher, a feminina por antonomásia. Em Maria encontra força, serviço… feminilidade. Quando nos aproximamos da Virgem encontramos toda essa feminilidade nela. Nas Escrituras… Fico com Maria. A Judite agrada-me por ter sido corajosa e tudo mais. Há mulheres corajosas. Há várias. Foi agora lançado um livro da autoria de um teólogo italiano que estuda todas as mulheres da Bíblia. E há mulheres fortes, muito fortes. E outras que são muito espertas. Dalila, por exemplo [risos].
“Graças a Deus que [parece haver] uma guerra civil [dentro da Igreja]. Pior seria uma guerra eclesiástica
Tenho aqui uma pergunta sobre o seu humor, porque é algo que o caracteriza.
Sobre isso queria assinalar que há mais de 40 anos que rezo a oração para pedir o sentido de humor de S. Tomás Moro. Rezo essa oração. Peço essa graça, o sentido de humor. Uma oração que começa: 'Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para digerir'. E continua assim. Copiei essa oração para a minha exortação apostólica, 'Exsultate, Jubilate', na nota 101. Se alguém a quiser ver, está lá.
O Mozart tem um "Exsultate, Jubilate" maravilhoso.
Na famosa 'Aleluia'. Havia um filme do meu tempo… A senhora é mais moderna, eu sou mais velho [risos]. No meu tempo havia um filme muito bonito, '100 Homens e Uma Rapariga', com Deanna Durbin e Toscanini. Lembro-me desse filme, que vi em miúdo. Cantava a 'Aleluia' do 'Exsultate Jubilate'.
Gostava de o ouvir sobre o caminho sinodal que está em curso: ajudará a clarificar a proposta espiritual que o sínodo faz ao mundo?
Neste caso é preciso recorrer um pouco à História. Ao terminar o Concílio, S. Paulo VI apercebeu-se, ou já sabia, que a Igreja ocidental, a Igreja latina, tinha perdido a dimensão sinodal. As igrejas orientais têm sínodos. A ocidental não tem. Portanto, ele criou a Secretaria-Geral do Sínodo dos Bispos para que começassem a habituar-se a isto. E quando se cumpriram 50 anos desde a criação, eu fiz um discurso a explicar o que se tinha dado e os fundamentos teológicos da sinodalidade. Aconteceu há cinco ou seis anos. Depois fez-se uma consulta a todos os bispos sobre o tema do próximo Sínodo. Surgiram dois temas-chave: os sacerdotes ou a sinodalidade. Eu escolhi a sinodalidade para encerrar a catequese da sinodalidade. Às vezes confunde-se: diz-se que a sinodalidade é uma espécie de parlamento, em que cada um diz o que acha e estar num Sínodo é outra coisa. Digo de outra maneira: não há Sínodo sem a presença do Espírito Santo. Quem é a personagem principal do Sínodo? O Espírito Santo. E como se faz isso? Cada um diz o que sente, ou que pensa, e depois juntos procuram a harmonia - outra vez a palavra - do Espírito Santo. Gosto de S. Basílio porque define o Espírito Santo como harmonia. Diz: 'Ele é a harmonia'. Então, no sinodal está a diversidade, o que cada um vai dizendo, mas é o Espírito que cria a harmonia. Se o Espírito Santo não está presente é um parlamento. Tudo bem, mas não lhe chamamos Sínodo. É um parlamento. Temos de ter a atitude sinodal de discernimento. E é o que a Igreja, graças a S. Paulo VI, que criou tudo isto, tem vindo a aprender nestes 54 ou 55 anos.
Já falou duas vezes de harmonia mas sabe que a igreja, e não só por causa dos abusos, está muito dividida sobre o sínodo - às vezes é quase uma guerra civil dentro da igreja, os bispos uns contra os outros… Estou a exagerar?
Sim. Um bocadinho, sim, mas compreendo. Graças a Deus que é uma guerra civil. Pior seria uma guerra eclesiástica. Em todos os processos existem os que estão bem no processo, os que vão mais à frente, os que vão mais atrás. É preciso deixar que os processos acabem. E aí vai-se sedimentando lentamente, muito lentamente, um conceito. Por exemplo, o facto que referimos há pouco, que haja mulheres na Cúria, é um processo cultural, um processo de justiça, mas se a senhora há 100 anos dissesse uma coisa destas… Há 100 anos teriam dito 'esta mulher está maluca'. Porque o Espírito Santo vai-nos suscitando maneiras de amadurecer a igreja. E no amadurecimento há quem não ache bem, esperam, estão mais atrasados. É a teologia do caminho: uns vão à frente a correr e outros para atrás. E o bom pastor, aquele que tem a função de pastor, o bispo, tem de se saber mover por entre o povo de Deus, tem de estar com os que estão mais à frente, tem de estar no meio e tem de estar atrás. Um pastor que está apenas num sítio não serve. Tem de falar com os que estão mais adiantados para marcar o ritmo, ajudá-los para que não se percam, e estar no meio para sentir o cheiro das pessoas, do povo, e estar atrás com os que estão mais renitentes à mudança e acompanhá-los. Por isso digo que um pastor tem de ser universal no que diz respeito ao santo povo fiel de Deus. O clericalismo, que é uma perversão, retira essa universalidade ao pastor e torna-o pastor de um sector ou de uma modalidade pastoral. 'Aqui mando eu e vocês obedecem.' Entretanto, o Espírito Santo está escondido.
Quando escreveu "Laudato si’” confessou-nos que tinha sido inspirado no seu irmão Bartolomeu, patriarca ortodoxo, e quando escreveu a “Fratelli tutti” confessou-nos também que tinha sido muito inspirado pelo grande imã Ahmad Al-Tayyeb. A fé fortalece-se e expande-se no diálogo interreligioso?
Claro, porque o diálogo interreligioso não é criar equilíbrios, ver como nos vamos pôr de acordo. É ouvir. 'O que pensas? Como sentes?', e ver a tua visão, ouvi-la, argumentar, mas caminhar em conjunto como pessoas. Na minha cidade, na década de 1930, havia um grupo de católicos muito conservador. A mim disseram que os protestantes iam todos para o inferno. De Lutero diziam-me tudo e mais alguma coisa. Eu tinha 4 anos quando ouvi a primeira palavra ecuménica, dita pela minha avó: íamos a andar pela rua e, do outro lado, vinham duas senhoras do Exército de Salvação, tinham um chapéu e um laço grande, e eu perguntei à minha avó 'essas senhoras são freiras?', e a minha avó disse 'são protestantes mas são boas pessoas'. Foi a primeira observação ecuménica que ouvi. E ver que Deus atua através de culturas, de tradições religiosas, de outra maneira. Do diálogo, sempre. É preciso dialogar. Ao dialogar, nunca se perde. Nunca.
“A Kiev foram representantes meus. Três cardeais. Um deles foi três vezes e esteve lá toda a Semana Santa e foi o subsecretário de Estado, digamos, o encarregado das Relações Internacionais. A minha presença lá é forte
Há diálogos indispensáveis. Anunciou anunciou que gostaria de ir a Kiev e Moscovo. O que é possível dizer aos presidentes Putin e Zelensky?
Não sei, não sei. Dialoguei com os dois, os dois vieram cá visitar-me. Não agora, há mais tempo e… Acredito sempre que, se dialogarmos, conseguimos avançar. Sabe quem não sabe dialogar? Os animais. São puro instinto. Se se deixar levar por instinto puro… Por outro lado, o diálogo é deixar de lado o instinto e ouvir. O diálogo é difícil.
Ali parece muito difícil.
É difícil. Mas começa na família. Se na família não se dialoga, se na família há apenas gritos e discussões, as crianças não aprendem a dialogar.
Quando vai a Kiev ou a Moscovo?
Está no ar. Ainda não sei. Estou a dialogar com eles. Amanhã, por exemplo, tenho uma conversa telefónica com o presidente Zelensky. Vamos ver. Na verdade, a Kiev foram representantes meus. Três cardeais. Um deles foi três vezes e esteve lá toda a Semana Santa e foi o subsecretário de Estado, digamos, o encarregado das Relações Internacionais. A minha presença lá é forte. Agora não posso ir porque depois da viagem ao Canadá a recuperação do joelho ressentiu-se um pouco e o médico proibiu-me. 'Até ao Cazaquistão o senhor não pode viajar.' Mas tenho mantido contacto, por telefone. E faço o que posso. E peço a toda a gente que faça o que puder. Entre todos pode fazer-se alguma coisa. E acompanho com a minha dor e com as minhas orações tudo o que consigo. Mas a situação é deveras trágica.
Como é o quotidiano do Papa? Agora, em agosto, é um mês de férias. Mas está aqui a trabalhar, com uma agenda cheia. Não está em Castel Gandolfo, não gosta ou não tem tempo?
Não. Castel Gandolfo... transformei a residência em museu. Havia muitas coisas aqui, no Museu do Vaticano, que não tinham espaço para serem expostas, então transformei num museu a casa aonde eu não iria. Há sítios para onde ir. Se quiser, posso ir, porque há mais dois locais. Eu passo as férias a ler, a ouvir música, a rezar mais um pouco. Gosto muito de ópera.
Que compositor?
Wagner.
Agora tem tempo para ópera?
Sim, ponho a tocar e, enquanto trabalho, vou ouvindo.
Quando não está em férias, como é o seu dia a dia? Muito pesado?
É organizado. Gosto de organizar. Levanto-me cedo. Às quatro da manhã. Mas às dez da noite já estou a dormir.
É necessário acordar tão cedo?
Acordo sem querer. Sou como as galinhas. Levanto-me às quatro, faço as minhas orações. Às vezes celebro a missa a essa hora ou quando não tenho mais tarde. Depois começa o trabalho. Deito-me às nove da noite e às dez apago a luz. Durmo seis horas.
De onde vem a sua força com que acredita na vitória do Bem sobre este Mal tão triunfante? De onde vem a raiz da sua fé?
Cada época teve o seu Bem e o seu Mal e eu não me atrevo a dizer que atualmente tudo é mau. Não. Há coisas muito boas, atualmente. A fé radica em Jesus Cristo, Senhor da História. Ele é o Senhor da História. As coisas más que acontecem agora aconteceram noutras épocas de outra maneira. Ou seja, o trigo e o joio estão juntos.
É preciso é separá-los.
Isso mesmo. Quando alguém diz 'nós somos perfeitos' - não. Jesus disse que crescem juntos e que na colheita vão separar-se. Temos de nos habituar a viver situações históricas. Algumas nada boas, más. Sabe Deus.
Gostava de lhe pedir uma palavra que ponha luz e reconciliação no caminho da igreja portuguesa, que neste momento vive um momento muito difícil, até às Jornadas Mundiais da Juventude.
Eu diria isto: olhem para a janela. Olhem a janela. E perguntem-se: 'A tua vida tem uma janela aberta?'. Se não tiverem, abram-na o quanto antes. Não tenham vistas curtas. Em relação a um problema, a seja o que for. Saibam que estamos a caminhar para o futuro, que há um caminho. Olhem para o caminho. Não se fechem. Sempre com a janela aberta. Pergunto: 'Qual é a tua janela? Qual é a tua esperança?'. 'Não me ocorre.' Pronto, procura-a e cria-a mas não se pode viver sem esperança, não se pode viver sem esse ímpeto positivo da esperança. Senão encaracolas-te como um caracol sobre ti próprio e isso é doentio. Abram a janela, é o conselho que dou para se prepararem para as Jornadas da Juventude. Abram a janela. Vejam além do nariz, além. Olhem, abram, olhem para o horizonte. E alarguem o coração.
Como é que lhe posso agradecer este momento?
Reze por mim. Reze por mim, mas a meu favor, não contra mim [risos].