O Papa ouviu a pergunta de um muçulmano e respondeu

3 ago 2023, 13:00
Papa Francisco na Scholas Ocurrentes (Getty Images)

Francisco esteve com vários jovens em Cascais

O Papa Francisco esteve esta quinta-feira na Scholas Occurrentes, uma instituição que ajudou a fundar em 2001, e que fica em Cascais. Num dos primeiros encontros com jovens à margem da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), o líder da Igreja Católica não deixou nada por responder.

Pergunta 1

Bom dia! Scholas! Scholas! Scholas!

Quando me foi apresentado, não tive dúvidas em aceitar e abraçar porque é um espaço onde todos partilham as suas emoções e sentimentos. É um espaço onde cada um contribui com aquilo que tem, de valores éticos e morais para o bem estar da comunidade. Independentemente da sua religião ou origem. Sou guineense, da Guiné Bissau, e sou muçulmano. Mas sinto, sinto-me neste espaço. E, como sendo muçulmano, sinto obrigação e dever de me juntar e fazer parte deste movimento. Porque o que o Islão também apela é a boa convivência entre as crenças, entre as diferentes crenças. E apela e zela pelo bem estar da comunidade. Apela para aquilo que devemos fazer, pelo cuidado que devemos ter com o próximo. E, por essa razão, gostaria de perguntar, o por que do Scholas ser um espaço onde todos se identificam e o por que de tanta diversidade para ter uma obra de arte? Obrigado.

Resposta 1

A Scholas torna isso possível, que cada um se sinta interpretado pelo grande respeito, mas é um respeito que não é estático, mas dinâmico, que põe as coisas em movimento para fazer coisas, para se exprimir fazendo, como este quadro que, como me disse Del Corral, é uma "Capela Sistina" pintada por si.

(Aplausos)

Scholas põe-nos em movimento, Scholas faz-nos respeitar os outros e ouvir os outros que têm algo a dizer-nos e que nos ouvem porque temos algo a dizer-lhes. Scholas indica-nos o caminho a seguir e, se estivermos bloqueados, levanta-nos e faz-nos avançar. Scholas é um encontro, um caminhar. Toda a gente, seja qual for o seu país, seja qual for a sua religião, olha para a frente e caminha em conjunto. E isso é construtivo, como os três quilómetros e meio de mural que fizeram para chegar aqui.

Pregunta 2

Eu queria seguir um pouco na direção da diversidade pra entrar no tema que foi a base dos nossos dois meses de trabalho que é o caos. Nós, enquanto grupo, e eu também individualmente, tivemos a oportunidade de visitar várias comunidades diferentes, várias pessoas diferentes, que são de religiões diferentes, são de culturas diferentes, e isso nos deu uma oportunidade grandiosa de aprofundar cada vez mais, não só dentro da própria pessoa, mas também de toda a comunidade que é descobrir o sentimento verdadeiro que elas tinham; as verdadeiras dores que elas sentiam; e, com isso, dar a oportunidade a elas de representarem tudo isso com uma pincelada, com uma linha no mural. Dar a oportunidade de se expressarem! E isso, querendo ou não, afeta a nós, toca o nosso coração, pra pensarmos: será que temos esse sentimento? Será que essas dores fazem parte de nós, do nosso convívio? Então, eu queria perguntar: o que seria da nossa existência sem o caos original? Obrigado.

Resposta 2

Tu dizes "caos". Muito bem, é a crise... Sabes de onde vem a palavra? Quando o trigo é colhido, passa por uma peneira, é "peneirado". Crise - peneiração. E a crise, nas pessoas, é isso mesmo: situações da vida, acontecimentos, os seus problemas orgânicos, ou mau humor, ou boa disposição. Faz-nos peneirar e temos de escolher. Uma vida sem crise é uma vida asséptica. Gostas de beber água? Gostas? Se eu lhe der água destilada, vai dizer: "É nojenta". Uma vida sem crise é como a água destilada, não sabe a nada, não serve para nada, a não ser para pôr no armário e fechar a porta.

As crises têm de ser assumidas, têm de ser assumidas e resolvidas, porque ficar na crise também não é bom porque é um suicídio contínuo. É como dar voltas e voltas, não é? As crises têm de ser atravessadas, têm de ser assumidas, e raramente sozinhas. E isso também é importante no grupo Scholas: caminhar juntos para enfrentar as crises juntos, para resolver as coisas juntos e seguir em frente, para crescer juntos... E bem, vamos em frente! Mesmo que seja só para comer uma feijoada...

Pergunta 3

 

Nestes dois últimos meses, trabalhamos muito para conseguir fazer o mural que viu lá fora. Mas, este mural, realmente representa o caos. O caos que, muitas vezes, quando o vivemos, e quando o vivemos de perto, não compreendemos e é uma grande confusão. Aparecem só linhas aleatórias. Mas, na verdade, é que chega um ponto em que nós nos distanciamos. E, nessa distância, começamos a conseguir ver formas, cores; começamos a conseguir ter um sentido neste caos, a conseguir a pensar mais do que aquilo que muitas vezes apenas vemos ou apenas sentimos, mas, sim, conseguimos expressá-lo. E, para mim, por exemplo, foi uma experiência muito grande porque também já vivi momentos de muito caos na minha vida – e acho que todos nós vivemos – e, a verdade é que, ao ouvir a história dos outros, estar verdadeiramente aberta para ouvir, para partilhar, para acolher todas estas pessoas que fizeram parte deste mural foi um privilégio para nós, acho que mais do que pra eles, pra nós que estamos aqui e facilitamos isso ter acontecido. E tudo isto porque buscamos esse sentido, e todos nós buscamos esse sentido profundo de perceber que é algo maior do que simplesmente estar aqui. E, então, queríamos perguntar-lhe […] enquanto passou, neste mural; o que sentiu, o que passou durante esta experiência até chegar aqui, ao coração, deste mural, e que realmente é simplesmente pra nós ou início ou o fim. Não sabemos.

E, antes de responder, queríamos também, em nome de todos, oferecer-lhe um pincel. Este pincel que representa todos nós.

Resposta 3

É bonito o que dizes sobre o caos. Houve alguém que disse que a vida do homem, a nossa vida humana, é fazer um cosmos a partir do caos, ou seja, a partir do que não faz sentido, do que é desordenado, caótico, fazer um cosmos que faça sentido, que seja aberto, convidativo, complexo. Não quero ser catequista, mas se olharmos para a estrutura da história da Criação, que é uma história mítica, não é? No verdadeiro sentido da palavra "mito", porque "mito" é um modo de conhecimento. Então, usem essa história, aquele que escreveu a história da Criação. Entre parêntesis, isso foi escrito muito depois de o povo judeu ter feito a experiência da sua libertação.Portanto, primeiro é toda a experiência do êxodo do povo judeu e depois olham para trás. E como é que a história começou? Como é que o caos se transformou em cosmos?E aí está, em linguagem poética, como Deus, a partir do caos, um dia faz a luz, outro dia faz o homem e continua a criar coisas e a transformar o caos em cosmos.E na nossa vida acontece a mesma coisa, eh: há momentos de crise - volto a usar a palavra -, que são caóticos, que não sabemos onde estamos, e todos nós passamos por esses momentos, momentos sombrios. O caos.E aí o trabalho pessoal das pessoas que nos acompanham, de um grupo como este, é transformar o cosmos.É difícil para mim, neste caos da Sistina (risos), pensar que há um cosmos por detrás, porque o que é o cosmos?Vocês estão a criá-lo na mensagem que estão a levar para a frente, no caminho... Nunca se esqueçam que é um cosmos. É-me difícil, neste caos da Sistina (risos), pensar que há um cosmos por detrás, porque o que é o cosmos?Tu estás a juntar tudo na mensagem que levas para a frente, no caminho... Nunca te esqueças disto: do caos, transformar um cosmos.E esse é o caminho de cada um de nós, não é?Uma vida que fica no caótico é uma vida falhada e uma vida que nunca sentiu o caos é uma vida destilada, tudo perfeito, não é?E as vidas destiladas não dão vida, morrem em si mesmas.É uma vida que sentiu a crise como um caos, que não entende nada, e que lentamente dentro de si, e na comunidade, foi transformando a vida pessoal ou a vida relacional num cosmos... Chapeau!

O Papa terminou o encontro com os jovens da seguinte forma:

Este é o Bom Samaritano, e nenhum de nós está isento de ser um Bom Samaritano.É uma obrigação que todos temos.Toda a gente tem de a procurar na vida, mas aquele que acaba com a sua vida [...] perdido como na guerra.Acontece que o Bom Samaritano encontra este homem estendido no chão, mas primeiro passou um levita, passou um sacerdote, e eles estavam com pressa.Não lhe deram atenção.Mas, para além do facto de estarem com pressa, não podiam tocar-lhe porque havia sangue [...] E, segundo a lei da época, quem tocasse no sangue era impuro. Não sei durante quanto tempo tinha de se purificar, de modo que isso o impedia de cumprir os seus deveres, de não tocar... Morre, mas não te tocarei, não ficarei impuro. Morrer, mas não ficarei impuro. Quantas vezes não nos passa pela cabeça: "Morre, mas não ficarei impuro"! Quantas vezes se prefere a "pureza ritual" à proximidade humana! [...] Os samaritanos, na mentalidade daquele tempo, eram uns vagabundos, eram todos uns vagabundos e comerciantes, não eram puros de espírito, de coração, eram uns párias. E ele pára, vê-o e conta a história de que sentiu compaixão. "Morre, eu cuido da minha pureza". Sentiu compaixão. Deixo-vos com a pergunta: que coisas me fazem sentir compaixão, ou tendes um coração tão seco que já não tem compaixão? Cada um responde a si próprio.E depois, o que é que acontece? Leva-o a uma estalagem e arranja-lhe, no hotel que há ali, naquela cidade, arranja-lhe um quarto e diz: "Olha, vou voltar daqui a três dias", diz ao hoteleiro."Toma, pago-te isto e se precisar de mais, pago-te no regresso.Este bandido era um bom pagador. Assim, temos os ladrões que matam, o bom samaritano que cuida dele, o levita e o sacerdote que se afastam para não ficarem impuros. E Jesus diz: "No Reino dos Céus, entra este", porque foi movido pela compaixão. Pensem um pouco nesta história, onde é que eu estou, a fazer mal às pessoas, onde é que eu estou, a tirar o corpo das dificuldades reais ou a sujar as mãos? Por vezes, na vida, é preciso sujar as mãos para não sujar o coração.

Relacionados

País

Mais País

Patrocinados